segunda-feira, 25 de setembro de 2017

“O Tesouro de Sierra Madre”: maldição do ouro


O diretor John Huston, notório aventureiro e bon vivant, sempre se mostrou um grande conhecedor da alma humana, especialmente das suas virtudes e fraquezas. Um fino, e invariavelmente cínico, exame do caráter intrínseco de suas personagens é facilmente identificado em seus filmes. Em última análise, John Huston era um grande entendido desta espécie chamada “ser humano”, com suas contradições, ambições e desejos secretos. Já em seu primeiro filme como diretor, o clássico noir Relíquia Macabra (Maltese Falcon, 1941), após anos atuando apenas como roteirista em Hollywood, Huston desenvolve este olhar revelador para a verdadeira natureza interior das personagens.

No final dos anos 30, quando leu o livro “O Tesouro de Sierra Madre”, do misterioso e recluso escritor B. Traven, John Huston se encantou com a obra e achou que daria um ótimo filme. A história envolvia temas muito estimados por Huston: viagem, aventura, um país estrangeiro (México) e distância das zonas urbanas. Este deveria ser o segundo filme dirigido por ele, mas problemas legais relacionados à compra dos direitos (incluindo a dificuldade de negociar com B. Traven apenas por cartas) e também de produção, acabaram por adiar o filme por vários anos. O projeto só foi retomado em 1946, após John Huston voltar da Segunda Guerra Mundial, onde serviu ao exército norte-americano.


A história transcorre no ano de 1925, após a revolução mexicana, quando o México ainda vivia um período de instabilidade social, com bandoleiros levando terror às populações dos pequenos vilarejos. Sem trabalho, multidões de mexicanos pobres vagam em busca de oportunidades para ganhar alguns trocados. Mas, terras “sem esperança” costumam se oferecer como terras de oportunidade para quem se dispõe a arriscar e ousar.

É neste ambiente de poucas perspectivas no interior do México que vivem dois forasteiros norte-americanos, Fred Dobbs (Humphrey Bogart) e Bob Curtin (Tim Holt). Literalmente mendigando pelas ruelas da pequena cidadezinha empoeirada, os dois ficam sabendo por um antigo garimpeiro (Walter Huston, pai de John Huston) que há grande possibilidade de existir ouro em abundância nas montanhas próximas da cidade. Seduzidos por esta possibilidade de enriquecimento, os três se unem e partem em busca do sonho dourado.


Prestes a completar 70 anos, O Tesouro de Sierra Madre (The Treasure of the Sierra Madre) foi lançado em 1948, e apesar de não ter sido um sucesso de bilheteria em sua época, o filme de John Huston sempre foi prestigiado pela crítica e pela indústria de Hollywood. No ano seguinte a produção concorreu ao Oscar e conquistou os prêmios de Diretor, Roteiro Adaptado e Ator Coadjuvante (Walter Huston). Além de ser reconhecido como um dos melhores trabalhos da extensa filmografia de John Huston, O Tesouro de Sierra Madre aparece na 30ª posição da lista do American Film Institute (AFI) com os 100 melhores filmes norte-americanos de todos os tempos.

Na trama de Relíquia Macabra, que tratava da essencialmente da ambição humana, um dos personagens definiu que a ilusão é a “matéria prima da qual são feitos os sonhos”. Sob certos aspectos, O Tesouro de Sierra Madre seguiu uma abordagem semelhante, agregando, entretanto, um novo e poderoso ingrediente: a ganância. É ela que move o personagem principal, Dobbs, interpretado por Bogart. O velho garimpeiro, com a sabedoria adquirida pelos muitos anos vividos, disse que o ouro provoca uma maldição: muda o caráter dos homens. O cético Dobbs desdenha da afirmação, alegando que é imune à sedução destruidora do brilho dourado das pepitas de ouro. Tudo o que ele desejava era conseguir alguns poucos milhares de dólares para viver uma boa vida até morrer. Nada mais.


