quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

“Deadpool”: reinvenção das adaptações


Questões de ordem. É necessário conhecer/ler os quadrinhos antes de assistir um filme? O não conhecimento prévio do material original prejudica a apreciação da obra em outra mídia? As indagações não são meramente retóricas. Fazem total sentido frente a muito bem sucedida adaptação de Deadpool para os cinemas. Longe de integrar o primeiro time dos super-heróis, o debochado e desbocado personagem sempre teve um status cult. Agora, vai conhecer o céu e o inferno do mainstream.

Voltando às questões iniciais, a resposta para ambas é “não”. Caso contrário, seria impossível assistir e apreciar na plenitude filmes como Guerra e Paz ou Laranja Mecânica, sem antes ler os livros de Leon Tolstoi e Anthony Burgess. Tipo estudar antes para ir bem na prova.

Resumo da ópera para esta introdução. Não, nunca li Deadpool nos quadrinhos. Mas sim, curti o filme. Meu julgamento é apenas sobre o que objetivamente assisti na tela, e não sobre o que supostamente possa estar achando que vi ou gostaria de ter visto.


Com Deadpool, o filme, as adaptações dos quadrinhos para o cinema definitivamente chegaram à pós-modernidade, aquele momento quando as narrativas entram em crise e passam para a autorreflexão. Repensar-se a si próprio. Houve um tempo em que as adaptações precisavam ser literais, no máximo com algumas poucas alterações na mitologia original das personagens, (tipo o Superman do Richard Donner em 1978, e o Homem Aranha de Sam Raimi do início dos anos 2000). Depois veio a fase dos universos expandidos e das revisões/reinterpretações da formação da mitologia, da qual o Batman de Christopher Nolan é o expoente máximo. Agora, passadas as necessárias fases de maturação, e prestes a esgotar a fórmula, chegou à fase três. A hora da diversão, de não levar-se a sério demais. O sucesso recente dos Guardiões da Galáxia apontou o caminho dessa reinvenção, no qual “Deadpool” se jogou de cabeça.

Quadrinho no original inglês é “comics”. Comédia, diversão, entretenimento. E Deadpool cumpre a missão. É divertido, sarcástico, autorreferente ao universo das HQs, crítico ao mundo pop e muito bem humorado. Talvez até um pouco demais em algumas sequências, chegando, por vezes, a um nível de irreverência que beira ao exagero gratuito. Mas tudo bem, está valendo o ingresso. É diversão para gente grande, sem esquecer os elementos de apelo ao público teen.


Com sacadas inspiradas, diálogos espertos e cinismo em doses generosas, o filme de Tim Miller não livra a cara de ninguém. Nem do próprio astro protagonista Ryan Reynolds, que leva na filmografia a fracassada (parar dizer o mínimo) adaptação Lanterna Verde. Agora, em sua nova incursão no gênero, Reynolds finalmente tem um super-herói para chamar de seu.

Vale chamar a atenção para a ótima presença da atriz brasileira Morena Baccarin no elenco. Com cartaz em alta na TV, onde já participou de séries como Firefly; V; Homeland e Gotham, Morena Baccarin dá seus primeiros passos no cinema. E tirou sorte grande com Deadpool.

A adaptação apostou na anarquia e quebrou a banca. As fenomenais bilheterias em todo o mundo estão aí para comprovar isso. Então, preparem-se. Vem aí Deadpool 2 com mais um estoque de piadinhas.

PS.: Não perca o encerramento dos créditos de Deadpool, OK?

(Texto originalmente publicado no portal “Movi+” em fevereiro de 2016)


Jorge Ghiorzi

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

David Bowie: o homem que caiu na Terra


O clichê consagrado é chamá-lo de camaleão. Faz sentido. Sua capacidade de se transmutar foi única no meio artístico. Mais do que diversificada e múltipla, sua trajetória foi consistente por vencer o desafio do tempo. Não foi uma explosão passageira, com prazo de validade.

