terça-feira, 2 de janeiro de 2018

“Crimes de Paixão”: fantasias proibidas


Na resta dúvida que os anos 80 foram uma década de exageros e excessos. Tempos de testar os limites da sociedade, da cultura e dos comportamentos. Isto ficou manifestamente expresso em grande parte da produção cinematográfica daquele período, que rompeu barreiras e experimentou um novo tempo, com os erros e acertos de praxe. A liberação sexual e a afirmação do feminino, por exemplo, até então matérias do ativismo político de uma parcela da sociedade progressista (iniciado duas décadas antes), ganhou ares de espetáculo midiático quando foi espertamente apropriada pelos grandes estúdios de Hollywood em produções mais interessadas em explorar os temas pelo viés do sensacionalismo do que por suas questões de fundo.

Um dos exemplares mais notórios desta apropriação temática foi thriller erótico Crimes de Paixão (Crimes of Passion, 1984) dirigido pelo controverso realizador inglês Ken Russell. Diretor conhecido por vários filmes sobre compositores de música erudita, como Tchaikowsky, Mahler e Liszt, e pelo menos um musical de grande sucesso, a ópera-rock Tommy, Russell sempre manifestou especial interesse por temas com potencial para gerar polêmica. E quando o tema em questão não apresentava o potencial necessário para chocar as plateias, ele próprio tratava de elevar o tom da narrativa, com seu estilo barroco, onírico e lisérgico. Isto explica a presença constante de temas explosivos como Sexo e Religião em toda sua obra.


E como não poderia ser diferente, Crimes de Paixão traz também a dobradinha Sexo-Religião como argumentos fortes na narrativa que conta a história de China Blue (Kathleen Turner), uma das mais conhecidas e desejadas prostitutas do submundo de Los Angeles. Com sua peruca platinada ela realiza as mais loucas fantasias de seus clientes no quartinho imundo de um hotel decadente. Outro personagem da história é Bobby Grady (o inexpressivo John Laughlin), pequeno empresário à beira da falência que luta para manter um casamento fracassado. Ele acaba aceitando um trabalho extra a pedido de um grande empresário do ramo de confecções. Sua missão é seguir Joanna Crane, importante estilista da grife, suspeita de passar informações para os concorrentes. O que descobre não tem nada a ver com espionagem industrial: Joanna Crane vive uma vida dupla. À noite ela se transforma em China Blue, a famosa garota de programa que circula pela noite da cidade. Completando o triângulo de protagonistas aparece um reverendo psicopata (em interpretação alucinada de Anthony Perkins, sim, ele mesmo, o Norman Bates) que passa a perseguir China Blue. Entre sermões e shows eróticos, ele assume a missão divina de levar a palavra da Bíblia à China Blue para salvá-la do pecado.


Com os excessos típicos dos anos 80, a música estridente de Rick Wakeman e sua fotografia de cores quentes e muito efeito de luz neon, Crimes de Paixão, em termos estéticos, ficou um tanto defasado com o passar dos anos. Definitivamente o filme não envelheceu bem. Em termos de discussão dos papeis sociais do homem e da mulher e o poder da fantasia na sexualidade, o filme de Ken Russell pouco avança, não oferecendo um posicionamento mais objetivo. Na verdade, sejamos francos, não era exatamente este o objetivo do realizador. O roteiro irregular, cheio de problemas de resolução, frio e pouco envolvente, é dirigido com o habitual cinismo de Russell. O fato é que Crimes de Paixão é melhor nas partes do que no todo.

A vida dupla de personagem de Kathleen Turner, com seus joguinhos simulados e fantasias com seus clientes, na realidade apenas desnuda a frustração de sua existência. No desapego à realidade, a fantasia sempre é uma fuga. Em certo momento Joanna explica as razões que justificam seu comportamento e nos dá a chave para o entendimento da zona livre onde o filme funciona: “Aquele hotel é o lugar mais seguro do mundo. Eu posso fazer, ser e sonhar o que quiser lá, porque não sou eu”.


Se levarmos em conta o perfil transgressor e um tanto maroto de Ken Russell, faz total sentido sua escolha de uma estrela hollywoodiana, no auge à época, para protagonizar o filme. Vinda de dois sucessos como Corpos Ardentes, onde já flertava abertamente com um erotismo mais contundente, e Tudo por Uma Esmeralda, uma comédia de aventuras ao lado de Michael Douglas, nada fazia supor que Kathleen Turner fosse estrelar uma produção tão ousada como Crimes de Paixão. Algo, convenhamos, absolutamente improvável para qualquer uma das estrelas atuais. Não há mais riscos envolvidos, apenas preservação da imagem e planejamento de carreira submetido às regras do bom marketing. Kathleen Turner ousou e mergulhou fundo. Sem entrarmos no mérito específico do seu desempenho (elogiável, aliás), apenas esta decisão, por si só, já seria louvável. Curiosamente criou-se, na mente do espectador, um efeito de paralelismo que confronta a ficção da vida dupla de Joanna Crane / China Blue e a vida real de Kathleen Turner, como se ela nos revelasse, num efeito de voyeurismo explícito, seu “lado B” como atriz.

Por fim, uma cereja no bolo. O desfecho do thriller faz uma ostensiva referência ao clássico Psicose de Alfred Hitchcock. Pensando bem, com Anthony Perkins no elenco, a “homenagem” era uma tentação impossível de ser recusada.

Assista o trailer: Crimes de Paixão

(Texto originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em fevereiro de 2017)

Jorge Ghiorzi

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