O Tesouro de Sierra Madre é acima de tudo uma pequena fábula moral contada num espetáculo cinematográfico típico da Hollywood dos anos 30/40. Narrativa clássica, grandes estrelas, trilha sonora pomposa, com ação, aventura, tiroteios e suspense. Pacote completo. Ainda que em certas passagens possa parecer hoje um tanto ingênuo e forçado (a presença de um bandoleiro meio bufão, e simplificações em determinadas situações cruciais, como o surgimento de um quarto personagem e seu destino), não fossem algumas pequenas transgressões, seria um filme absolutamente corriqueiro. Mas John Huston soube fugir desta armadilha. Em primeiro lugar, filmou quase totalmente em locações reais no México, o que não era nem um pouco usual na Hollywood da época. Esta decisão foi fundamental para estabelecer a necessária verossimilhança da história. Outro acerto do realizador foi a escalação de Humphrey Bogart num papel totalmente inesperado para um ator reconhecido por viver galãs durões de bom coração. Com uma interpretação visceral, Bogart entregou-se totalmente ao personagem, mas foi, no entanto, criminosamente esquecido no Oscar daquele ano.

O Tesouro de Sierra Madre é um clássico estimado da cinematografia norte-americana, que, no entanto, parece ter perdido um pouco de seu vigor com a passagem das décadas.

Assista o trailer: O Tesouro de Sierra Madre

(Texto originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em dezembro de 2016)

Jorge Ghiorzi

Agnaldo, Perigo à Vista (1969)



quarta-feira, 20 de setembro de 2017

“Mãe!”: mistérios da criação


A polêmica com o novo filme de Darren Aronofsky surgiu já em sua primeira exibição no recente Festival de Veneza, encerrado há menos de um mês. E só tem crescido onde quer que seja exibido. Mãe! (Mother!) já nasceu com este marco de discórdia. Ou amam, ou odeiam. E na zona cinzenta intermediária as discussões são as mais acaloradas dos últimos anos. De fato o filme mobiliza, incomoda, provoca e subverte expectativas. Nos casos mais extremos, dá um nó mental nos mais desavisados. Portanto, ao encarar a obra, abra a mente e embarque nesta viagem.

Na superfície, no primeiro nível narrativo, Mãe! conta a história de um casal, interpretado por Jennifer Lawrence e Javier Bardem, recém-casados que estão morando num enorme casarão em reforma, isolado, distante da cidade. Ele é um poeta com bloqueio criativo. Ela, grávida, se dedica aos afazeres domésticos. A chegada inesperada de um visitante desconhecido (Ed Harris), em busca de um quarto para alugar, coloca em desequilíbrio a harmonia do casal. A situação se torna realmente incontornável quando aparece também a esposa do visitante (Michelle Pfeiffer, retornando ao cinema) e culmina logo em seguida com a chegada dos filhos adultos. Neste ponto a narrativa rompe todas as amarras que precariamente a mantinham dentro de uma perspectiva minimamente realista. Pelos olhos estarrecidos da personagem de Jennifer Lawrence somos testemunha de episódios surrealistas e caóticos que mostram dezenas de pessoas literalmente invadindo a casa como incontroláveis zumbis, em sequências que muito lembram o clássico A Noite dos Mortos Vivos, de George A. Romero.


Apesar da referência ao filme de Romero, Mãe! não é um filme convencional de terror, nem de terror psicológico, como Cisne Negro, do mesmo Aronofsky, ainda que eventualmente possa despertar sensações de genuíno horror. A verdade é que em seus momentos iniciais parece estarmos diante de um drama de suspense, mas logo o espectador abandona esta primeira leitura, pois algo se mostra fora do lugar nas regras do gênero. Mãe! é uma perturbadora e radical fábula que mistura fantasia, delírio e devaneio, com forte apelo religioso e existencial.

Com Mãe! Darren Aronofsky aprofunda e radicaliza a experiência de cinema expressionista já exercida no citado Cisne Negro. Assim como naquele, a expressão dos sentimentos interiores de um personagem altera, distorce e recria a realidade circundante percebida. O novo trabalho de Aronofsky assume deliberadamente uma fantasia metafísica que quebra as leis naturais e subverte as constantes de tempo e espaço. Cabe ao espectador aceitar a proposta antes de mergulhar na imensidão de símbolos e analogias que vão surgindo num ritmo tão intenso que exige esforço redobrado na elaboração dos significados.


