terça-feira, 27 de junho de 2017

“Zabriskie Point”: jornada no deserto


36º 25’ N 116ª 48’ O. Estas são as coordenadas geográficas que assinalam a localização do “Zabriskie Point” no globo terrestre. Um lugarzinho perdido no mapa, no meio do Parque Nacional do Vale da Morte, no deserto da Califórnia. O terreno árido é resultado de um lago que secou há milhões de anos. Uma região onde a vida é um desafio constante da natureza.

Este é o cenário que inspirou a única experiência de Michelangelo Antonioni em terras norte-americanas. Zabriskie Point (1970) foi realizado num período de grande evidência do diretor, quando o nome de Antonioni se consolidava como um cineasta com livre trânsito internacional, além da condição de apenas um realizador de cinema de arte europeu. Seu trabalho anterior, primeiro em língua inglesa, foi Blow-Up – Depois Daquele Beijo (1966), e o seguinte foi O Passageiro – Profissão: Repórter (1975).

Os emblemáticos tempos de passagem da década de 60 para os 70 estão na essência da narrativa de Zabriskie Point. Período de lutas pelos direitos civis, emancipação dos negros, contracultura, guerra do Vietnã, movimento hippie, psicodelia e rock, muito rock. O filme de Antonioni já inicia conflagrado, no olho do furacão. Na sequência de abertura, em estilo documental, somos jogados no meio de uma assembleia de universitários no campus discutindo sobre a iminente greve e as ações do grupo no enfrentamento contra a repressão policial. Logo identificamos entre os universitários o protagonista da história. O jovem Mark (Mark Frechette) parece alheio e distante da veemência dos discursos revolucionários de seus colegas. Ao se manifestar em público pela primeira e única vez na reunião revela sua verdadeira natureza de independência. Declara em alto e bom tom: “Estou disposto a morrer (pela causa). Mas não de tédio”. E sai da sala de forma teatral e dramática, para espanto dos estudantes pela clara exibição de individualismo.


Ao participar de um confronto da policia com um grupo de grevistas, Mark é testemunha da morte de um policial de Los Angeles. Por estar portando uma arma, Mark foge do local para não ser acusado de homicídio. Sem destino, sem mapa, sem bússola e sem dinheiro no bolso, decide, num impulso, roubar um pequeno avião e seguir sem rumo em direção ao deserto.

A outra protagonista da história é Daria (Daria Halprin), secretária de um poderoso empresário (Rod Taylor) que planeja construir um mega empreendimento residencial em pleno deserto de Mojave. Ao fazer uma viagem de carro por este mesmo deserto, para encontrar-se com seu chefe (e talvez amante, pode-se supor pelo contexto), Daria decide dar uma parada numa cidadezinha no meio do caminho para visitar um amigo. Durante a viagem Daria percebe no céu um pequeno aviãozinho que começa a dar voos rasantes sobre seu carro. Nestas coordenadas do deserto as histórias dos dois personagens errantes se cruzam e os destinos de ambos mudam de rota.

A escolha do deserto como cenário faz todo sentido se considerarmos que Michelangelo Antonioni é um cineasta reconhecido pelo pleno domínio da mise-en-scène nas geografias dos espaços cênicos que representa em suas obras. Em Zabriskie Point o diretor expõe o ambiente urbano da metrópole, com sua sufocante profusão de placas, painéis, outdoors e publicidade, em contraste com a paisagem desolada e plácida do deserto, espécie de paraíso (ainda) intocado pela civilização. Neste aspecto, o ambiente representa a própria natureza interior dos personagens que promovem uma fuga para, por fim, encontrar-se em si mesmo. Há sim algo de existencialista nesta jornada de descoberta. Um sonho utópico perseguido que não se completa. Fica apenas a desilusão.


