quarta-feira, 25 de outubro de 2017

“O Formidável”: Godard 24 quadros por segundo


Mais do que o enfant terrible da Nouvelle Vague francesa, Jean-Luc Godard foi o maior símbolo do movimento cinematográfico que reformatou uma nova maneira de fazer cinema a partir do início dos anos 60. Com opiniões fortes e uma visão bastante particular de como os filmes deveriam ser feitos – e a que propósito deveriam servir – o realizador francês tornou-se tão grande quanto seus filmes. Praticou um cinema de autor na sua forma mais radical e desenvolveu para si próprio um “personagem” ao qual se entregou com indisfarçável prazer. Agora, o “personagem” Godard, ele próprio, participa de um filme biográfico como protagonista revivendo um período atribulado da sua vida pessoal / profissional no final dos anos 60.

O Formidável (Le redoubtable), dirigido por Michel Hazanavicius, é baseado no livro "Um Ano Depois" escrito pela atriz Anne Wiazemsky que relata sua relação com Godard, com quem foi casada por alguns poucos anos (após o fim do relacionamento do diretor com Anna Karina). O auge do romance ocorre durante o período das filmagens de A Chinesa, em 1967, às vésperas dos movimentos de Maio de 68. No papel de Godard está o ator Louis Garrel (num desempenho excepcional) conhecido por interpretar um dos jovens do trio central de Os Sonhadores, de Bernardo Bertolucci.


O retrato de Godard apresentado na obra de Anne Wiazemsky, e por consequência no filme de Hazanavicius, não é exatamente lisonjeiro, pelo contrário, revela uma pessoa extremamente complexa, cuja convivência na intimidade estava longe de ser das mais agradáveis. Polemista por excelência, o realizador francês não deixava barato nenhuma discussão e comprava todas as brigas que estivessem ao seu alcance. Apontar incoerências dos adversários – e da sociedade francesa em geral – era seu esporte favorito. Enfim, um ranzinza de carteirinha em tempo integral, a 24 quadros por segundo.

Toda uma iconografia clássica de símbolos, características dos filmes de Godard, estão presentes em O Formidável. Lá estão os reconhecidos créditos em letras vermelhas e azuis, uma profusão de imagens de cartazes, placas e painéis de rua, e a referência constante aos livros, especialmente aos populares policiais pulp. Além destas citações gráficas, que remetem ao imaginário fílmico de Godard, o filme de Michel Hazanavicius por vezes emula também o clima de alguns dos mais significativos trabalhos do diretor, como A Chinesa (por óbvio, pois retrata alguns bastidores da produção), O Demônio das Onze Horas (Pierrot le fou), Week-end à Francesa, Made in U.S.A. e especialmente a obra-prima O Desprezo, narrativa com a qual espelha uma similaridade direta por narrar também a relação turbulenta de um artista intelectual com uma estrela do cinema em ascensão, em meio a um permanente embate entre a arte, a política e o capital.


O Formidável oferece, com a devida excusa pelo trocadilho, um formidável painel de uma época de intensa agitação política e cultural, cujo ápice foram as manifestações e passeatas do movimento de Maio de 68 nas ruas de Paris. Este episódio também foi rememorado em 2003 no já citado Os Sonhadores, de Bertolucci, realizador que também aparece em O Formidável na recriação de um episódio polêmico onde Godard ofende e desacata o diretor italiano, fato que resultou num rompimento dos dois.

Vencedor do Oscar de Filme e Diretor de 2012 com O Artista, Michel Hazanavicius faz em O Formidável um trabalho ainda mais inspirado e coerente, e, em muitos aspectos, superior ao trabalho oscarizado. Não cai na tentação de referenciar em demasia a figura mítica do seu conterrâneo, colega de profissão. Ao contrário, não se recusa a expor todas as fragilidades e contradições de Jean-Luc Godard, cuja personalidade egocêntrica transita da arrogância ao bom humor, do ativista radical ao bom burguês num piscar de olhos. A tarefa arriscada e perigosa de retratar uma personalidade pública ainda viva é, antes de tudo, uma ousadia, mas Hazanavicius sai ileso desta missão ingrata e realiza um filme que se assiste com imenso prazer. Para um cinéfilo o prazer é ainda maior.

O título do filme é uma referência ao primeiro submarino nuclear francês, lançado no mesmo período em que se passam os fatos narrados, que recebeu da imprensa local o apelido de “O Formidável”.