Profundamente alegórico e metafórico, Mãe! pode ser encarado como uma parábola com conotações bíblicas e a chave para sua compreensão pode ser uma pequena pista nos créditos finais. Neles o personagem de Javier Bardem é creditado como “Him” (“Ele”, assim mesmo, com letra maiúscula). Se levarmos isto em conta, as coisas começam a fazer algum sentido tangível e ganhar coerência. “Ele” (Bardem), o poeta em sua luta interior para escrever o poema perfeito, seria o Criador. Artista todo-poderoso que inspira veneração de fãs – súditos. A “Mãe” (Jennifer Lawrence), mãe da humanidade, que carrega no ventre o mistério da criação, fruto do Criador, zela pelo bem-estar da família e da paz no lar. E por fim, a “Casa”, imagem símbolo do Paraíso, isolada no Jardim do Éden, a morada do primeiro casal, Adão e Eva. Ponto comum que equilibra este triunvirato simbólico (Criador – Mãe – Paraíso) é a simbologia do Sagrado Coração de Jesus, transubstanciado na imagem de uma pedra/diamante venerada pelo personagem de Javier Bardem.


Darren Aronofsky, que cresceu dentro da cultura judaica, mas não se considera um religioso, já abordou abertamente temas religiosos em dois filmes: A Fonte da Vida (2006) e Noé (2014), uma versão controversa da história bíblica da Arca de Noé que salva da destruição a vida no planeta Terra. Aliás, o ativismo ambiental e ecológico é outra das facetas do realizador, cujos temas subjacentes também são encontrados em Mãe!, uma obra complexa e perturbadora que paga o preço da incompreensão pela ousadia obsessiva do realizador.

Assista o trailer: Mãe!

Jorge Ghiorzi

Terremoto (1974)



domingo, 17 de setembro de 2017

“A Sangue Frio”: crime e castigo


Inspirado na história real de dois ex-detentos que em 1959 assassinam uma família no interior do Kansas (EUA), o escritor e dramaturgo Truman Capote escreveu em 1966 o livro “A Sangue Frio”. O romance marcou época por desenvolver uma fórmula inovadora de escrita mesclando jornalismo com literatura. O livro, produzido após um longo processo de reveladoras entrevistas com os protagonistas do episódio, é basicamente uma grande e minuciosa reportagem romanceada, que valeu à Truman Capote o título de criador do “romance-verdade” (nonfiction novel). O livro marcou época, revolucionou o mercado editorial e influenciou fortemente uma nova geração de escritores.

O impacto do romance-verdade foi tamanho que inevitavelmente acabou atraindo também o interesse do cinema. O formato narrativo da obra de Truman Capote era muito próximo a de um roteiro de cinema. O livro se mostrava perfeito para virar um filme. E assim ocorreu. Apenas um ano após o lançamento da publicação, o filme chegou às telas. No entanto, apesar de Capote também escrever para o cinema (roteirizou, por exemplo, “Os Inocentes” em 1961, baseado na obra de Henry James), na adaptação do seu próprio livro ele não consta como roteirista.


A Sangue Frio (In cold blood) foi escrito e dirigido por Richard Brooks, realizador de filmes como Sementes da Violência (1955); Gata em Teto de Zinco Quente (1958); Os Profissionais (1966); À Procura de Mr. Goodbar (1977), com Diane Keaton e O Homem com a Lente Mortal (1982), com Sean Connery. Filmado em austero e sóbrio preto-e-branco, com locações na região onde ocorreu o crime, a adaptação cinematográfica apresenta uma atmosfera semi-documental, bastante próxima à proposta original da obra literária de Capote. Reforçando ainda o enfoque realista, a produção contou com apoio da própria força policial do Kansas, na reconstituição dos fatos, e consultoria profissional de psiquiatras que auxiliaram na abordagem e construção dos perfis psicológicos dos assassinos retratados no filme. A maior veracidade possível orientou a realização de A Sangue Frio.

Dois ex-condenados, em liberdade condicional, Perry Smith (Robert Blake) e Dick Hickock (Scott Wilson) decidem invadir a casa da família Clutter, numa cidadezinha do Kansas, em busca de um suposto cofre com 10 mil dólares. A dica foi dada por um antigo parceiro de cela. Seria um trabalho fácil e muito rentável. Sem riscos. Ao invadir a casa, descobrem que não há nenhum cofre, e muito menos dinheiro. Acabam roubando apenas 43 dólares e, decepcionados pelo desfecho, decidem num impulso matar toda a família que foi mantida refém. Assassinam cruelmente, a tiros e facadas, o pai, a mãe e o casal de filhos, sem uma motivação racional. Após um período de pequenos golpes para conseguir dinheiro para fugirem para o México, a dupla é detida em Las Vegas por estarem dirigindo um carro roubado.