Michelangelo Antonioni se posicionava como um intelectual marxista, no entanto, contradizendo este discurso, seus filmes invariavelmente tratavam de uma elite burguesa com seus problemas típicos, longe da dura realidade de um trabalhador proletário. Ainda assim, não resta dúvida que Zabriskie Point é um filme explicitamente anticapitalista, de contestação ao establishment e à manutenção do status quo da ordem ideológica, política e econômica instalada. Há, porém, uma fragilidade nesta abordagem um tanto idealizada que manifesta uma indulgência demasiada com os movimentos jovens, plenos de contestação, mas vazios nas alternativas que sugerem como opção.

Realizado há mais 45 anos, com a ambição de retratar um período peculiar da sociedade norte-americana, Zabriskie Point por vezes soa por demais datado e preso a um estilo “hiponga”, típico daquele momento. Mas não há como negar, porém, que o olhar europeu (estrangeiro) de Antonioni foi suficientemente bem sucedido para transmitir o espírito da América naquele início de década. Ainda que não tenha sido bem recebido no lançamento, ficando aquém das expectativas nas bilheterias, o longa-metragem foi reavaliado ao longo do tempo e hoje pode ser classificado como um dos melhores trabalhos de Michelangelo Antonioni.


Pelo menos duas sequências icônicas de Zabriskie Point passaram para a história. A primeira delas é a sessão de amor coletivo em pleno deserto com vários casais transando em meio às areias, um símbolo do sexo livre em conexão com as forças da natureza. A outra sequência de destaque, ainda hoje impactante, é a explosão final, metáfora do desejado fim do consumismo capitalista. De beleza plástica excepcional, a sequência ganha ares de pintura pop art a lá Andy Warhol ou Jackson Pollock. Com direito a uma hipnótica trilha sonora composta pelo Pink Floyd.

Na época do lançamento mundial Zabriskie Point foi censurado no Brasil pela explosiva mistura de política, contestação, corpos nus e sexo livre.

Assista o trailer: Zabriskie Point

(Texto originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em novembro de 2016)

Jorge Ghiorzi

segunda-feira, 19 de junho de 2017

“O Ano do Dragão”: violência em Chinatown


O recente (2016) falecimento de Michael Cimino, além de lamentável em si, atraiu a atenção para a filmografia do realizador que andava com prestígio em baixa na indústria. Ainda que tenha sido homenageado pelo Festival de Veneza em 2012, a verdade é que Cimino rumava para uma forçada aposentadoria por não conseguir desenvolver novos projetos pessoais. Agora, com a filmografia definitivamente fechada, seus trabalhos voltam a ser reavaliados e relançados, atestando o valor de uma obra que estava à espera de um novo olhar.

Ao falar-se de Michael Cimino as primeiras lembranças que vem à mente são justamente o seu ápice, o drama de guerra vencedor do Oscar, O Franco Atirador (1978), e o equivocadamente alegado maior fracasso (apenas comercial, a bem da verdade), o portentoso western épico O Portal do Paraíso (1980). As duas produções surgiram em sequência, fato que apenas confirma a oscilação na carreira do realizador. Considerando este fato, é perfeitamente compreensível a expectativa que rondava o filme seguinte, O Ano do Dragão (Year of the Dragon, 1985), lançado após Cimino lamber por cinco anos as feridas deixadas pela dolorosa experiência de O Portal do Paraíso.


Recontar, ainda que alegoricamente, a história da formação da América, é uma ambição que perpassa alguns filmes do diretor. A conquista de territórios, os primórdios do capitalismo e a integração dos imigrantes europeus são pano de fundo em O Portal do Paraíso. Os fantasmas do conflito do Vietnã que assombram a sociedade norte-americana estão em O Franco Atirador. O submundo e a corrupção das Máfias que construíram fortunas e moldaram o poder dos EUA aparecem em O Ano do Dragão, e também em O Siciliano (1987), ainda que este transcorra na Itália.

