segunda-feira, 26 de março de 2018

“Alice nas Cidades”: vida em movimento


Uma rápida análise da carreira do diretor alemão Wim Wenders já é suficiente para constatar a forte atração do realizador pela cultura norte-americana. Ao longo de sua filmografia de quase 30 filmes é possível constatar que esta paixão se manifesta regularmente em grande parte de sua obra. Filmes como O Amigo Americano (1977), baseado na literatura policial de Patrícia Highsmith; Hammett – Mistério em Chinatown (1982), narrativa ficcional de mistério protagonizada pelo próprio escritor Dashiell Hammett; Paris – Texas (1984), road movie existencialista filmado na Califórnia; O Fim da Violência (1997), thriller que se passa no universo de Hollywood; O Hotel de Um Milhão de Dólares (2000), estilizada história de assassinato, traficantes e ladrões no submundo de Los Angeles; e também os documentários Um Filme para Nick (1980), que registra os últimos momentos do diretor Nicholas Ray ainda na ativa com projetos de cinema, e Willie Nelson at the Teatro (1998), que registra show do famoso cantor de country music, não deixam dúvida o quanto a matriz cultural norte-americana foi (e continua sendo) fonte de inspiração nos filmes de Wim Wenders.

As primeiras tentativas de aproximação do realizador alemão com seu objeto de desejo, a América, ocorreram na virada dos anos 60 para os 70, com alguns curtas-metragens com temas e músicas americanas (Bob Dylan, por exemplo). A consumação do desejo aconteceu apenas em 1974 com o longa-metragem Alice nas Cidades (Alice in den Städten), um road movie parcialmente filmado e ambientado em Los Angeles e Nova Iorque. Para um cineasta disposto a descobrir novas terras, o formato de filme de estrada sem dúvida era o mais adequado e seguro para a exploração. Paisagens inspiram reflexões, que interpretam as paisagens, que voltam a inspirar novas reflexões, num movimento moto-contínuo de ação e reação.


O jornalista alemão Philip Winter (Rüdiger Vogler), contratado para escrever uma longa matéria sobre os Estados Unidos, viaja pelo país, costa a costa, das praias da Califórnia até Manhattan. Em bloqueio emocional, que se transforma em bloqueio criativo, o jornalista faz todo o percurso, mas não consegue escrever uma linha sequer do artigo encomendado. Limita-se apenas a registrar suas impressões de viagem em melancólicas fotos de uma câmera polaroid (seria ele um precursor dos corriqueiros “check-ins” das redes sociais de hoje?). Sua grande queixa é constatar que, por mais sentimentos que uma paisagem provoque, a imagem de uma foto nunca consegue captar a realidade. Nunca registra o que realmente se vê. E muito menos o que se sente.

Após ser dispensado pelo contratante, por não cumprir o acordo, Winter arruma as malas e decide voltar para a Alemanha. Mas uma greve da companhia aérea atrasa os voos e o destino dá um jeitinho de mudar seus planos. Ainda no aeroporto conhece uma mulher, também alemã, e sua filha Alice, de 9 anos, que também pretendiam retornar para a Alemanha. Enquanto esperam a saída dos voos no dia seguinte, os três decidem passar a noite juntos num hotel. Na manhã seguinte a mulher desaparece, deixando a filha aos cuidados do jornalista. Ao chegarem à Alemanha os dois empreendem uma busca pelos familiares da garota, iniciando uma jornada de descobertas e amizade.


O olhar estrangeiro de Wim Wenders sobre a América se mostra um tanto dividido.  Um misto de deslumbramento, poesia, melancolia e apatia. Típica relação de amor e ódio. O personagem central não passa de um turista acidental que não ultrapassa a barreira da solidão, mesmo mergulhado em uma multidão. O sentimento de não-pertencimento àquele modo de vida apenas reforça a sensação de que a harmonia que deseja não será encontrada na viagem em si, muito menos no destino final da jornada. As respostas estão no ponto de partida, na Alemanha, sua terra natal. Ao embarcar numa jornada de busca pelo destino da garota, os dois mergulham no interior do país, nas pequenas cidades, pequenas ruas, casas de família, antigos ancestrais, ancorados no passado. Pelas mãos da pequena Alice, Winter é levado a sua verdadeira viagem de reencontro consigo próprio. O mundo de Alice não é um país das maravilhas, mas com certeza um mundo de descobertas, despertares e revelações.


O tema do personagem em busca de seu destino, de uma história para dar sentido à vida, é muito recorrente na obra de Wim Wenders. Paris – Texas é outro ótimo exemplo dessa abordagem, com o qual, aliás, Alice nas Cidades divide outra questão fundamental. Ambos discutem, por caminhos distintos, as consequências de famílias disfuncionais onde a figura do pai ausente (e mãe também, no caso) é fator que detona os processos de transformação dos personagens. Alice nas Cidades é um filme de movimento, avanços e recuos. De achados e perdidos. De perdas e ganhos. De imagens reais e simulacros. De sentimentos particulares e sensações coletivas. Quando o filme acaba a (nova) história de Philip Winter está apenas começando.