Assista o trailer: O Formidável

Jorge Ghiorzi

quarta-feira, 18 de outubro de 2017

“Como Roubar Um Milhão de Dólares”: irresistível sedução


Paris é uma festa. Mas acrescente a este cenário lúdico uma estrela de cinema que esbanja elegância a cada movimento de seu corpo esguio. Inclua um requintado ator inglês exalando simpatia a cada frase pronunciada. Envolva tudo com uma história de conquista amorosa. E, toque final, acrescente uma pitada de suspense, e doses generosas de bom humor. Voilà! Estamos diante de uma clássica comédia romântica, que neste caso chama-se Como Roubar Um Milhão de Dólares (How to steal a million, 1966). Por fim, um conselho: consuma sem moderação. Deixe-se levar por este “guilty pleasure”, sem remorso.

Estrelado pela dupla Audrey Hepburn e Peter O’Toole, muito confortáveis em seus papéis, este típico produto da fase final da velha Hollywood foi dirigido com hábil leveza por William Wyler (Ben-Hur; Os Melhores Anos de Nossas Vidas; Da Terra Nascem os Homens) um dos mais versáteis e confiáveis artesãos da época que eles trabalham a soldo dos grandes Estúdios. Ao realizar Como Roubar Um Milhão de Dólares, o cineasta estava já no apagar das luzes de sua vasta e portentosa filmografia, iniciada praticamente com a adoção do cinema falado (seu primeiro filme foi realizado em 1928) e que se prolongaria ainda por mais dois trabalhos, lançados em 1968 e 1970.


Esta comédia romântica se insere também no subgênero dos filmes de grandes roubos, do qual Rififi e Topkapi (ambos de Jules Dassin) e O Grande Golpe (de Stanley Kubrick) são exemplos muito lembrados. Inclusive, durante a produção, William Wyler chegou a se aconselhar com Kubrick, em busca de inspiração para a abordagem que deveria adotar. Porém, num decisão que se mostrou acertadíssima, Wyler mudou o rumo da história e assumiu o tom de farsa, flertando abertamente com a pura comédia.

O universo da narrativa se circunscreve ao mundo das artes plásticas, onde pinturas e esculturas são supervalorizadas e disputadas em leilões por milionários em busca de um verniz cultural. É neste circuito da elite endinheirada e perdulária que circula Charles Bonnet (Hugh Griffith), um espertalhão habilidoso, especializado em falsificar obras de grandes artistas. Nas altas rodas ele é conhecido como um grande colecionador de artes. Eventualmente, quando precisa de dinheiro, ele coloca uma obra de arte “falsa” em leilão. Sem nenhum receio, afinal, quem compra é um milionário qualquer, que não está nem um pouco preocupado com autenticidade. O que vale é o status de contar com a obra de arte na sua parede.


A sorte do falsário muda quando o governo francês solicita o empréstimo de uma famosa escultura do acervo de Bonnet (obviamente falsificada) para expor no museu em Paris. Para efeitos da apólice de seguro da obra, o museu necessita fazer uma perícia técnica (mera formalidade) para comprovar sua autenticidade. Prestes a ser desmascarado e acusado de falsificador, entra em cena a filha de Bonnet, Nicole (Audrey Hepburn), disposta a tudo para salvar a reputação do pai. A única saída é arquitetar um plano para roubar a própria escultura exposta no museu (avaliada em um milhão de dólares). Para esta tarefa Nicole conta com a ajuda do misterioso e sofisticado ladrão Simon Dermott (Peter O’Toole). E, por tratar-se de uma comédia romântica, sabemos todos, de antemão, que Simon haverá também de “roubar” o coração de Nicole.

Com uma trama bem construída e igualmente bem solucionada, Como Roubar Um Milhão de Dólares propõe um pequeno jogo de aparências com o espectador, contrapondo a questão básica do original x falso ao perfil das personagens. Eles são exatamente o que sugerem de fato serem? Seus atos são honestos, sinceros? Ou são dissimulados e manipuladores? “Farsa”, esta é uma boa palavra para definir está ótima comédia que anda meio esquecida, mas merece uma revisão.


Em tempos politicamente corretos que vivemos, parece uma ousadia torcermos pelo ladrão em detrimento da lei. Mas o gênero da comédia permite tal tipo de transgressão. Além disso, como não ser seduzido pelo irresistível charme dos contraventores Simon e Nicole. Sem falar na fina ironia dos espirituosos diálogos, cheios de duplo sentido e segundas intenções, do casal em constante e ostensivo flerte.

Como Roubar Um Milhão de Dólares é um filme que inspira certa nostalgia de um tempo de inocência que não volta mais. Um prova indelével da marca da passagem do tempo (lá se vão 50 anos do lançamento) é a então quantia “astronômica” de 1 milhão de dólares, que hoje, convenhamos, é coisa de ladrão de segunda linha.