Baseando em um livro de Robert Daley (que também escreveu o livro que deu origem ao filme O Príncipe de Cidade, de Sidney Lumet), O Ano do Dragão tem roteiro do próprio Cimino em parceria com Oliver Stone. O filme se passa na Chinatown de Nova Iorque, berço da máfia chinesa que opera nos EUA comandando o tráfico de ópio, matéria prima da heroína. Para expandir seus negócios os chineses entram em conflito com os italianos (carcamanos). A disputa por territórios deflagra uma guerra, acaba com o equilíbrio de forças e rompe o acordo de paz, coniventemente aceito pelas corruptas forças policiais da região.


É neste cenário que entra em cena o capitão da polícia Stanley White (Mickey Rourke) transferido do Brooklyn para Chinatown com o encargo de cuidar da crescente violência no bairro. O policial avança o sinal e vai fundo na missão. Não concordando com o faz de conta da polícia, que prefere deixar tudo como está para ver como fica, White decide, contra o desejo de seus superiores, fazer uma guerra pessoal assumindo o papel de justiceiro incorruptível. Nesta obsessão o policial compra briga com o Sistema, destrói seu casamento, acaba com suas poucas amizades e manipula a imprensa, através da sedução de uma repórter de TV.

Impulsivo, arrogante e extremamente vaidoso, o personagem Stanley White é de origem polonesa, o que o coloca também como um imigrante na América, assim como os chineses e os italianos aos quais persegue em sua saga punitiva. Há um forte componente de discriminação racial nas atitudes do policial, um estigma, aliás, que sempre perseguiu o próprio diretor Michael Cimino, particularmente após O Franco Atirador, onde tratava os asiáticos de forma maniqueísta.


Os desempenhos em O Ano do Dragão são pontos fracos no resultado final. Mickey Rourke está por demais caricato e constantemente beira ao overacting. John Lone não está particularmente bem com o líder da máfia chinesa. Mas o desastre maior está no papel da repórter de TV Tracy Tzu, fundamental para a narrativa. Ariene Koizumi, por vezes creditada apenas como Ariane, atriz norte-americana de origem japonesa, não dá conta da complexidade da personagem e coloca a perder todas as nuances da relação sadomasoquista que desenvolve com Stanley White.

Tenso e explosivo como outros trabalhos do realizador, em O Ano do Dragão Michael Cimino não se furta e até se regozija com a exposição explícita de sangue e as consequências das balas em corpos e crânios. Uma destas explosões de violência é a sequência do tiroteio na casa noturna, que revela uma ótima decupagem e montagem dinâmica. Sequência, aliás, que nos remete a outra, muito semelhante, em Scarface, dirigido por Brian De Palma três anos antes. Coincidência? Plágio “involuntário”? Quem sabe. Mas vale lembrar que o mesmo Oliver Stone foi roteirista dos dois filmes.

Assista o trailer: O Ano do Dragão

(Texto originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em novembro de 2016)

Jorge Ghiorzi

terça-feira, 13 de junho de 2017

"Daqui a Cem Anos": um futuro possível


Todo filme de ficção científica que se preze invariavelmente apresenta altas doses de ambição. Explorar as possibilidades infinitas de um futuro possível é um arriscado, nem por isto menos estimulante, exercício de pretensão. É justamente a imponderabilidade do tempo futuro que estimula a imaginação dos escritores do gênero. Dentre eles o nome de H. G. Wells se destaca. Não só pela qualidade da obra, mas pelo fato de ser um dos autores mais adaptados pelo cinema. Livros, contos e novelas de Wells são fonte de inspiração de filmes desde 1919, com uma primeira versão de The First Men in the Moon, até hoje, incluindo uma anunciada nova adaptação de O Homem Invisível, a ser lançada em 2018, com Johnny Depp no elenco.

Umas das primeiras obras de H. G. Wells utilizadas no cinema foi Daqui a Cem Anos (Things to Come, 1936), longa-metragem dirigido por William Cameron Menzies (Os Invasores de Marte), um reconhecido Diretor de Arte que eventualmente se arriscava na direção de filmes. Neste trabalho Menzies contou com uma colaboração de luxo. O próprio Wells foi autor do roteiro, uma experiência única na sua carreira. O filme foi baseado no livro “The Shape of Things to Come”, publicado em 1933, que faz uma crônica da civilização humana até o ano de 2106.


