sábado, 13 de maio de 2017

"Rififi": a arte do crime


Integrante da Lista Negra de Hollywood, o cineasta Jules Dassin foi vítima do Comitê de Atividades Antiamericanas no início dos anos 50. Presidido pelo senador Joseph McCarthy, o comitê perseguia, investigava, julgava e condenava comunistas ou simpatizantes de ideias esquerdistas infiltrados na comunidade artística dos Estados Unidos, particularmente no cinema. Delatados por colegas de profissão, uma geração de realizadores, produtores, atores e roteiristas ficou marcada por esta perseguição. Muitos perderam empregos, foram impedidos de trabalhar e sustentar suas famílias. Outros foram forçados ao exílio e buscaram refúgio na Europa. Esse foi o caminho de Jules Dassin, que se radicou na França em busca de novas oportunidades de trabalho. Neste período o diretor foi procurado por um produtor local que propôs a adaptação de um pequeno livro policial francês. A produção seria de baixo orçamento, sem grandes estrelas, mas, vá lá, era uma oportunidade de trabalho, e Dassin aceitou, apesar de não ter gostado do livro.

Este foi o contexto que antecedeu a realização de Rififi (Du rififi chez les hommes), filmado em 1954 e lançado no ano seguinte a partir de sua participação no Festival de Cannes, onde recebeu o prêmio de melhor direção. Passados 60 anos de sua estreia, Rififi ostenta o título de uma das melhores produções do gênero policial de todos os tempos e um marco dos filmes noir, ainda que realizado na Europa. François Truffaut declarou, à época: “Foi o pior romance policial que eu li, mas Jules Dassin realizou o melhor filme policial que eu assisti”. E o crítico André Bazin completou afirmando que Rififi “quebra as convenções dos filmes policiais e consegue tocar nossos corações”.


Ao longo dos anos Rififi foi se notabilizando, não sem razão, por apresentar a mais espetacular sequência de roubo já vista no cinema. No entanto, curiosamente, no livro a sequência do assalto à joalheria era apenas um detalhe em meio à história. Jules Dassin, numa decisão acertada, optou transformar o roubo na espinha dorsal da sua narrativa. O resultado foi esta pequena joia cinematográfica montada em três atos.

Recém saído da prisão, o renomado mas decadente criminoso Tony (Jean Servais) recebe do velho parceiro Jo (o ”sueco”), a proposta para assaltar uma joalheria. Inicialmente recusa, mas ao saber que sua ex-amante agora está vivendo com um gangster, se desilude quanto ao seu futuro de regeneração e acaba cedendo ao convite. Juntamente com outros dois comparsas italianos Mário e César (interpretado pelo próprio Jules Dassin com o pseudônimo de Perlo Vita) iniciam os preparativos para o ousado plano de invadir a joalheria e arrombar o cofre que guarda as joias mais valiosas. O planejamento e a minuciosa execução correm perfeitamente bem, porém a falibilidade e ambição de um dos integrantes, pós-roubo, colocam tudo a perder e a tragédia anunciada se confirma.

Realizado no período de gestação da Nouvelle Vague francesa, que despontaria para o mundo em 1959 com a exibição de Os Incompreendidos de Fraçois Truffautt no Festival de Cannes, Rififi, ainda que obedeça aos cânones do chamado cinema clássico, representou um suspiro de renovação ao gênero policial e ao cinema como um todo. A montagem “invisível”, a unidade temporal e o realismo aparente estão presentes, e predominam a narrativa enxuta. O aspecto que chamou a atenção foi a riqueza dos personagens e suas nuances psicológicas, algo pouco usual no período, que privilegiava as histórias em detrimento dos participantes do grande jogo cênico que uma representação cinematográfica impõe.


Além da excepcional fotografia em preto e branco, que explora brilhantemente cenários e enquadramentos de uma Paris constantemente cinza, e de uma montagem eficiente, a serviço de uma narrativa sólida e consistente, o grande destaque de Rififi é, evidentemente, a sequência do roubo das joias. Como diria aquela propaganda, “sempre imitada, nunca igualada”, a sequência se transformou em paradigma para o gênero que inspira cineastas desde então. O realizador Jules Dassin foi ousado ao conceber aquela encenação. Com duração de 25 minutos (quase 1/3 da duração do filme) a sequência não utiliza música, não possui diálogos e é praticamente silenciosa, a não ser por pequenos ruídos ocasionais que só corroboram o realismo e acentuam o pesado clima de suspense. Cinema em estado puro.

Quando lançado, Rififi foi por algum tempo proibido em alguns países sob a alegação de ser demasiadamente “didático” para inspirar mentes criminosas no mundo real. E, de fato, alguns assaltos ocorridos nos anos seguintes contaram com algumas das técnicas apresentadas no filme. Nos Estados Unidos Rififi fez uma trajetória um tanto acidentada pela interferência do Comitê, mas, mesmo assim, foi aclamado pela crítica norte-americana que o cobriu de elogios. No início dos anos 2000 foi relançado nos EUA com uma nova cópia de 35mm, que contou com a colaboração do próprio Dassin (falecido em 2008). O crítico Roger Ebert incluiu a produção em sua lista de Melhores Filmes e afirmou que as influências de Rififi podem ser encontradas desde O Grande Golpe (Stanley Kubrick, 1956) até Cães de Aluguel (Quentin Tarantino, 1992).

(Originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em outubro de 2016)

Jorge Ghiorzi

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