terça-feira, 27 de junho de 2017

“Zabriskie Point”: jornada no deserto


36º 25’ N 116ª 48’ O. Estas são as coordenadas geográficas que assinalam a localização do “Zabriskie Point” no globo terrestre. Um lugarzinho perdido no mapa, no meio do Parque Nacional do Vale da Morte, no deserto da Califórnia. O terreno árido é resultado de um lago que secou há milhões de anos. Uma região onde a vida é um desafio constante da natureza.

Este é o cenário que inspirou a única experiência de Michelangelo Antonioni em terras norte-americanas. Zabriskie Point (1970) foi realizado num período de grande evidência do diretor, quando o nome de Antonioni se consolidava como um cineasta com livre trânsito internacional, além da condição de apenas um realizador de cinema de arte europeu. Seu trabalho anterior, primeiro em língua inglesa, foi Blow-Up – Depois Daquele Beijo (1966), e o seguinte foi O Passageiro – Profissão: Repórter (1975).

Os emblemáticos tempos de passagem da década de 60 para os 70 estão na essência da narrativa de Zabriskie Point. Período de lutas pelos direitos civis, emancipação dos negros, contracultura, guerra do Vietnã, movimento hippie, psicodelia e rock, muito rock. O filme de Antonioni já inicia conflagrado, no olho do furacão. Na sequência de abertura, em estilo documental, somos jogados no meio de uma assembleia de universitários no campus discutindo sobre a iminente greve e as ações do grupo no enfrentamento contra a repressão policial. Logo identificamos entre os universitários o protagonista da história. O jovem Mark (Mark Frechette) parece alheio e distante da veemência dos discursos revolucionários de seus colegas. Ao se manifestar em público pela primeira e única vez na reunião revela sua verdadeira natureza de independência. Declara em alto e bom tom: “Estou disposto a morrer (pela causa). Mas não de tédio”. E sai da sala de forma teatral e dramática, para espanto dos estudantes pela clara exibição de individualismo.


Ao participar de um confronto da policia com um grupo de grevistas, Mark é testemunha da morte de um policial de Los Angeles. Por estar portando uma arma, Mark foge do local para não ser acusado de homicídio. Sem destino, sem mapa, sem bússola e sem dinheiro no bolso, decide, num impulso, roubar um pequeno avião e seguir sem rumo em direção ao deserto.

A outra protagonista da história é Daria (Daria Halprin), secretária de um poderoso empresário (Rod Taylor) que planeja construir um mega empreendimento residencial em pleno deserto de Mojave. Ao fazer uma viagem de carro por este mesmo deserto, para encontrar-se com seu chefe (e talvez amante, pode-se supor pelo contexto), Daria decide dar uma parada numa cidadezinha no meio do caminho para visitar um amigo. Durante a viagem Daria percebe no céu um pequeno aviãozinho que começa a dar voos rasantes sobre seu carro. Nestas coordenadas do deserto as histórias dos dois personagens errantes se cruzam e os destinos de ambos mudam de rota.

A escolha do deserto como cenário faz todo sentido se considerarmos que Michelangelo Antonioni é um cineasta reconhecido pelo pleno domínio da mise-en-scène nas geografias dos espaços cênicos que representa em suas obras. Em Zabriskie Point o diretor expõe o ambiente urbano da metrópole, com sua sufocante profusão de placas, painéis, outdoors e publicidade, em contraste com a paisagem desolada e plácida do deserto, espécie de paraíso (ainda) intocado pela civilização. Neste aspecto, o ambiente representa a própria natureza interior dos personagens que promovem uma fuga para, por fim, encontrar-se em si mesmo. Há sim algo de existencialista nesta jornada de descoberta. Um sonho utópico perseguido que não se completa. Fica apenas a desilusão.


Michelangelo Antonioni se posicionava como um intelectual marxista, no entanto, contradizendo este discurso, seus filmes invariavelmente tratavam de uma elite burguesa com seus problemas típicos, longe da dura realidade de um trabalhador proletário. Ainda assim, não resta dúvida que Zabriskie Point é um filme explicitamente anticapitalista, de contestação ao establishment e à manutenção do status quo da ordem ideológica, política e econômica instalada. Há, porém, uma fragilidade nesta abordagem um tanto idealizada que manifesta uma indulgência demasiada com os movimentos jovens, plenos de contestação, mas vazios nas alternativas que sugerem como opção.

Realizado há mais 45 anos, com a ambição de retratar um período peculiar da sociedade norte-americana, Zabriskie Point por vezes soa por demais datado e preso a um estilo “hiponga”, típico daquele momento. Mas não há como negar, porém, que o olhar europeu (estrangeiro) de Antonioni foi suficientemente bem sucedido para transmitir o espírito da América naquele início de década. Ainda que não tenha sido bem recebido no lançamento, ficando aquém das expectativas nas bilheterias, o longa-metragem foi reavaliado ao longo do tempo e hoje pode ser classificado como um dos melhores trabalhos de Michelangelo Antonioni.


Pelo menos duas sequências icônicas de Zabriskie Point passaram para a história. A primeira delas é a sessão de amor coletivo em pleno deserto com vários casais transando em meio às areias, um símbolo do sexo livre em conexão com as forças da natureza. A outra sequência de destaque, ainda hoje impactante, é a explosão final, metáfora do desejado fim do consumismo capitalista. De beleza plástica excepcional, a sequência ganha ares de pintura pop art a lá Andy Warhol ou Jackson Pollock. Com direito a uma hipnótica trilha sonora composta pelo Pink Floyd.

Na época do lançamento mundial Zabriskie Point foi censurado no Brasil pela explosiva mistura de política, contestação, corpos nus e sexo livre.

Assista o trailer: Zabriskie Point

(Texto originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em novembro de 2016)

Jorge Ghiorzi

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