Os primeiros minutos do filme de Richard Brooks são conduzidos por uma eficiente montagem paralela que mostra a tranquila rotina da família Clutter alternada com o encontro, os preparativos e a viagem dos assassinos rumo ao assalto premeditado, que terminaria num inesperado banho de sangue. A situação é clássica: dois outsiders, com antecedentes criminais, tentando o último grande golpe para mudar definitivamente de vida, deixando para trás seus problemas, frustrações e fracassos. O que poderia ser a redenção de uma existência sem perspectivas acabou por selar o destino de dois desajustados sociais. A afinidade de propósitos de Perry e Dick, que por vezes insinuam uma latente relação homossexual, supre o vazio existencial dos dois, provenientes de famílias disfuncionais e problemáticas.


Uma chave para a compreensão da atitude dos criminosos é fornecida em dado momento por um dos personagens envolvidos na investigação. Ele traz uma teoria psicanalítica do perfil de condenados que afirma que todo assassino sem motivação clara e definida é fruto de lares com famílias problemáticas. É esta a tese que embasa o livro de Truman Capote, e também o filme de Richard Brooks.

Apesar da história ser contada a partir do encontro da dupla para um último golpe, fica flagrante a predominância do protagonismo do personagem Perry Smith, magnificamente interpretado por Robert Blake, que nos anos 70 virou astro da TV ao protagonizar a série policial “Baretta”. Numa macabra coincidência, que reforça a máxima de que “a vida imita a arte”, o ator foi acusado de matar a esposa no início dos anos 2000. Robert Blake chegou a ser detido e posteriormente, em 2005, foi declarado inocente.

Na apresentação de Perry Smith em A Sangue Frio, logo na sua primeira cena, ele aparece descendo de um ônibus, carregando as bagagens e uma enorme caixa na costas. Uma apresentação poderosamente gráfica da psicologia do personagem. Perry carrega metaforicamente sob os ombros o peso de todos seus problemas, tal uma cruz de penitência que deve conduzir em todo seu calvário. Ambos, Dick e Perry, são filhos de famílias problemáticas. As relações tormentosas com seus pais e mães representam origem, fonte e causa de seus fracassos pessoais. Aos poucos, ao longo da narrativa, são apresentadas pequenas passagens que explicitam as difíceis relações familiares envolvidas. Por decisão de Richard Brooks (autor do roteiro, vale lembrar), foi incluída uma longa sequência em flashback, de forte caráter edipiano, ausente no livro de Truman Capote. Nesta sequência é mostrado um episódio de conflito familiar de forte impacto emocional, presenciado por Perry quando criança, que haveria de afetar sua futura mente criminosa.


Após enfrentar o Júri e a condenação de culpados, a dupla de assassinos recebe a pena máxima de enforcamento. Já no corredor da morte, à beira da caminhada para o cadafalso, Perry Smith profere um poderoso monólogo, quase uma auto-confissão de seu fracasso como ser humano. A fala, magistralmente construída por Richard Brooks, e interpretada com intensidade por Robert Blake, acontece em frente a uma janela enquanto chove. As gotas de chuva correm pela janela e projetam sobras no rosto de Perry, que parece chorar (sem fazê-lo de fato) enquanto fala. Um momento de humanismo ante o pesadelo do enforcamento eminente.

A Sangue Frio é um filme de estilo clássico, sóbrio, pesado e perturbador. Incômodo por vezes, frio quase sempre, mas nunca manipulador das emoções.

Assista o trailer: A Sangue Frio

(Texto originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em dezembro de 2016)

Jorge Ghiorzi

O Assassino (1961)



quinta-feira, 14 de setembro de 2017

“Feito na América”: herói bandido


Alguns dos episódios mais marcantes e icônicos da geopolítica mundial dos anos 80 foram resgatados em Feito na América (American Made) para contar a história real, pra lá de idealizada, do piloto norte-americano Barry Seal que fez fortuna atuando ao mesmo tempo como informante da CIA e traficante de drogas. Assim, assuntos como a Era Reagan, o escândalo Irã-Contras e o cartel de Medelín, sem esquecer a Guerra Fria que se expandia pela América Central, voltam a ser lembrados, porém, sob uma ótica um tanto picaresca, mais adequada a um veículo de entretenimento como esta produção estrelada por Tom Cruise.