Daqui a Cem Anos, apesar do que diz o título brasileiro, não conta a história de um século. Mas apenas 96 anos (!). Explica-se: a narrativa inicia em 1940 e encerra em 2036. Aqui, já temos uma peculiaridade. A história do filme tem seu ponto de partida apenas quatro anos à frente da época em que foi realizado (1936). No mundo real, a Guerra Mundial era uma possibilidade real naquele momento histórico, que, infelizmente, acabou por se confirmar em 1939. Este mesmo clima de ameaça à paz dá o tom inicial do filme, que se passa na fictícia “Everytown”, claramente inspirada em Londres. A cidade vive a iminência do início da Guerra, que já havia eclodido na Europa, mas tenta esquecer temporariamente os problemas para viver os dias de alegria que antecedem o Natal de 1940. Nesta sociedade organizada e próspera, a crença nos valores da família e a fé inabalável nas possibilidades da ciência garantem a prosperidade. Esta é a visão de mundo do personagem central, John Cabal (Raymond Massey). Segundo seu entendimento, somente uma guerra seria capaz de romper aquele equilíbrio social. E ela vem, com todo seu poder de destruição e desagregação familiar. Vidas sucumbem, esperanças morrem e a cidade de “Everytown” se transforma em ruínas após duas décadas de conflito.

Corte. Somos jogados no futuro, no ano de 1966. A guerra acabou. Mas as cidades e suas populações foram duramente castigadas. Os recursos e a prosperidade são coisas do passado. A nova realidade impõe um cenário de miséria, fome e destruição. Quase uma volta ao tempo das cavernas. Uma das mais nefastas consequências da guerra foi a temível “Doença dos Errantes” que leva as pessoas a ficarem vagando sem rumo (zumbis?). Os contaminados eram abatidos a tiro, sem compaixão. A peste extermina metade da população.


Mais um pulo no tempo. Estamos em 1970. A “peste” foi erradicada. A civilização começa a dar sinais de estar saindo da época das trevas. No entanto, naquela nova sociedade rural que começa a se formar, ainda não há a noção de Estado e Governo. No vácuo de poder logo o instinto de dominação dos homens se manifesta com o surgimento de um pequeno tirano local que domina com mão de ferro a região de “Everytown”, transformada num pequeno reino particular. Porém tudo muda com o retorno de John Cabal à cidade, após lutar no front de batalha da guerra. Ele vem com ideias progressistas, ainda com a fé inabalável nos poderes transformadores da ciência e da tecnologia. Dá-se então o inevitável embate entre a barbárie (o tirano) e a civilização (o progressista), e o mundo mergulha na nova ordem mundial que promete tempos de prosperidade.

Uma última viagem no tempo. Vamos parar em 2036, no admirável mundo novo, altamente tecnológico, onde todas as necessidades materiais do homem estão supridas. Mas, nem tudo é um mar de rosas. Em certo momento um dos personagens diz: “Progresso não é viver. É a preparação para viver”. Não há mais desafios pessoais, a ciência dá todas as respostas. A questão de fundo é: Será este o mundo que realmente desejamos?


Daqui a Cem Anos é uma típica alegoria progressista que já foi tema de muitas histórias de H. G. Welles. Há, porém, um componente adicional: o humanismo. Além do grande e ambicioso painel histórico que a história retrata, não foram deixados de lado os pequenos dramas pessoais que movem as grandes revoluções. A utopia das sociedades perfeitas e mundos idealizados é tema de fundo das primeiras obras de ficção científica produzidas nos anos iniciais do século 20. E Daqui a Cem Anos é um inestimável exemplo do que de melhor já se fez no gênero. Vale lembrar que ele surge apenas uma década após a obra-prima Metrópolis, de Fritz Lang, com a qual, aliás, possui alguns pontos de contato pela abordagem do totalitarismo nas sociedades altamente tecnológicas.