Alice nas Cidades é um dos títulos mais representativos do chamado Novo Cinema Alemão, situado entre os anos de 1969 e 1982, que reúne obras de outros importantes diretores como Werner Herzog, Rainer Werner Fassbinder, Volker Schlondorff e Alexander Kluge. Os filmes deste período renovaram o cinema alemão, rompendo com vigor e criatividade a expurgação do fantasma moral da culpa alemã na Segunda Guerra.

Assista o trailer: Alice nas Cidades

(Texto originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em abril de 2017)

Jorge Ghiorzi

sábado, 3 de março de 2018

“Z”: verdades e mentiras


A advertência surge no primeiro minuto de filme: “Qualquer semelhança com fatos ou pessoas vivas ou mortas não é casual. Ela é intencional”. Assinada pelo roteirista Jorge Semprun e pelo diretor Costa-Gavras, a mensagem que abre o thriller político Z já o coloca imediatamente sob o signo da provocação. A intencionalidade se manifesta pelo fato do filme buscar inspiração em acontecimentos reais ocorridos na Grécia em 1963, narrados no livro homônimo de Vassili Vassilikos, sobre a morte de um político, líder esquerdista da oposição ao governo grego da época.

Forte retrato de um período muito conturbado da Grécia, Z marcou época ao ser lançado em 1969, conquistando prêmios pelo mundo afora, incluindo o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 1970. No Brasil, que naquele momento vivia o período de intervenção militar, a produção dirigida por Costa-Gavras (A Confissão, 1970; Estado de Sítio, 1972; Desaparecido: Um Grande Mistério, 1982; O Quarto Poder, 1997; O Corte, 2005) foi proibida de exibição comercial, ficando interditada até os anos 80. Desde então, o diretor ficou fortemente marcado como um cineasta político. Condição que ele não assume integralmente, afirmando que na verdade todos os filmes são políticos. Ou pelo menos podemos analisá-los politicamente, se assim desejarmos.


Construído com o conceito de uma grande reportagem documental, ainda que utilize artifícios de uma narrativa ficcional, Z transforma uma conspiração política verídica numa eletrizante trama de suspense, que fica pouco a dever às produções do gênero. Contribuem decisivamente para este resultado a edição, o ritmo, a decupagem e a diversidade de personagens comprometidos com a representação ficcional da realidade. Aqui, a máxima apregoada por Costa-Gavras se confirma: “Todo cinema é político, mas também é espetáculo”.

Embora inspirado em fato real, a transposição para o cinema sofreu algumas adaptações. Em Z, por exemplo, a trama ocorre num país imaginário, não nominado, porém claramente calcado na realidade da Grécia, controlado por militares. Um deputado de oposição (Yves Montand), alinhado com o pensamento de esquerda, chega à capital para participar de um comício contra a instalação de mísseis balísticos norte-americanos no país. Após sua manifestação, ao sair do auditório, o deputado sofre um atropelamento e morre. A partir de então inicia uma guerra de versões entre oposicionistas e governistas: foi acidente ou foi atentado?


Os procedimentos iniciais parecem indicar que tudo não passou de um lamentável acidente. Militares e policiais agem dissimuladamente para abafar o caso e não permitir que as investigações progridam. Mas testemunhas, mesmo coagidas, começam a falar. E a verdade vem à tona, com auxílio de um jornalista investigativo e um magistrado (Jean-Louis Trintignant), decidido a descobrir e punir os verdadeiros culpados: um grupo extremista de direita.

O filme foi lançado há quase 50 anos, mas Z ainda se mostra atual em sua abordagem da manipulação da realidade, seja pelo poder mídia ou pela força das instituições. Em tempos de pós-verdade, ou realidades alternativas, o filme de Costa-Gavras mostra como uma verdade pode ser reconstituída segundo os interesses do detentor da narrativa. Isto parece por demais familiar aos brasileiros destes tempos que correm, não é verdade?


Assim como Rashomon (1950) de Akira Kurosawa, Z oferece diferentes pontos de vista sobre um fato objetivo, com uma diferença fundamental, no entanto: Costa-Gavras revela ao espectador, sem nenhuma manipulação, a realidade do fato. Fica confortável, portanto, identificar quem diz a verdade e quem constrói versões. A parcialidade e o manuseio das massas ficam escancarados. O estado policial repressor vence por algum tempo, mas sucumbe inevitavelmente.

O discurso de um militar de alta patente, no início do filme, diz que as ideologias do “ismo” (socialismo, anarquismo, imperialismo, comunismo) são fungos ideológicos que devem ser combatidos preventivamente. Abatidos na raiz. Numa espécie de metáfora reversa, na verdade foram os militares que sofreram o revés, na medida em que os anticorpos (oposicionistas) venceram a batalha contra a infecção (governistas), apenas para ficar com mais uma das pérolas proferidas pela autoridade militar.

“Z”, em grego antigo significa “ele está vivo”. E Z, o filme, também está muito vivo. E atual.

Assista o trailer: Z

(Texto originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em março de 2017)

Jorge Ghiorzi