Feito na América marca o reencontro do diretor Doug Liman com o astro Tom Cruise, depois da interessante ficção científica No Limite do Amanhã de 2014. Quem acompanha as séries Narcos e Conexão Escobar já deve ter ligado o nome à pessoa. O piloto Barry Seal já apareceu como personagem secundário nas duas produções. Agora, ele chega às telas na condição de protagonista de uma produção hollywoodiana padrão.


Sinal dos tempos. Se há pouco mais de 30 anos Tom Cruise conquistou os céus - e a fama - como o piloto de caça aéreo Maverick em Top Gun – Ases Indomáveis, desta vez volta a pilotar aviões encarnando um cínico anti-herói. No final dos anos 70 Barry Seal era piloto de voos comerciais da TWA. A vida era boa, tranquila, sem sobressaltos. Mas faltava um tanto de emoção. A oportunidade de uma vida mais estimulante surge quando recebe um convite para trabalhar secretamente a serviço da CIA fazendo voos rasantes para fotografar supostas bases militares em países da América Central, apoiados pela então União Soviética, inimigo mortal do Tio Sam. Além de faturar um bom dinheiro extra, era diversão em estado puro. Sem dizer que estaria trabalhando em prol da grande nação norte-americana. Não que isto importasse realmente de fato, mas era uma boa desculpa para aceitar uma atividade clandestina que estava às margens da ilegalidade.

E este limite logo seria ultrapassado. Poderosos de traficantes colombianos, dentre eles um iniciante chamado Pablo Escobar, identificam naquele ousado piloto de aviões de pequeno porte uma oportunidade de ouro para transportar drogas para os EUA sem despertar grandes suspeitas. Objetivo e pragmático como sempre, Barry Seal aceita o desafio. Afinal, se estiver no inferno, abrace o capeta. Assim inicia a ascensão, glória e desgraça de um agente duplo a serviço de dois patrões.


Em sua versão cinematográfica o Barrry Seal interpretado por Tom Cruise se mostra efetivamente como um inocente útil. A motivação de ganho financeiro não parece estar na justificativa para suas atitudes. O clásico self made man, que está na raiz de uma nação capitalista como a norte-americana, não é o objeto de análise de Feito na América. O que sobressai é apenas o desejo – quase adolescente – do personagem em confrontar as autoridades, ou mesmo o Sistema, se avançarmos no conceito. Não há razões morais que problematizem a personalidade de Barry Seal, que, em última análise, é um grande alienado político. Ao fim e ao cabo o que resta é apenas um grande vazio. Um hiato de banalidades inconsequentes.


A usual câmera nervosa de Doug Liman se mostra muito presente e seu efeito seduz a atenção do espectador dando a entender que o que assistimos é mais e melhor do que de fato é: uma bolha de sabão, bela e oca. Um detalhe de interesse brazuca: a fotografia é do brasileiro-paraguaio César Charlone. Em sendo um veículo para a brilhatura individual de Tom Cruise, duas coisas são certas: suas clássicas corridinhas e a onipresença do astro em 99% das cenas.

Por tratar de uma história verídica Feito na América traz algum interesse para quem deseja saber mínima e superficialmente o que foram aqueles anos 80 em termos de política externa dos EUA. Mas não jogue todas as suas fichas nesta versão da história. Apenas divirta-se com ela.

Assista o trailer: Feito na América

Jorge Ghiorzi

O Homem de Alcatraz (1962)



terça-feira, 12 de setembro de 2017

“Amityville – O Despertar”: terror barato


Acredite se quiser. A saga da casa assombrada “Amityville” chega ao seu 10º (!) capítulo. Iniciada em 1979, com Horror em Amityville, a série de filmes é desigual e na verdade nunca despertou grande interesse. Isto explica porque apenas cinco produções foram exibidas nos cinemas, as demais ou foram direcionadas para a TV ou distribuídas diretamente para o mercado de home vídeo. O grande apelo do filme original foi o fato de ter sido baseado na história verídica do massacre de uma família, supostamente motivado por forças malignas que habitariam uma casa em Amityville (EUA).

Passados quase 40 anos, os espíritos demoníacos seguem assombrando o casarão. E o cinema também. Afinal, sempre há novos incautos dispostos a levar velhos sustos. Só isto explica a existência deste Amityville – O Despertar (Amityville: The Awakening), uma produção absolutamente desnecessária que nada acrescenta à mitologia da franquia, a não ser alguns dólares a mais nos bolsos dos produtores.


