segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

"Deus e o Diabo na Terra do Sol": 50 anos de um clássico



1964 é um ano icônico para o Brasil. No campo político, foi no dia 31 de março daquele ano que aconteceu o Golpe Militar, que logo em seguida descambou para a Ditadura. No campo do cinema, foi naquele 1964 que estreou, há 50 anos portanto, uma das produções mais importantes da cinematografia brasileira. Naquele ano Glauber Rocha apresentava para o mundo o filme que viria a revolucionar e influenciar o cinema que se faria no país dali para a frente. O filme era Deus e o Diabo na Terra do Sol. O impacto do lançamento foi tão significativo que redefiniu inclusive a forma como o mundo via (e entendia) o cinema então produzido no Brasil.

Aquele era apenas o segundo longa-metragem dirigido por Glauber Rocha, após Barravento, que é de 1962, porém, só lançado anos depois. Então, para todos efeitos, Deus e o Diabo na Terra do Sol era virtualmente a estreia do cineasta baiano. Antes um crítico e pensador do cinema, Glauber se aventurou na direção colocando em prática suas ideias de um genuíno cinema terceiro mundista, que pregava de forma incisiva em inúmeros textos publicados pela imprensa à época.

Fontes diversas apontam divergentes datas do lançamento do filme de Glauber. Algumas indicam o dia 10 de julho, outras apontam a data de 1º de julho, e há também indicações de que o filme estreou no mês de abril, poucas semanas após o Golpe de 64. O fato é que, antes da estreia oficial, Deus e o Diabo na Terra do Sol já havia sido exibido em concorridas sessões fechadas para amigos do cineasta e imprensa, em Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo. Consta que em todas estas projeções o filme causou espanto e surpresa pela ousadia estética proposta pelo jovem realizador de 25 anos de idade. Acabadas as sessões a plateia invariavelmente irrompia em aplausos entusiasmados.


Aqueles eram os primeiros dias do regime de exceção, e o filme de Glauber Rocha surgiu em meio ao recrudescimento da Censura. O primeiro certificado de censura foi concedido ainda na primeira semana de abril, poucos dias após o golpe. Porém, naquele ambiente de caça ás bruxas, logo a liberação foi revista com a alegação de que a produção "atentava contra o sistema". Após um novo processo de liberação, com idas e vindas, e muitas negociações nos bastidores, o Serviço de Censura do Ministério da Justiça concedeu o certificado de censura definitivo, e o filme estava oficialmente liberado para exibição pública. Certamente muito contribuiu para este desfecho o fato do Departamento Cultural do Itamaraty haver selecionado Deus e o Diabo na Terra do Sol como o representante oficial do Brasil para o Festival de Cannes, em detrimento de Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, tido por muitos como a escolha natural naquele ano.

Mais do que uma expressão artística individual de seu realizador, Deus e o Diabo na Terra do Sol representava uma manifestação latente do momento e das circunstâncias do cinema brasileiro. O filme consolidou, como nenhum outro, o espírito de uma época de contestação onde cineastas e parte da imprensa engajada lutavam por uma nova estética para o cinema nacional. Não havia clareza no que se desejava, mas estava evidente o que não aceitavam mais: a manipulação do cinema clássico e hegemônico vindo de Hollywood. O filme de Glauber revelou a revolução. Era a ponta de lança de uma nova realidade cinematográfica que romperia o círculo viciado de um cinema que não chegava a lugar algum, e muito menos representava a realidade brasileira. Era o novo que deu um novo viés a um movimento que nascia: o Cinema Novo. Tanto Deus e o Diabo quanto Vidas Secas, e também Os Fuzis, de Ruy Guerra, representavam a tríade de filmes que explicitavam as ideias e propostas de um novo cinema que assumia o desafio de mostrar na tela o que antes era apenas discurso. Glauber profetizava: "uma câmera na mão e uma ideia na cabeça".


Diversamente do neorrealismo de um Rio 40 Graus, também de Nelson Pereira dos Santos, um dos precursores do Cinema Novo, o filme de Glauber enveredou pela alegoria da fábula, misturando misticismo, religiosidade e política. O caldeirão de ideias de Deus e o Diabo pretendia dar conta de explicar e complexa realidade brasileira. Uma ousadia e tanto, mas plenamente justificado naquele momento de ruptura do status quo, onde os limites precisavam ser ampliados. Aquele era um tempo de filmes-manifesto, onde a tese se sobrepunha à narrativa. Era necessária a demolição do velho para a construção do novo. Glauber Rocha assumiu com gosto o papel de reformador do cinema nacional, e o radicalismo de suas obras posteriores apenas confirma sua vocação para o confronto em busca de uma estética original (ainda que não necessariamente popular).

Passados 50 anos, Deus e o Diabo na Terra do Sol venceu o desafio do tempo e se consolidou como um dos mais prestigiados clássicos do cinema brasileiro, embora seja relativamente desconhecido pelas novas gerações. Mas, nunca é tarde para descobrir a saga do vaqueiro em fuga, dividido entre o deus negro e o diabo loiro.

(Texto originalmente publicado no portal "Facool" em abril de 2014)

Jorge Ghiorzi

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