segunda-feira, 25 de setembro de 2017

“O Tesouro de Sierra Madre”: maldição do ouro


O diretor John Huston, notório aventureiro e bon vivant, sempre se mostrou um grande conhecedor da alma humana, especialmente das suas virtudes e fraquezas. Um fino, e invariavelmente cínico, exame do caráter intrínseco de suas personagens é facilmente identificado em seus filmes. Em última análise, John Huston era um grande entendido desta espécie chamada “ser humano”, com suas contradições, ambições e desejos secretos. Já em seu primeiro filme como diretor, o clássico noir Relíquia Macabra (Maltese Falcon, 1941), após anos atuando apenas como roteirista em Hollywood, Huston desenvolve este olhar revelador para a verdadeira natureza interior das personagens.

No final dos anos 30, quando leu o livro “O Tesouro de Sierra Madre”, do misterioso e recluso escritor B. Traven, John Huston se encantou com a obra e achou que daria um ótimo filme. A história envolvia temas muito estimados por Huston: viagem, aventura, um país estrangeiro (México) e distância das zonas urbanas. Este deveria ser o segundo filme dirigido por ele, mas problemas legais relacionados à compra dos direitos (incluindo a dificuldade de negociar com B. Traven apenas por cartas) e também de produção, acabaram por adiar o filme por vários anos. O projeto só foi retomado em 1946, após John Huston voltar da Segunda Guerra Mundial, onde serviu ao exército norte-americano.


A história transcorre no ano de 1925, após a revolução mexicana, quando o México ainda vivia um período de instabilidade social, com bandoleiros levando terror às populações dos pequenos vilarejos. Sem trabalho, multidões de mexicanos pobres vagam em busca de oportunidades para ganhar alguns trocados. Mas, terras “sem esperança” costumam se oferecer como terras de oportunidade para quem se dispõe a arriscar e ousar.

É neste ambiente de poucas perspectivas no interior do México que vivem dois forasteiros norte-americanos, Fred Dobbs (Humphrey Bogart) e Bob Curtin (Tim Holt). Literalmente mendigando pelas ruelas da pequena cidadezinha empoeirada, os dois ficam sabendo por um antigo garimpeiro (Walter Huston, pai de John Huston) que há grande possibilidade de existir ouro em abundância nas montanhas próximas da cidade. Seduzidos por esta possibilidade de enriquecimento, os três se unem e partem em busca do sonho dourado.


Prestes a completar 70 anos, O Tesouro de Sierra Madre (The Treasure of the Sierra Madre) foi lançado em 1948, e apesar de não ter sido um sucesso de bilheteria em sua época, o filme de John Huston sempre foi prestigiado pela crítica e pela indústria de Hollywood. No ano seguinte a produção concorreu ao Oscar e conquistou os prêmios de Diretor, Roteiro Adaptado e Ator Coadjuvante (Walter Huston). Além de ser reconhecido como um dos melhores trabalhos da extensa filmografia de John Huston, O Tesouro de Sierra Madre aparece na 30ª posição da lista do American Film Institute (AFI) com os 100 melhores filmes norte-americanos de todos os tempos.

Na trama de Relíquia Macabra, que tratava da essencialmente da ambição humana, um dos personagens definiu que a ilusão é a “matéria prima da qual são feitos os sonhos”. Sob certos aspectos, O Tesouro de Sierra Madre seguiu uma abordagem semelhante, agregando, entretanto, um novo e poderoso ingrediente: a ganância. É ela que move o personagem principal, Dobbs, interpretado por Bogart. O velho garimpeiro, com a sabedoria adquirida pelos muitos anos vividos, disse que o ouro provoca uma maldição: muda o caráter dos homens. O cético Dobbs desdenha da afirmação, alegando que é imune à sedução destruidora do brilho dourado das pepitas de ouro. Tudo o que ele desejava era conseguir alguns poucos milhares de dólares para viver uma boa vida até morrer. Nada mais.


O Tesouro de Sierra Madre é acima de tudo uma pequena fábula moral contada num espetáculo cinematográfico típico da Hollywood dos anos 30/40. Narrativa clássica, grandes estrelas, trilha sonora pomposa, com ação, aventura, tiroteios e suspense. Pacote completo. Ainda que em certas passagens possa parecer hoje um tanto ingênuo e forçado (a presença de um bandoleiro meio bufão, e simplificações em determinadas situações cruciais, como o surgimento de um quarto personagem e seu destino), não fossem algumas pequenas transgressões, seria um filme absolutamente corriqueiro. Mas John Huston soube fugir desta armadilha. Em primeiro lugar, filmou quase totalmente em locações reais no México, o que não era nem um pouco usual na Hollywood da época. Esta decisão foi fundamental para estabelecer a necessária verossimilhança da história. Outro acerto do realizador foi a escalação de Humphrey Bogart num papel totalmente inesperado para um ator reconhecido por viver galãs durões de bom coração. Com uma interpretação visceral, Bogart entregou-se totalmente ao personagem, mas foi, no entanto, criminosamente esquecido no Oscar daquele ano.

O Tesouro de Sierra Madre é um clássico estimado da cinematografia norte-americana, que, no entanto, parece ter perdido um pouco de seu vigor com a passagem das décadas.

Assista o trailer: O Tesouro de Sierra Madre

(Texto originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em dezembro de 2016)

Jorge Ghiorzi

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