sexta-feira, 31 de março de 2017

"Ponto Zero": longa jornada noite adentro


O período da puberdade é um momento de descobertas e perda da inocência, diante do mundo adulto que se descortina. A riqueza dos sentimentos intensos e contraditórios que esta fase provoca é fonte de inspiração para inúmeros filmes que narram o rito de passagem. Quando este caldeirão de anseios evocados pela chegada da adolescência não é tratado como um banal clichê, mas colocado a serviço de uma narrativa analítica, tem-se um encontro que tangencia o encantamento de uma poesia. É isto que nos oferece o filme Ponto Zero, dirigido por José Pedro Goulart.

Primeira experiência do realizador no formato de longa-metragem, Ponto Zero conta o drama de um núcleo familiar de quatro pessoas em desagregação, uma bolha de sentimentos represados prestes a explodir. Pai ausente, mãe fragilizada, filha indiferente e filho dividido. O protagonista, condutor da narrativa, é o adolescente Ênio (Sandro Aliprandini) que precisa sintonizar seus sentimentos de acordo com a dureza da realidade que o cerca. Em meio a um inevitável processo de separação dos pais o jovem busca restabelecer o equilíbrio emocional justamente no momento mais emocionalmente instável do ser humano: a passagem da adolescência para a vida adulta. Os hormônios em ebulição convivem com um mundo que conspira, e o sentimento de incompletude é uma fatalidade incontornável.


Oprimido, retraído, enclausurado em si próprio, o jovem não verbaliza seus sentimentos nem se rebela de forma efetiva ao mundo que o sufoca. A válvula de escape para manter a sanidade é o vasto universo interior do personagem. Dos silêncios externos se constrói uma sinfonia interior. A intensa realidade introspectiva de Ênio se transfigura numa realidade distorcida, utópica e idealizada. Neste aspecto, o filme de José Pedro Goulart assume contornos de uma experiência expressionista, quando a subjetividade do personagem se projeta para a realidade circundante.

A trajetória errante do jovem protagonista se configura em uma odisseia pessoal com a qual eventualmente nos identificamos ou, alternativamente, apenas testemunhamos. Mas sempre com grande interesse e nunca com passividade. Tecnicamente exuberante e sedutor, Ponto Zero é uma experiência sensorial na qual a plateia deve deixar-se levar, sob pena de não extrair na plenitude sua essência. 
(Texto originalmente publicado no portal “Movi+” em junho de 2016)
 Jorge Ghiorzi

quinta-feira, 23 de março de 2017

O retorno de Sônia Braga


O Festival de Cannes de 2016 ficará marcado na história pelos brasileiros por um fato de repercussão internacional: o protesto da equipe do filme Aquarius no tapete vermelho da Croisette. Mas à esta edição do Festival deverá também ser creditado o bem-vindo resgate de uma importante personalidade do cinema brasileiro, nossa maior estrela internacional em atividade – Sônia Braga. Após alguns anos de relativo afastamento do protagonismo e das manchetes, a atriz recebeu o reconhecimento de uma verdadeira estrela que sempre foi. Seu elogiado desempenho em Aquarius foi apontado, na ocasião, como um dos favoritos ao prêmio de interpretação do Festival, que acabou agraciando a atriz filipina Jaclyn Jose do filme Ma’Rosa.


Neste momento tão especial na carreira da atriz, vale a pena relembrar um pouco de sua trajetória. Natural de Maringá (PR), Sônia Braga, ainda adolescente, iniciou a vida artística pelo teatro em pequenas montagens. Em 1970 participou da primeira montagem brasileira da icônica peça Hair, onde causou escândalo por aparecer nua em cena. Neste mesmo ano participou da sua primeira novela na TV, Irmãos Coragem, e atingiu o auge de popularidade em 1975 quando estrelou a novela Gabriela.


