terça-feira, 12 de dezembro de 2017

“A Baía dos Anjos”: vidas em jogo


A sabedoria de um conhecido provérbio decreta que quem é “feliz no jogo” necessariamente será “infeliz no amor”. E vice-versa. Ou seja, não podemos possuir todos nossos sonhos. Algo se perde pelo caminho. O destino, portanto, pode estar sendo decidido sobre o veludo verde de uma mesa de carteado, ou no giro de uma roleta. Ou não. A sorte está lançada.

Estas questões estão no centro da narrativa de A Baía dos Anjos (La Baie des Anges) dirigido pelo francês Jacques Demy em 1962. O universo dos cassinos e seus obstinados frequentadores faz pano de fundo para a história de duas almas desgarradas de seus vínculos familiares que encontram na adrenalina das apostas uma razão para viver. Até que o amor entra no jogo das emoções e as apostas ficam mais arriscadas. Ou quebram a banca, ou quebram o coração.

Jean (Claude Mann), funcionário de banco entediado com a rotina do trabalho, tem uma vida solitária e aborrecida com o pai, com quem tem uma relação conflitada. Por sugestão de um colega de trabalho, apostador costumaz, Jean é induzido a entrar no mundo dos jogos em busca de um pouco de emoção e dinheiro fácil. No cassino ele conhece Jackie (Jeanne Moreau), uma parisiense de meia idade que abandonou marido e filhos para se aventurar no vício das roletas em Nice, vizinha de Cannes, na Riviera francesa. Sem planos definidos para o futuro, os dois encontram interesses comuns e mergulham de cabeça na orgia do perde e ganha dos jogos, arriscando tudo como se não houvesse amanhã. Aos poucos, no entanto, cresce uma paixão que vai além das mesas dos jogos.


Filmes sobre o vício dos jogos costumam contar histórias de excessos, limites, riscos e superação. Mostram personagens em situações limite, beirando a autodestruição, cuja jornada de aprendizado acaba por representar um renascimento. Uma vida nova concebida a partir de uma expiação ética e/ou moral. O filme de Jacques Demy segue por esta trilha, introduzindo porém outro elemento catalisador com poder de transformação: a paixão amorosa.

O personagem Jean é um homem frágil, em busca de sentido para a vida. Um homem em reconstrução. Simbólica para esta compreensão é sua imagem refletida em uma série de espelhos, no corredor de entrada do cassino. Imagem de uma personalidade fragmentada aspirando sua integralidade.

Por sua vez, a personagem Jackie exala autoconfiança e controle. Ao menos na superfície de sua personalidade. Um sentido de autodefesa reprime a verdadeira Jackie, uma mulher em crise que rompe laços familiares em nome de uma libertação ilusória. Jackie é tão ou mais frágil que Jean, na medida em que não reconhece suas contradições. Esteticamente esta bipolaridade fica expressa no figurino da personagem, que alterna as cores branco (anjo?) e preto, conforme os estados da alma da personagem.


Filme de forte teor existencialista, seguindo uma certa tendência do cinema francês, A Baía dos Anjos apresenta personagens que parecem dialogar mais com seu próprio interior do que com os interlocutores. Falam e verbalizam mais para si do que para o outro. Isto inevitavelmente se reflete nas interações frias entre os personagens, ainda que imersas no fogo das paixões. As relações amorosas do casal são marcadas por uma quase total ausência de sentimentalismo, mas sempre elegantes. Um encontro desesperado de dependentes, quase uma fuga de vidas frustradas. Jackie carrega a culpa do abandono do marido e filhos, e Jean é assombrado pelo fantasma do pai repressor. O que falta em fogo e paixão no romance dos dois, sobra em reflexão e análise.

O final conciliador de A Baía dos Anjos revela o desconforto de Jacques Demy em abandonar seus personagens à própria sorte. A vida é um jogo. Às vezes perdemos. Às vezes ganhamos. Se na vida real não temos controle do destino, na vida da ficção podemos idealizar e conciliar nossos sonhos. E a roda da fortuna volta a girar, até a próxima aposta.


Ainda que o início da carreira de Jacques Demy tenha ocorrido no período de surgimento da Nouvelle Vague, o fato é que o cineasta passou relativamente ao largo do movimento. Cineasta de perfil mais acadêmico, Demy não tinha especial interesse em romper com a chamada narrativa clássica. Sua filmografia revela um realizador mais afeito a contar histórias com personagens interessantes do que contestar o status quo de um cinema tradicional.

La La Land, o neon-musical de Damien Chazelle, que vem encantando multidões, buscou um pouco de inspiração num dos maiores sucessos da carreira de Jacques Demy, quem diria. Vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes, o musical Os Guarda-Chuvas de Amor, com Catherine Deneuve, lançado em 1964, revolucionou o gênero tipicamente hollywoodiano. Nada mal para um cineasta clássico como Jacques Demy.

Assista o trailer: A Baía dos Anjos

(Texto originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em fevereiro de 2017)

Jorge Ghiorzi