O endereço é o mesmo: Ocean Avenue, 112 – Long Island. Apesar de um passado assustador, a casa responsável por uma série de mortes violentas continua de pé, a espera de novos moradores. E eles chegam: uma família formada por uma mãe, Joan (Jennifer Jason Leigh), e seus três filhos, a adolescente Belle (Bella Thorne), a pequena Juliet (McKenna Grace), e o também adolescente James (Cameron Monaghan), que vive em coma vegetativo após um acidente, preso a uma cama numa pequena UTI doméstica montada no quarto.

Logo a casa começa a manifestar seus poderes, que afetam inicialmente James que gradualmente revela pequenos sinais de que poderia estar despertando do coma. Paralelamente, Belle descobre o verdadeiro passado da casa (que a família ignorava!), e liga os pontos da situação: os poderes malignos do local estão se apossando de seu irmão.

Amityville – O Despertar, a exemplo de muitas outras franquias e séries de longa duração, faz uso daquele truquezinho esperto que visa conquistar a atenção e a empatia das novas plateias: os protagonistas são sempre adolescentes. Os adultos são meros coadjuvantes que apenas cumprem uma função dramática secundária. Nem sempre funciona, é verdade. E aqui estamos diante de um caso destes. Os personagens são por demais rasos e o elenco pouco ajuda a superar este problema.


Isto para não falarmos de um roteiro que não se decide por qual caminho seguir. Por vezes abre algumas possibilidades interessantes de abordagem, mas desperdiça todas elas. A mais flagrante é o equívoco em não seguir no caminho de um exercício de meta-linguagem, semelhante ao adotado em Pânico, onde os personagens eram inseridos num universo fictício autorreferente, com plena consciência de estarem em um filme de terror. Em dado momento os protagonistas adolescentes de Amityville – O Despertar se referem ao passado da casa como um fato real que gerou um filme, o citado Horror em Amityville de 1979, que inclusive assistem em DVD numa sessão coletiva em casa. Seria sem dúvida um caminho muito estimulante a seguir, mas o filme dirigido por Franck Khalfoun (de P2 – Sem Saída e Maníaco) não embarca nesta viagem. Opta em seguir a trilha preguiçosa de tentar pregar sustos gratuitos e forçados na plateia a cada dez minutos.

Desconexo em sua lógica e desleixado em suas soluções fáceis (absolutamente inconvincentes) O Despertar não consegue sequer a façanha mínima de se apresentar como um filme de terror digno de nota. É um equívoco que decepciona do primeiro ao último minuto. Que os espíritos do mal que habitam aquela casa mal assombrada sejam deixados em paz, de uma vez por todas. Fica a dica.

Assista o trailer: Amityville – O Despertar

Jorge Ghiorzi

Exorcismo Negro (1974)



terça-feira, 5 de setembro de 2017

“Os Amores de Maria”: desejo e paixão


Em 1946 o cineasta John Huston dirigiu um documentário de encomenda para o Exército norte-americano. A proposta era retratar a recuperação dos soldados que voltaram da Segunda Guerra Mundial com problemas psíquicos, internados num hospital militar. O filme, com pouco menos de uma hora de duração, chamado Let there be light (disponível no You Tube), ficou proibido para exibições públicas até 1980. A alegada razão para a interdição eram as fortes emoções provocadas pelo impacto das imagens e os tocantes depoimentos dos soldados abalados pela guerra.

Cerca de quatro anos após a liberação, cenas deste documentário foram utilizadas na sequência de abertura de Os Amores de Maria (Maria’s lovers, 1984), dirigido nos EUA pelo russo Andrei Konchalovsky. Faz todo sentido. Os dois filmes tratam do mesmo tema de fundo: os efeitos da guerra na sanidade mental dos soldados. Um sob a forma de documentário, outro com um tratamento de ficção. As imagens em preto e branco mostram sessões de terapia com os soldados relatando seus problemas para psicólogos militares. Um a um os depoimentos vão se sucedendo, até que acontece uma passagem de cenas reais do documentário para cenas encenadas (ainda descoloridas) por John Savage, interpretando um soldado em recuperação. Assim somos apresentados ao personagem Ivan Bibic, protagonista da história de Os Amores de Maria.