(Texto originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em dezembro de 2016)

Jorge Ghiorzi

quarta-feira, 11 de outubro de 2017

“A Morte Te Dá Parabéns”: eterno recomeço


O artifício do pesadelo, amplamente utilizado nas histórias de terror, seja na literatura, seja no cinema, é extremamente eficiente por seu efeito perturbador nos personagens – e no público também. Efeito este que é potencializado quando o pesadelo é recorrente, enredando os protagonistas numa teia de acontecimentos que parece não ter fim, apenas um eterno recomeço. Este é o truque utilizado no thriller de terror A Morte Te Dá Parabéns (Happy Death Day), uma produção com a grife da Blumhouse Productions, que há uma década atua no gênero, responsável por títulos de sucesso como Atividade Paranormal, A Entidade, Corra! e Fragmentado.

O alarme de um celular soa com uma musiquinha lembrando que é aniversário de Tree Gelbman (Jessica Rothe, uma revelação). Ela desperta num susto. No primeiro momento não entende o que se passa. Logo percebe que está no quarto de um rapaz, num dormitório universitário. Se dá conta que a noitada anterior foi forte. Arruma-se rapidamente e sai do quarto. Mais tarde, naquele dia, é surpreendida com uma festa surpresa de aniversário, organizada por colegas do campus. Inesperadamente é atacada por um estranho e morre assassinada. Corta. Na sequência, o alarme de um celular soa com uma musiquinha lembrando que é aniversário de Tree Gelbman. Ela desperta num susto. E um novo ciclo dos mesmos acontecimentos se sucede. E de novo. E de novo. Sempre com algumas alterações e acréscimos de informações, mas o mesmo desfecho já conhecido.


Os mais atentos podem lembrar de outros filmes onde os personagens ficam presos numa situação que se repete indefinidamente até sua resolução libertadora. Recentemente este recurso narrativo foi utilizado na ficção científica No Limite do Amanhã, com Tom Cruise, e também na comédia de 1993 Feitiço do Tempo, estrelada por Bill Murray, que é assumidamente a maior referência de A Morte Te Dá Parabéns, incluindo até uma citação explícita no final.

Outra inspiração do thriller são os filmes da série Pânico, com suas brincadeiras de autoconsciência de filme de terror e a presença de um icônico assassino mascarado. E claro, sem esquecer ainda da extensa tradição dos filmes slasher com os quais se alinha (com pouco sangue, é verdade), com direito inclusive à clássica figura da final girl. Dessa salada toda resulta um filme acima de tudo divertido que brinca o tempo todo com as expectativas dos clichês, confirmando alguns, ao mesmo tempo em que busca soluções criativas para outras tantas armadilhas que as regras do gênero impõem.


A repetição interminável de fatos/situações já conhecidos, sempre incômoda e angustiante num primeiro momento, costuma, ao longo das experiências revividas, provocar um efeito colateral benéfico: o aprendizado. Uma lição repetida para um mau aluno que precisa superar-se. Este é o dilema que aprisiona a personagem Tree, que a cada novo ciclo encara a situação recorrente com um novo espírito. Inicia com aflição e incredulidade, passa pela aceitação, a diversão e o tédio, até assumir de vez entendimento pleno do que ocorre e o que deve ser feito para escapar daquela situação.

Assim como a imensa maioria dos filmes de terror adolescente, não busque obsessivamente por explicações coerentes, razões consistentes e justificativas plausíveis para fatos e ações dos personagens. Nem fique catando furos no roteiro. Eles estão todos lá. Não perca tempo com isto. Assuma o pesadelo da protagonista, compartilhe sua tragédia pessoal, mas não deixe de se divertir, confortavelmente seguro na poltrona do cinema. Afinal, somos todos voyeur, e um déjà vu de vez em quando não faz mal a ninguém.

Assista o trailer: A Morte Te Dá Parabéns

Jorge Ghiorzi

quarta-feira, 4 de outubro de 2017

“Blade Runner 2049”: ser ou não ser


As notícias sobre uma provável sequência de Blade Runner sempre apavoraram os fãs mais ardorosos do clássico de 1982 dirigido por Ridley Scott, mas por razões diversas os projetos nunca seguiam adiante. O maior temor da legião de admiradores era macular a memória de um estimado objeto de culto cinematográfico, apresentando como resultado final uma aventura tola e inconsequente que não fizesse jus às qualidades inquestionáveis do filme original. O histórico de inúmeras sequências desastrosas justificava o receio. A paz entre os fãs só foi restabelecida quando o nome do diretor canadense Denis Villeneuve (Sicário e A Chegada) foi anunciado como o diretor da produção que agora chega às telas, 35 anos após o lançamento do primeiro Blade Runner. Ridley Scott desta vez atua apenas como produtor executivo.