O cinema entrou na vida de Sônia Braga um pouco antes. Foi em 1968, quando a atriz ganhou um pequeno papel no clássico O Bandido da Luz Vermelha, de Rogério Sganzerla. O primeiro grande papel de Sônia Braga no cinema aconteceu oito anos depois. E que papel. Ela foi a Dona Flor no grande sucesso e recordista de bilheteria do cinema brasileiro: Dona Flor e Seus Dois Maridos, dirigido por Bruno Barreto. Dois anos depois fez A Dama do Lotação, que filme que a tornou o maior símbolo sexual brasileiro dos anos 70. No início da década de 80 faz Eu Te Amo, sob a direção de Arnaldo Jabor, papel com o qual conquista o Kikito de Melhor Atriz no Festival de Cinema de Gramado.


Poucos anos depois vive uma primeira experiência internacional ao participar da adaptação cinematográfica Gabriela (1983), ao lado do astro italiano Marcello Mastroianni. O ano de 1985 marcou uma virada na carreira da atriz. Ao estrelar a coprodução Brasil-EUA O Beijo da Mulher Aranha, dirigida por Hector Babenco, Sônia Braga atraiu a atenção da imprensa internacional e dos produtores norte-americanos. Aproveitando o momento favorável, Sônia Braga decide tentar carreira internacional e se transfere para os Estados Unidos.


Em 1987 se torna a primeira brasileira a apresentar uma categoria na cerimônia de entrega do Oscar, ao lado de Michael Douglas. E logo no ano seguinte inicia de fato sua carreira em Hollywood ao fazer par romântico com Robert Redford no drama Rebelião em Milagro, papel que lhe rendeu uma indicação ao Globo de Ouro. Logo em seguida participa de Rookie – Um Profissional do Perigo, filme policial de ação dirigido e estrelado por Clint Eastwood.

Uma década depois volta ao Brasil e mergulha mais uma vez no universo de Jorge Amado, protagonizando a versão cinematográfica Tieta do Agreste (1996), dirigida por Cacá Diégues. No seu retorno aos EUA Sônia Braga participa de muitos telefilmes (de baixa repercussão e interesse) e episódios em várias séries de TV (Alias; C.S.I.; Sex and the City; Law & Order; Ghost Whisperer; Desperate Housewifes e outras).


Agora, Sonia Braga vive um comeback graças à Aquarius e tudo indica que retomará sua carreira em grande estilo.

(Texto originalmente publicado no portal “Movi+” em maio de 2016)

Jorge Ghiorzi

segunda-feira, 13 de março de 2017

Bruce Lee: o mito do dragão vive


No próximo dia 20 de julho se completam 44 anos da morte de Bruce Lee. Maior ícone global dos filmes de artes marciais, reverenciado igualmente no Ocidente e Oriente, o astro sino-americano (ele possui dupla nacionalidade, americana e chinesa) foi o grande responsável pela mudança de status da imensa produção de filmes de ação produzidos em Hong Kong na virada dos anos 60 para os 70, genericamente chamados à época no Brasil como “filmes de kung fu”. Figura de grande apelo popular, à Bruce Lee também pode ser atribuído o crédito de ter contribuído para mudar os clichês da representação dos asiáticos em geral no cinema, particularmente em Hollywood. Havia enfim surgido um protagonista capaz de atrair a atenção das plateias além-fronteiras da China / Hong Kong, com imenso potencial nas bilheterias.

A carreira de Bruce Lee foi curta. Foram apenas quatro longas-metragens e um quinto filme incompleto, posteriormente finalizado com sequências pré-filmadas e a inclusão de um ator substituto, levemente semelhante ao astro. Bruce Lee teve pouco tempo para saborear as glórias do estrelato. Seus primeiros três filmes foram realmente sucessos mundiais somente após sua morte em 1973.