O cantor, compositor, produtor musical e também ator inglês David Robert Jones, que o mundo conhece como David Bowie construiu uma carreira de mais de quatro décadas, encerrada no início de janeiro de 2016, dois dias após completar 69 anos de idade. Não sem antes nos deixar sua última obra “Blackstar”, recentemente lançada. Mas aqui não vamos tratar do Bowie músico. Vamos relembrar um pouco da trajetória do Bowie ator.

A figura estética de David Bowie sempre atraiu a atenção. Ícone fashion, andrógino, artista performático, mestre da arte de seduzir plateias, ele não fazia apenas música. Entregava um pacote completo: som, imagens, luzes e imaginação. Era quase inevitável, senão desejável, que Bowie se aproximasse do cinema, ou vice-versa.


O que pouca gente sabe é que antes de ser músico Bowie foi ator. Estudou teatro e participou de peças e filmes de TV na Inglaterra. Então, em 1969 tudo muda com o estouro de “Space Oddity”, e o ator iniciante dá lugar ao rockstar em ascensão. A reaproximação com o cinema só ocorreu em 1976 com o filme O Homem que Caiu na Terra, dirigido por Nicolas Roeg. Apropriadamente David Bowie interpretou um alienígena que vem à Terra em busca de salvação para seu planeta. A figura andrógina e misteriosa que o artista encarnava nos palcos naquele período foi muito bem aproveitada pelo filme que se mostrou um excelente veículo para potencializar a imagem que por muitos anos ficou associada ao artista.


No início dos anos 80 David Bowie atinge o ápice de sua carreira como artista pop. Com o lançamento do disco “Let’s Dance”, recheado de hits, Bowie vendeu como nunca e rivalizava nas paradas de sucesso com Michael Jackson. Muito requisitado pela mídia, e também pelo cinema, Bowie participou de diversos filmes neste intenso período. Em 1983 estrelou Furyo, Em Nome da Honra, dirigido por Nagisa Oshima (de Império dos Sentidos). Sua interpretação de um prisioneiro inglês preso num campo de concentração na ilha de Java, em plena Segunda Guerra Mundial, foi amplamente elogiada pela crítica, e Bowie definitivamente atingia o status de ator. Na sequência Bowie viveu, ao lado de Catherine Deneuve, um vampiro moderno em crise no clássico Cult Fome de Viver, de Tony Scott.

Cineasta em alta na metade dos anos 80, John Landis chama Bowie para uma participação na comédia de ação Um Romance Muito Perigoso (1985), estrelada por Jeff Goldblum e Michelle Pfeiffer.


O tipo exótico que Bowie sempre inspirou, foi mais uma vez muito bem utilizado na produção de 1986, Labirinto – A Magia do Tempo. Ao lado de uma jovem e bela Jennifer Connelly, David Bowie faz um convincente e maligno Rei dos Duendes nesta fantasia infanto-juvenil dirigida por Jim Henson.

Ainda em 1986 David Bowie participa do musical Absolute Beginners, de Julien Temple, que revive em tom nostálgico e dinâmico os anos 50 quando o rock domina o mundo e vira a cabeça da juventude. A trilha sonora, recheada de sucessos, inclui o próprio David Bowie.


Grande sonho de Martin Scorsese, o polêmico A Última Tentação de Cristo foi lançado sob protestos da comunidade religiosa em 1988. Para o papel de Pôncio Pilatos o diretor Scorsese escalou David Bowie, que aceitou o papel, abrindo mão de interpretar um vilão na série 007.

Nos anos 90 Bowie se limitou a fazer participações em filmes de pouca repercussão como Twin Peaks – Os Últimos Dias de Laura Palmer; Romance por Interesse e Basquiat – Traços de uma Vida, entre outros menores.


Na primeira década dos anos 2000 Davis Bowie ainda permanecia ativo no cinema. Estrelou o drama familiar Mr. Rice’s Secret (2000); deu um charme extra à comédia Zoolander (2001), de Ben Stiller; interpretou o cientista e inventor Nikola Tesla em O Grande Truque (2006), dirigido por Christopher Nolan; colocou a voz em um personagem da animação Arthur e os Minimoys (2006), de Luc Besson; dublou um personagem do desenho animado Bob Esponja (2007, na TV); participou do drama Reação Colateral (2008) e, por fim, sua última participação creditada no cinema como ator em ficção, foi em High School Band (2009) interpretando… David Bowie!

