quinta-feira, 2 de novembro de 2017

“Crônica de um Amor Louco”: poesia no caos


Conhecido pela crueza de seus contos, histórias curtas e crônicas ambientadas no submundo dos excluídos, desiludidos e errantes sociais, o escritor Charles Bukowski encharcou sua obra com muito álcool, muita sacanagem, muito sexo, muitos palavrões e muitas mulheres sem nome. O interesse do cinema por adaptações de seus livros vem desde os anos 70. Mas foi apenas nos anos 80 que sua obra ganhou maior visibilidade para o grande público graças ao lançamento de três títulos adaptados de suas histórias.

Um deles foi Barfly – Condenados pelo Vício, dirigido por Barbet Schroeder em 1987, estrelado por Mickey Rourke e Faye Dunaway, num período onde ambos gozavam de grande prestígio na indústria. Ainda naquele mesmo ano, o próprio Schroeder lançaria também o documentário The Charles Bukowski Tapes, que reúne uma série de entrevistas com o escritor. Outro destaque daquele período foi Crazy Love (também 1987), dirigido por Dominique Deruddere, baseado em três contos do escritor. No entanto, a melhor de todas as presenças de Bukowski nas telas surgiu bem no início dos anos 80, permanecendo até hoje como uma das mais bem sucedidas adaptações da sua vida e obra, que se mesclam de forma simbiótica pelo forte caráter autobiográfico de seu texto. O filme era Crônica de um Amor Louco (Storie di ordinária follia, 1981), realizado pelo cineasta italiano Marco Ferreri, o mesmo de A Comilança.

Baseado no primeiro dos dois volumes da obra “Ereções, Ejaculações e Exibicionismos”, particularmente no conto “A mulher mais linda da cidade”, e também inspirado na vida do próprio Charles Bukowski, Crônica de um Amor Louco conta a história de Charles Serking (Ben Gazzara), um poeta errante, amante das bebidas, das mulheres e das letras, que vive perdido na cidade dos anjos perdidos, Los Angeles. Serking é uma encarnação ficcional, um alter-ego, do próprio Bukowski, cujas histórias contadas foram também vividas, vivenciadas. Ele fala (no caso, escreve) com conhecimento de causa.


Naquela vida sem rumo, passando de bar em bar, vagando pelas ruas em busca de fortuitas aventuras amorosas, e, eventualmente sentando à máquina de escrever, quando sóbrio, para redigir poesias e contos, Serking acaba por cruzar com uma alma gêmea, a bela prostituta Cass (Ornella Muti), também em busca de um sentido para sua atormentada existência. Deste encontro nasce um romance amargurado, marcado pela urgência e o desespero. Enquanto Serking purgava sua angústia através da poesia, Cass buscava o equilíbrio emocional cometendo o autoflagelo físico, punindo-se simplesmente por ser bela. Um amor de conotações sadomasoquistas se estabelece então.

Serking e Cass são duas peças “defeituosas” que não se encaixam na máquina da sociedade estabelecida. Forasteiros de um sistema que corrompe consciências e reprime o individualismo libertário, eles nadam contra a correnteza e assumem os riscos Como bem diz Serking em dado momento, “os fracassados são as pessoas mais verdadeiras deste mundo”.

Explorando situações bizarras e episódicas, com poucos diálogos, o realizador Marco Ferreri explora o embate da beleza contra o caos, sem, no entanto, abandonar seus personagens à própria sorte. Um olhar de carinho e atenção está sempre presente. Em meio à derrocada moral do universo que conspira, há sempre a poesia. A poesia que vence a desgraça. Salva e redime.


Neste sentido, é exemplar a sequência final que se passa na amplitude de uma praia deserta. Em cena, apenas Serking, amargurado pela tragédia com sua amada, e uma adolescente solitária. Enquanto ele recita uma poesia, ela desnuda o corpo jovem. Um momento que evoca a busca por uma juventude que se perdeu no passado ao mesmo tempo em que confronta a necessidade de encarar um futuro sem perspectivas. A sequência, bela por si só, remete ainda ao antológico e emblemático final de A Doce Vida, de Federico Fellini, que mostra Marcello Mastroiani também se deparando com uma jovem enigmática numa praia, com a qual não consegue se comunicar com palavras.

Consta que Charles Bukowski não aprovou o desempenho de Ben Gazzara, mas, neste caso, vamos deixar de lado a opinião do “velho safado”. O fato objetivo é que Ben Gazzara é a grande força emocional de Crônica de um Amor Louco, e seu desempenho visceral evidencia um ator totalmente mergulhado nas entranhas do personagem.

Assista o trailer: Crônica de um Amor Louco

(Texto originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em dezembro de 2016)

Jorge Ghiorzi

2 comentários:

  1. Filme maravilhoso. Jorge, provocaste a volta de emoções e lembranças espetaculares com teu excelente texto. Abraços.

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