Mas Lee não fez apenas cinema. Começou, na verdade, com pequenas participações na TV americana. Sim, é fato que apareceu antes em pequenas produções chinesas, ainda muito jovem, inclusive quando ainda era bebê. Seus pais, ligados ao teatro operístico cantonês, foram seu primeiro contato com o mundo das artes. Nascido em São Francisco (EUA), ainda criança voltou com a família para Hong Kong. Na adolescência retornou aos EUA para estudar e buscar uma chance com ator. Já praticante de kung fu, foi “descoberto” numa apresentação de artes marciais pelo produtor William Dozier (da série de TV Batman), que o contratou para o papel de Kato no seriado Besouro Verde, que durou apenas uma temporada (1966). Após outras pequenas aparições em diversas séries de TV da época, Bruce Lee desenvolveu o conceito de um novo seriado, apresentou o projeto, mas a ideia não foi adiante. Desiludido e insatisfeito com sua trajetória como ator nos EUA, Bruce Lee retorna para Hong Kong.

“Tranquilo e infalível como Bruce Lee”
Caetano Veloso (canção “Um Índio”)

Pouco tempo depois, a Warner Bros. lançaria o seriado Kung Fu, estrelado por David Carradine. Consta que este projeto foi uma adaptação, não creditada, da ideia anteriormente apresentada por Bruce Lee. Mas, nem tudo estava perdido. Em seu novo período em Hong Kong acabou descobrindo que o seriado Besouro Verde era um imenso sucesso nos Estados Unidos, onde seu nome ganhou destaque.


Este foi o momento de virada na carreira de Bruce Lee. Assinou contrato com o produtor Raymond Chow para estrelar dois longas-metragens em Hong Kong, produzidos pela Golden Harvest. Os filmes quebraram todos os recordes de bilheteria no mercado chinês. De olho na mina de ouro que surgia, a Golden Harvest propõe a produção de mais outros dois filmes, desta vez com Bruce Lee atuando no controle criativo das produções, incluindo a direção.

Em 1972, quando estava em plena filmagem de Jogo da Morte, a produção foi interrompida para que Bruce Lee pudesse atender uma oferta irresistível da Warner para estrelar um filme nos Estados Unidos, o famoso Operação Dragão. Esta foi a produção que cristalizou a imagem de Bruce Lee no imaginário coletivo, transformando-o em astro incontestável. O filme foi um marco e virou febre mundial.

Com a morte do astro no ano seguinte, as filmagens de Jogo da Morte ficaram incompletas. Então, entra em cena a primeira das inúmeras picaretagens que marcaram o legado de Bruce Lee. O diretor Robert Clouse e o produtor Raymond Chow decidem completar o projeto utilizando um ator para substituir o astro no restante das filmagens. Foram inclusive utilizadas cenas reais do funeral de Bruce Lee, inseridas marotamente no roteiro que foi reescrito para se ajustar às novas condições. O filme acabou virando uma farsa constrangedora. Porém, o nome de Bruce Lee era tão forte que o filme ainda assim acabou sendo sucesso. Sem dúvida por um misto de curiosidade mórbida e uma maciça campanha de marketing que certamente ludibriou alguns desatentos. O maior mérito da produção foi eternizar o icônico macacão amarelo utilizado por Bruce Lee, que depois seria homenageado por Quentin Tarantino em Kill Bill – Volume 1, que mostra Uma Thurmann trajando o célebre figurino.



“O Dragão Chinês” (The Big Boss, 1971) – Direção: Lo Wei
Primeiro papel de destaque de Bruce Lee no cinema. Ele interpreta um jovem que passa a morar com os primos e trabalha em uma fábrica de gelo. A fábrica é uma empresa de fachada, cuja verdadeira atuação é o tráfico de drogas. Com o sumiço de alguns familiares, o personagem de Bruce Lee confronta o poderoso chefão da máfia local.

Produção modesta, beirando o amadorismo, ganha destaque pelas eficientes sequências de lutas dirigidas com o habitual talento pelo especialista Lo Wei. Bruce Lee, ainda que seu personagem seja frágil e vacilante em grande parte da história, já revela a empatia que despertaria plenamente em trabalhos futuros.