Situado na mesma Califórnia um tanto distópica e super povoada do primeiro filme, Blade Runner 2049 transcorre 30 anos depois dos acontecimentos originais. Neste meio tempo aconteceu o “blecaute” da Terra, que estabeleceu uma nova ordem no planeta. A Corporação Tyrell, criadora dos replicantes da série Nexus 6, faliu e foi incorporada pelas indústrias do poderoso empresário Niander Wallace (Jared Letto), que desenvolve uma novíssima geração de replicantes, os Nexus 8. Um deles é o policial blade runner “K” (Ryan Gosling) que atua como caçador de replicantes rebeldes foragidos para a polícia de Los Angeles. Ao cumprir uma missão, “K” acaba se deparando com um segredo que pode colocar em risco a sobrevivência da humanidade. Em sua jornada de descobertas, “K” busca as resposta com um antigo blade runner, desparecido há três décadas: Rick Deckard (Harrison Ford).


Ao surgir no início da década de 80, Blade Runner estabeleceu novos padrões para a ficção científica no cinema. Seja em termos estéticos, seja em aspectos conceituais, ou mesmo por sua ousada abordagem de narrativa policial de “filme noir” com ambientação futurista retro, o filme de Ridley Scott, num primeiro momento não foi devidamente considerado e percebido. Pagou o preço, por vários anos, de um fracasso de crítica e bilheteria por ter sido um filme a frente de seu tempo. Mas, este mesmo tempo só fez bem ao filme. Ao longo dos anos o filme foi reavaliado e hoje ocupa o status de obra absolutamente referencial no gênero.

O novo Blade Runner chega, portanto, sem a obrigação de ser necessariamente inovador – este trabalho já foi feito. Denis Villeneuve é apenas o herdeiro deste legado, e seu compromisso foi apenas expandir o conceito original e explorar as possibilidades que a computação gráfica oferece. Isto possivelmente explique porque Blade Runner 2049 seja mais explicitamente uma aventura de ficção científica hard do que uma narrativa policial de pretensões existenciais como o primeiro filme. As facilidades da tecnologia digital facilitam este caminho, pois, virtualmente tudo é possível. Lembremos que o filme de Ridley Scott foi uma das últimas produções do gênero realizadas ainda de forma analógica, sem efeitos de CGI.


Questões filosóficas tipo “quem somos”, “de onde viemos”, “para onde iremos”, presentes no primeiro filme, voltam aqui, de maneira mais profunda, com acréscimo de especulações sobre as consequências do desenvolvimento da inteligência artificial para o futuro da humanidade. A autonomia e o livre arbítrio das criaturas “humanas” criadas por manipulação genética podem fugir do controle dos seus criadores? Este é um tema de fundo que faz o tecido narrativo de Blade Runner 2049.

O policial interpretado por Ryan Gosling carrega todos os clássicos questionamentos de quem busca sua verdadeira identidade. O aforismo grego diz: “Conhece-te a ti mesmo”. É este questionamento que move as ações do blade runner “K”, nem que para isto tenha que quebrar os níveis de hierarquia e agir por conta própria. Neste aspecto, significativos são os acordes da composição “Pedro e o Lobo” (de Sergei Prokofiev) que acompanham “K”. Esta clássica história infantil conta a história de Pedro, que, ao contrariar os conselhos do avô, se depara com um lobo feroz na floresta. Uma quebra de regra que pode custar sua vida.


Apesar de suas quase três horas de duração, Blade Runner 2049 deixa a impressão de que havia muita história para contar, mas nem todas suas pontas foram suficientemente bem resolvidas. O personagem de Niander Wallace é um destes pontos nebulosos. Mal delineado, com motivações um tanto indefinidas, o personagem interpretado por Jared Letto não disse exatamente a que veio, e lá pelas tantas desparece da história. Talvez o personagem tivesse mais sorte, e outro destino, se fosse interpretado por David Bowie, que foi a primeira escolha para o papel. De qualquer maneira, Blade Runner 2049 cumpre com muitos méritos – especialmente os técnicos - a tarefa bastante difícil de suceder a produção original. Não parece estarmos diante de um novo cult, e nem sugere que seja o tipo de filme que se deseje ardorosamente assistir repetidamente – como o clássico de Ridley Scott -, mas não resta dúvida que abriu caminho para uma nova franquia que pode estar se configurando.

Assista o trailer: Blade Runner 2049

Jorge Ghiorzi