Após sobreviver um período detido por japoneses num campo de prisioneiros, na Segunda Guerra Mundial, Ivan Bibic retorna para a casa do pai (Robert Mitchum), numa comunidade de imigrantes iugoslavos nos subúrbios de Pittsburgh, na Pensilvânia (EUA). Durante o tempo em que ficou preso o soldado jurou amor à sua paixão de infância, a bela e virgem Maria Bosic (Nastassja Kinski). Na volta, eles reatam a relação interrompida e acabam casando, contra a vontade do pai, que julga Maria uma mulher inadequada para o filho. Além do que, ele também demonstra uma paixão recolhida pela jovem, que é filha de uma antiga amante do passado. Logo após o casamento, a fragilidade de Ivan se manifesta na impotência psicológica. Bloqueado, ele não consegue fazer amor com sua esposa, apenas com outras mulheres. Maria permanece virgem, e o casamento se desmancha no ar. Até que surge na cidade um músico/cantor andarilho, Clarence Butts (Keith Carradine), que seduz Maria e precipita o desfecho da história.

Por caminhos um tanto tortuosos, se estabelece, em algum nível, o clássico triângulo amoroso, mas com nuances mais profundas e simbólicas. Maria inspira paixões em todos os homens que a conhecem, o que nos permite uma livre interpretação para uma analogia religiosa. A virgem Maria é objeto de paixão (idolatria?) do Pai (pai de Ivan), do Filho (o próprio Ivan) e do Espírito Santo (Clarence Butts). A via-crúcis de Ivan, em busca da redenção, é a sustentação da narrativa em Os Amores de Maria.


O retorno de Ivan para casa mostra um descolamento da realidade em sua mente, uma sensação de não-pertencimento daquela comunidade que fez parte da sua história de vida. No período de prisão a idolatria à amada o manteve vivo. Orientou seu retorno. Mas não foi suficiente para a felicidade. O amor pensado não suportou a realidade do amor vivido. A fantasia da paixão não encontrou ressonância nos fatos. O romantismo perdeu para a vida real.

O desejo sexual movimenta os personagens protagonistas do filme de Andrei Konchalovsky. Com resultados distintos para cada um deles, evidentemente. Enquanto a virgem e ingenuamente sedutora Maria é uma explosão de hormônios em ebulição, o pobre Ivan sucumbe pela impossibilidade de dar vazão plena aos desejos carnais pela esposa. Há inclusive, uma sequência exemplar que explora belamente esta relação que, além de não se concretizar, os afasta definitivamente. No mesmo enquadramento vemos Ivan e Maria, separados por uma parede. Ivan está no quarto, sentado em um pequeno triciclo infantil em frente a um espelho. O retrato perfeito de uma personalidade imatura. Ivan é uma criança, frágil e indefesa. Maria, por sua vez, está no banheiro, vestindo uma sexy lingerie preta. A imagem de uma mulher sedutora, poderosa e altiva. Há mais do que uma parede separando os universos de Ivan e Maria.



O diretor Konchalovsky demonstra um tratamento carinhoso e compreensivo ao casal. Não há vilões. Apenas vítimas. Ele não julga, apenas testemunha uma relação tormentosa e conflitada, sem optar por nenhum dos lados. Isto equilibra a condução da história e proporciona ao expectador a possibilidade de compartilhar as ações e reações de Ivan e Maria sem comprometer o engajamento a nenhum dos lados. Aqui o realizador demonstra uma sensibilidade que, no entanto, foi totalmente desnecessária em seu filme seguinte, Expresso para o Inferno (1986), um drama de ação com Jon Voight vivendo um prisioneiro em fuga que se esconde num trem desgovernado sem controle. Sem falar em Tango e Cash – Os Vingadores (1989), com Sylvester Stallone e Kurt Russell.

Os Amores de Maria não se caracteriza exatamente como um filme romântico. É por demais melancólico, lento e pesado para quem busca este tipo de experiência. No entanto, possui elementos típicos do gênero: uma história de amor (ainda que não convencional); um casal de jovens atores com apelo midiático (particularmente Nastassja Kinski, no auge da beleza); música marcante (a bela “Maria’s eyes”, composta e interpretada por Keith Carradine) e fotografia exuberante (de Juan Ruiz Anchía).

Uma curiosidade. Quando lançado no Brasil, o filme recebeu inicialmente o título de Os Amantes de Maria. Anos depois, em seu lançamento em home video, o título foi alterado para Os Amores de Maria, que adotamos nesta resenha.

Assista o trailer: Os Amores de Maria

(Texto originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em dezembro de 2016)

Jorge Ghiorzi

Sessão de Cinema