Em termos eminentemente artísticos o filme de William Cameron Menzies é um espetáculo à parte por sua deslumbrante cenografia (lembrando, o filme é de 1936, em preto-e-branco), elaborados sets e eficientes trucagens de maquetes. Como exercício de especulação de possibilidades científicas, Daqui a Cem Anos traz muitos acertos em termos de imaginação de tecnologias que surgiriam no futuro. O filme apresenta pioneiras TVs planas, telas de LED, tablet, celular de pulso, projeção holográfica e uso regular de helicóptero como transporte civil (que era apenas um projeto em desenvolvimento naquela época).

Daqui a Cem Anos faz parte da coleção “Clássicos Sci-Fi – Volume 3”, lançamento da Versátil Home Vídeo.

Assista o trailer: Daqui a Cem Anos

(Texto originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em outubro de 2016)

Jorge Ghiorzi

sexta-feira, 9 de junho de 2017

“A Múmia”: mal renascido


O cinema definitivamente não deixa as múmias em paz. Figura recorrente na literatura fantástica, as múmias ressurgem nos filmes com frequência, desde o clássico da Universal lançado em 1932, com Boris Karloff, que estabeleceu as características finais do ícone do terror que faz parte do nosso inconsciente coletivo. Uma leva recente com o tema aconteceu no início dos anos 2000, com dois filmes estrelados pela “Múmia”, o primeiro deles com Brendan Fraser e Rachel Weisz. Passados 17 anos, a mesma Universal decide que era hora de ressuscitar o monstro para apavorar as novas gerações. Porém, com a ajuda de um astro de primeira grandeza, Tom Cruise, para garantir as bilheterias. Mas, algo deu muito errado. O retorno foi desastroso. Como uma maldição, a produção sofreu as consequências malignas de invocar impunemente os mortos.

A Múmia (The Mummy), primeira produção da Dark Universe, nova divisão da Universal responsável pelos “filmes de monstro” que vem por aí, foi dirigido pelo realizador novato Alex Kurtzman (este foi seu segundo longa), mais conhecido pelos roteiros de sucessos como Missão Impossível 3; Star Trek; Transformers e Cowboys & Aliens. Consta que ele está finalizando o roteiro do remake de A Noiva de Frankenstein, a ser lançado em 2019, com Javier Bardem no elenco.


Nesta releitura da Múmia, uma espécie de reboot, a produção atualizou o mito e se adaptou aos gostos e expectativas das plateias mais jovens, acostumadas aos filmes de ação e super-heróis. O filme é justamente isto: uma tentativa de reciclar velhos ícones e apresentá-los como “novidade”.

A história de A Múmia inicia séculos atrás, no Antigo Egito, quando a princesa Ahmanet (Sofia Boutella) invoca o deus da morte, Set, para tomar o trono de seu pai. Descoberta a trama, ela é mumificada, amaldiçoada e sepultada numa tumba na Mesopotâmia (atual Iraque), a milhas de distância de sua terra natal, o Egito. Nos dias atuais, no século XXI, a tumba é descoberta por acaso por uma dupla de soldados das Forças Especiais do exército norte-americano, Nick Morton (Tom Cruise) e Chris Vail (Jake Johnson), especializados em explorar tesouros e relíquias históricas. Na exploração da tumba eles contam com a ajuda da pesquisadora Jenny Halsey (Annabelle Wallis). Ao resgatarem o ataúde que contém a múmia de Ahmanet, o mal desperta e a maldição milenar se cumpre.