2016. Ano em que o homem que caiu na Terra partiu, nos deixando o legado de sua arte na música e no cinema.

(Texto originalmente publicado no portal “Movi+” em janeiro de 2016)

Jorge Ghiorzi

sábado, 4 de fevereiro de 2017

“Expresso do Amanhã”: viagem sem fim e sem volta


Não é nenhuma novidade a vocação de Hollywood para “importar” cineastas de outras nacionalidades. Além de revitalizar o ambiente criativo doméstico, a estratégia também serve para dar uma face mais internacional para o cinema que está cada vez mais globalizado, quase uma “commodity”. No período do pós-guerra o interesse estava nos cineastas europeus. Mais recentemente foi a vez dos realizadores latino americanos, particularmente os mexicanos. Agora, a bola da vez vem da Ásia. Mais claramente da Coréia do Sul.

Após o sucesso mundial de O Hospedeiro, lançado em 2006, o sul-coreano Joon-ho Bong entrou no radar dos grandes estúdios. Seu trabalho seguinte, Expresso do Amanhã (Snowpiercer, 2013) já ganhou ares de produção internacional, pois é falada em inglês, conta com elenco predominantemente americano e inglês, e foi financiada parcialmente com capital europeu e norte-americano.


Baseado em uma graphic novel francesa chamada “Le Transperceneige”, de Jean-Marc Rochette e Jacques Loeb, “Expresso do Amanhã” é uma ficção científica que segue a trilha das distopias ao retratar uma Terra em perigo de extinção, tomada por uma nova era glacial que ameaça a vida no planeta. Neste cenário apocalíptico os poucos sobreviventes estão confinados a bordo de um trem (maravilha da tecnologia de ponta) que segue ininterruptamente em viagem, sem parar já por 17 anos. Esta é a única forma de assegurar a sobrevivência num meio ambiente que passou a ser hostil aos serem humanos.

No interior do trem os “passageiros” são apartados de acordo com seu status social. Os pobres vivem em condições miseráveis, nos últimos vagões da composição férrea. A classe dominante privilegiada vive uma boa vida de conforto e luxo nos vagões da dianteira. Até que chega o dia da revolta dos oprimidos que decidem entrar em combate contra a injustiça social que se reproduz no interior daquele trem. O líder dos revoltados, Curtis (interpretado por Chris Evans, o “Capitão América” em pessoa), é a figura mítica que vai alterar a ordem estabelecida naquele microcosmo


Todos os elementos de um típico filme de ação hollywoodiano estão identificáveis em Expresso do Amanhã. O herói, o antagonista, o conflito, a missão e a adrenalina, o combustível que move o enredo. Porém, por tratar-se de uma produção dirigida por um coreano, tudo isto se apresenta sob uma ótica diversa do modelo hegemônico, com uma abordagem que denuncia um novo olhar para filmes de gênero. A ênfase ao movimento, à energia cinética, cadenciada na edição clipada, marca registrada do cinema de ação produzido em Hollywood, está presente na tela. Mas há algo mais em cena. Uma sensibilidade incomum no gênero. Isto fica muito evidente no tratamento dado às personagens. Sim, às personagens, no plural. O foco da narrativa não está concentrado apenas no protagonista. Os personagens secundários também são relevantes e capturam o interesse do espectador.

A cenografia também merece registro, ao propor um modelo de ação 100% confinada no espaço estrito de um trem, por si só uma premissa estimulante. O extrato social da pirâmide de classes (castas) é engenhosamente bem resolvido na concepção estilizada de cada um dos vagões que compõem  o comboio. São relíquias arqueológicas de um mundo que sucumbiu ao apocalipse, preservadas no espaço-tempo do universo em movimento do trem que não pode interromper sua viagem eterna, como um tubarão que jamais pode parar de nadar.

(Texto originalmente publicado no portal “Movi+” em setembro de 2015)

Jorge Ghiorzi