“A Fúria do Dragão” (Fist of Fury, 1972) – Direção: Lo Wei
Filme de época, baseado em fatos reais, que reconstitui livremente os fatos da morte de um mestre de famosa escola chinesa de artes marciais. Bruce Lee faz o papel de um antigo aluno da escola que retorna para os funerais de seu professor. Logo surgem suspeitas de que ele foi assassinado pelos rivais da escola concorrente (de tradição japonesa). No roteiro há claramente um subtexto que discute a relação belicosa entre chineses e os invasores japoneses que submeteram a China aos seus domínios territoriais.

Aqui Bruce Lee já apresenta pleno domínio da arte cinematográfica. Coreografias elaboradas e sequências memoráveis fazem deste filme a primeira produção a revelar a ascensão irresistível do futuro astro.



“O Voo do Dragão” (The Way of the Dragon, 1972) – Direção: Bruce Lee
Primeiro filme dirigido e estrelado por Bruce Lee. Fortemente influenciado pelo cinema de gênero de Hollywood, o ator/diretor resolveu imprimir um tom de comédia. Não foi totalmente feliz. Jackie Chan faria bem melhor anos depois.

A história se passa em Roma, para onde o personagem de Bruce Lee viaja para ajudar o tio e a prima nos negócios do restaurante da família. O local é alvo do interesse de uma gangue mafiosa. Para enfrentar a ameaça Bruce Lee fará uso da sua mortal habilidade no Kung Fu.

Destaque memorável de O Voo do Dragão, a luta final acontece em pleno Colisseu de Roma, onde Bruce Lee enfrenta ninguém mais, ninguém menos do que Chuck Norris (sim, ele mesmo!).



“Operação Dragão” (Enter the Dragon, 1973) – Direção: Robert Clouse
Primeira e única participação de Bruce Lee em uma produção de Hollywood. Típico produto de uma época, reflete forte influência dos filmes de James Bond do início dos anos 70. Desta vez Bruce Lee incorpora a figura de um agente secreto, recrutado por organização governamental, que recebe missão de investigar um torneio de lutas marciais, organizado por um inescrupuloso assassino, líder de um rentável negócio de venda ilegal de ópio.

Por tratar-se de um torneio de lutas, não faltam razões para Bruce Lee exibir suas habilidades, mas o roteiro investe mais numa narrativa de suspense e ação, mais ao gosto das plateias ocidentais. Porém, mesmo fora de seu registro (e cenário chinês), Bruce Lee se sai muito bem no ambiente urbano ocidental e convence plenamente como herói da vez.



“Jogo da Morte” (Game of Death, 1978) – Direção: Robert Clouse (e Bruce Lee – não creditado)
Bem, chegamos ao não-filme de Bruce Lee.
Por razões óbvias, um roteiro tortuoso tenta dar sentido à história de um notório lutador de artes marciais que passa a ser assediado para se incorporar a uma organização criminosa. Vítima de um atentado criminoso, o lutador simula sua própria morte e retorna para fazer justiça.

Misturando cenas reais de Bruce Lee com outras filmadas com um “ator” substituto, o filme é uma tremenda colcha de retalhos que tenta fazer algum sentido. Vale apenas pela curiosidade. E pela cara de pau dos envolvidos.

(Texto originalmente publicado no portal “Movi+” em abril de 2016)

Jorge Ghiorzi

quinta-feira, 2 de março de 2017

“Amy”: a fama que consome


Premiado em 2016 com Oscar da categoria, o documentário Amy refaz a trajetória do surgimento, ascensão, glória, decadência e prematuro desaparecimento da cantora e compositora britânica Amy Winehouse, falecida aos míticos 27 anos, em 2011.

Nesses tempos de elevada exposição midiática a qual estamos expostos, a disponibilidade do registro digital é uma realidade onipresente. Ainda assim, é surpreendente a existência de tantas gravações caseiras e semiprofissionais da trajetória de Amy, seja no âmbito privado, familiar, seja no registro histórico dos primeiros momentos da sua meteórica carreira.

Convencional em seu formato, mas envolvente pela personagem retratada, o documentário foi dirigido por Asif Kapadia, o mesmo realizador da cinebiografia Senna. Consta que a próxima empreitada de Kapadia será um filme sobre Maradona, reafirmando assim sua vocação para ser o documentarista oficial (!) dos famosos.