A Múmia parece sofrer de um defeito de origem, sem conserto. A ambição do projeto foi fatal para sua plena realização. O longa parece a todo o momento querer abraçar o mundo, incluindo o conceito da convergência, que mistura influências, referências e reciclagem de ideias alheias. Originalidade passou a léguas de distância. Bebendo na mesma fonte de Indiana Jones, com alguns toques das aventuras do professor Robert Langdon (da criação de Dan Brown, “O Código Da Vinci”), a aventura resulta confusa e dispersiva. Dá-se inclusive ao luxo de desperdiçar a presença de um astro do porte de Russell Crowe, completamente deslocado no papel de um cientista / pesquisador chamado Dr. Henry Jekyll, que não disse a que veio. Bem, ninguém se chama Jekyll impunemente, sem sugerir a existência de um certo Sr. Hyde, referência direta da obra clássica de Robert Louis Stevenson.

Tom Cruise sendo mais Tom Cruise do que nunca, e correndo em cena como sempre, não agrega elementos ao personagem que possam tirá-lo de sua condição rasa de um mero tipo unidimensional, sem vida, sem nuances, sem fragilidades. Mesmo um Indiana Jones, para ficarmos numa referência já citada, se apresenta como um personagem crível, dotado de cinismo e zonas de sombra em sua personalidade. Portanto, a desculpa de que se trata meramente de uma aventura não justifica o desleixo da abordagem. Em A Múmia temos mais do mesmo, beirando ao esgotamento de uma fórmula que já não tem mais nada a oferecer ao espectador. Por outro lado, a companheira de Tom Cruise nas aventuras, Annabelle Wallis (do terror Annabelle e do recente Rei Arthur), traz algum sopro de renovação que vislumbra uma perspectiva de futuro. Annabelle é uma atriz promissora, à beira do estrelato.


Indeciso em sua proposta, A Múmia abandona o clima de terror, que insinuava em seus movimentos iniciais, para se atirar no terreno fácil da aventura inconsequente. Claramente a produção foi desenvolvida para sustentar mais uma franquia para Tom Cruise, já “dono” das séries Missão Impossível e Jack Reacher (e Top Gun que vem aí), mas os resultados alcançados parecem ter sepultado o projeto para a eternidade sob toneladas de areia do deserto. Mas, como todas as lendas ensinam, as múmias sempre ressuscitam para assombrar.

Assista o trailer: A Múmia

Jorge Ghiorzi

terça-feira, 6 de junho de 2017

“Mulher-Maravilha”: heroína para os novos tempos


O primeiro filme solo da heroína dos quadrinhos nasceu sob o signo da desconfiança. E razões não faltavam. A começar por ser uma personagem da DC, que, convenhamos, não tem tido muita sorte (ou competência) em suas adaptações cinematográficas. Outro fator de suspeição era o histórico desfavorável das personagens femininas protagonistas no universo dos super-heróis, quando chegam às telas. Quem não lembra dos fracassos monumentais da Mulher-Gato e Elektra? Ou seja, havia muitos riscos envolvidos na primeira aventura cinematográfica da Mulher-Maravilha. No entanto, apesar de todas as adversidades potenciais que rondavam a produção, o filme se mostra um êxito absoluto sob qualquer ângulo de análise, seja como entretenimento, seja pelas expressivas bilheterias, seja pelas possibilidades de estabelecer, de maneira afirmativa, a primeira franquia de real futuro da DC no cinema.

A exemplo do Capitão América (da Marvel), a Mulher-Maravilha também é uma personagem fora de seu tempo. No caso da heroína, fora de seu espaço também, pois abandona seu idílico mundo feminino na oculta ilha de Themyscira para ingressar no mundo dos Homens (no sentido mais amplo da palavra) em plena Guerra Mundial. Este é o primeiro conflito apresentado em Mulher-Maravilha (Wonder Woman), o filme. A princesa amazona Diana Prince (Gal Gadot) é uma personagem idealista, deslocada numa terra que desconhece, regida por regras e ambições individualistas que custa a entender. A pureza de sentimentos e convicções morais que cultua em sua civilização entra em choque com as fraquezas éticas e morais de um mundo movido pelo ódio, ganância e luta pelo poder. A Mulher-Maravilha é uma heroína do passado que resgata valores básicos de justiça, paz e harmonia, muito bem-vindos nos dias que correm.


A ambientação no período da Grande Guerra oferece um cenário perfeito para estabelecer o choque de realidade da Mulher-Maravilha, que percorre sua jornada a partir de um idealismo quase inocente para uma personagem que transita e sobrevive se adaptando ao meio ambiente hostil. Para tanto enfrenta vilões bem humanos (incluindo uma vilã) e também adversários mitológicos dotados de super poderes. Por tratar-se de um filme de origem, Mulher-Maravilha oferece o esperado pacote completo, onde o arco da evolução da personagem é um tanto acelerado no primeiro ato para dar conta de entregar uma super-heroína “pronta” para os atos dois e três da aventura. Mas nada que comprometa significativamente o interesse. Pelo contrário, aliás. A história é envolvente e cativa em poucos minutos. Afinal, estamos diante de uma HQ transformada em filme, com todas as liberdades e licenças artísticas que uma adaptação se permite fazer.


A direção de Patty Jenkins, a mesma de Monster – Desejo Assassino (com Charlize Theron), é competente nas sequências de ação e sensível nos momentos mais intimistas, recorrendo a pequenas piadinhas sexistas disparadas contra o universo dos homens. Equilibradas e provocativas na medida, sem exagero, diga-se, e totalmente afirmativas no terreno minado dos super-heróis, dominado pelas figuras masculinas. Neste ponto, Mulher-Maravilha ganha pontos preciosos e conquista merecido espaço para futuros projetos no gênero.


Parte significativa dos acertos de Mulher-Maravilha deve ser creditada à atriz Gal Gadot, que já havia estreado na pele da heroína no irregular Batman vs Superman: A Origem da Justica em 2016. Ex-Miss Israel de 2004, e ex-integrante do exército israelense, Gal Gadot encarna com paixão, garra e convicção a princesa amazona. Sua formação militar fica evidente nas sequências de ação, quando sua figura cresce em cena ganhando vigor e força nas coreografias. No entanto, fica um tanto a dever nos momentos onde a personagem exige um pouco mais de talento dramático. Ainda assim, o saldo final é positivo. Gal Gadot se apropriou definitivamente da personagem, e o que vem daqui para a frente deverá fazer a alegria dos fãs.

Assista o trailer: Mulher-Maravilha

Jorge Ghiorzi

quinta-feira, 1 de junho de 2017

"A Tortura do Medo": um homem, uma câmera


O cineasta britânico Michael Powell sempre foi reconhecido como um eficiente narrador, cujo elaborado estilo visual se ajustava à perfeição ao tom levemente (ou totalmente) fantasioso de seus melhores filmes. Powell era dotado de uma prodigiosa visão estética vocacionada ao espetáculo visual. Exemplo clássico de seu estilo foi Os Sapatinhos Vermelhos (1948) que capturou a imaginação das plateias com seu clima de sonho e magia. Um dos mais notórios entusiastas deste filme é Martin Scorsese, fã confesso do realizador.

Com uma extensa filmografia de prestígio, nada faria supor que Michael Powell provocasse uma inesperada virada na fase final da carreira. Em 1960 lança o surpreendente A Tortura do Medo (Peeping Tom). Ousado e insanamente incompreendido em seu tempo, o filme foi destruído pela crítica e decretou o assassinato da carreira de Michael Powell, que a partir de então mergulhou em declínio, rumando definitivamente para um precoce ostracismo.


Considerando a perspectiva histórica, parece compreensível a polêmica e o choque que o filme provocou. Claramente a obra de Powell estava à frente de seu tempo nas questões estéticas, narrativas e temáticas. Era um filme insólito que chocou as plateias britânicas bem comportadas da época. Curiosamente, no mesmo período foi lançado outro filme de impacto, com resultado totalmente diverso, embora também inesperado levando-se em conta a carreira do realizador. A Tortura do Medo foi lançado em abril de 1960, e apenas dois meses após, em junho, Psicose de Alfred Hitchcock chegava às telas. Ambos os filmes ousaram no roteiro, avançaram na abordagem da violência, apresentaram protagonistas assassinos (que provocam reações de empatia / rejeição na audiência) e envolviam o espectador num universo de morbidez psicológica. No entanto, os filmes percorreram caminhos distintos. Enquanto um se tornava clássico instantâneo, o outro era esquecido, colocado no limbo da história. Então, surge o catador de pérolas, Martin Scorsese, que vinte anos depois resgata o filme de Michael Powell, exibe em festivais e oportuniza a redescoberta de uma obra-prima, elevada hoje à categoria de “cult movie”.

 “Peeping Tom” é uma expressão inglesa que significa algo como “espiar”, “observar secretamente”, cuja origem remonta a uma lenda anglo-saxã relacionada à Lady Godiva, que cavalgou nua pelas ruas da sua cidade. Ao fazer este passeio (fruto de uma promessa) ela teria instruído ao povo para se fechar em suas casas, para não vê-la sem roupas. Mas, um tal de Tom não resistiu e acabou espiando pela janela. Como punição divina ele teria ficado imediatamente cego.


“Tudo que eu filmo, eu sempre perco”

O personagem protagonista de A Tortura do Medo é Mark Lewis (Karlheinz Böhm, bastante conhecido na época por ter interpretado o imperador Francisco José nos três filmes da série Sissi), um cinegrafista que trabalha como auxiliar do diretor de fotografia de um estúdio de cinema. Nas horas vagas trabalha como fotógrafo de “nus eróticos” em um estúdio clandestino. Seu grande projeto de vida é realizar um documentário, cujo conteúdo desconhecido é eventualmente sugerido ao espectador ao longo da história. No decorrer das filmagens amadoras a verdadeira compulsão deste personagem sexualmente reprimido se revela: assassinar mulheres para captar com a câmera o preciso momento de horror que precede a morte (um precursor dos míticos “snuff movies”).

A origem deste comportamento estaria no passado do protagonista Mark Lewis. Quando criança, seu pai, um psicólogo, o submetia a experiências para explorar os efeitos do medo no sistema nervoso. Estas experiências eram filmadas para posterior análise psicológica das reações da mente de uma criança em formação. Posteriormente, Mark Lewis, já adulto, com uma câmera na mão e uma obsessão na cabeça, segue seu comportamento compulsivo de registrar a verdadeira emoção humana em filme.

Com um roteiro original, de forte caráter freudiano, A Tortura do Medo discute o tema do voyeurismo, que expressa subliminarmente uma carga de perversão. Tímido e recluso, Mark Lewis é frio em suas interações sociais. Manifesta-se apenas pelo olhar da câmera, a cujas imagens captadas atribui significados distorcidos, desconectados da realidade.


No “grand finale” finalmente o cineasta frustrado consegue finalizar sua grande obra documental, uma espécie de acerto de contas definitivo com a figura do pai repressor. Uma libertação registrada em película.

Constantemente tenso e mórbido, o filme de Michael Powell trabalha no registro psicológico de uma mente pervertida. A obsessão do protagonista em registrar a “verdadeira” emoção humana, analogamente pode ser entendida, com todas as ressalvas, ao ato de fazer cinema. Neste sentido, A Tortura do Medo é também um filme de e sobre o cinema, a exemplo de Blow Up, de Michelangelo Antonioni; Oito e Meio, de Federico Fellini; O Desprezo, de Jean-Luc Godard; Um Tiro na Noite, de Brian de Palma e Janela Indiscreta, de Alfred Hitchcock.

Uma aproximação entre Michael Powell e Alfred Hitchcock se dá também pela presença da atriz Anna Massey, que 12 anos depois atuaria na última obra-prima do mestre do suspense, Frenesi, com o qual, aliás, A Tortura do Medo compartilha algumas semelhanças de estilo narrativo.

(Texto originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em outubro de 2016)

Jorge Ghiorzi