“Você sempre machuca quem você ama”

Celebridade involuntária e relutante, Amy Winehouse mostrou-se desde cedo afetada pela excessiva exposição da sua vida. Artista movida pela paixão, um talento espontâneo, Amy lutou a vida inteira contra a fama que a fragilizava e consumia.

Ao retratar de forma detalhista a recusa de Amy Winehouse ao culto às celebridades, o filme de Kapadia acaba por desenhar um cenário crítico sobre este universo que suga e vampiriza suas vítimas-alvo. As fraquezas emocionais de um artista podem facilmente ser potencializadas pelo assédio invasivo. E Amy Winehouse foi uma dessas vítimas, que se refugiou no álcool e drogas, até seu trágico fim.


“De certa forma o amor está me matando”

Documentários sobre celebridades já falecidas não trazem surpresas sobre o final. O interesse está, portanto, na trajetória, nos fatos, razões e motivações que determinaram o caminho. E Amy é suficientemente rico na construção de sua narrativa para atrair um olhar mais atento do espectador. Em destaque a comovente e sincera sequência com o cantor Tony Bennett (seu ídolo), com quem Amy chegou a gravar um histórico dueto, e também o momento emocionante do anuncio da melhor “Gravação do Ano” no Grammy de 2008, “Rehab”, da própria Amy.


Ao celebrar e resgatar a vida e a música de Amy Winehouse, o documentário, que está disponível na Netflix, é honesto, equilibrado e contundente, sem relativizar a conduta, por vezes no mínimo questionável, da própria artista que, voluntária ou involuntariamente, acabou por sabotar sua curta carreira. Amy agrada aos fãs e desperta o interesse nos curiosos.

(Publicado originalmente no portal “Movi+” em março de 2016)

Jorge Ghiorzi

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

“Deadpool”: reinvenção das adaptações


Questões de ordem. É necessário conhecer/ler os quadrinhos antes de assistir um filme? O não conhecimento prévio do material original prejudica a apreciação da obra em outra mídia? As indagações não são meramente retóricas. Fazem total sentido frente a muito bem sucedida adaptação de Deadpool para os cinemas. Longe de integrar o primeiro time dos super-heróis, o debochado e desbocado personagem sempre teve um status cult. Agora, vai conhecer o céu e o inferno do mainstream.

Voltando às questões iniciais, a resposta para ambas é “não”. Caso contrário, seria impossível assistir e apreciar na plenitude filmes como Guerra e Paz ou Laranja Mecânica, sem antes ler os livros de Leon Tolstoi e Anthony Burgess. Tipo estudar antes para ir bem na prova.

Resumo da ópera para esta introdução. Não, nunca li Deadpool nos quadrinhos. Mas sim, curti o filme. Meu julgamento é apenas sobre o que objetivamente assisti na tela, e não sobre o que supostamente possa estar achando que vi ou gostaria de ter visto.


Com Deadpool, o filme, as adaptações dos quadrinhos para o cinema definitivamente chegaram à pós-modernidade, aquele momento quando as narrativas entram em crise e passam para a autorreflexão. Repensar-se a si próprio. Houve um tempo em que as adaptações precisavam ser literais, no máximo com algumas poucas alterações na mitologia original das personagens, (tipo o Superman do Richard Donner em 1978, e o Homem Aranha de Sam Raimi do início dos anos 2000). Depois veio a fase dos universos expandidos e das revisões/reinterpretações da formação da mitologia, da qual o Batman de Christopher Nolan é o expoente máximo. Agora, passadas as necessárias fases de maturação, e prestes a esgotar a fórmula, chegou à fase três. A hora da diversão, de não levar-se a sério demais. O sucesso recente dos Guardiões da Galáxia apontou o caminho dessa reinvenção, no qual “Deadpool” se jogou de cabeça.

Quadrinho no original inglês é “comics”. Comédia, diversão, entretenimento. E Deadpool cumpre a missão. É divertido, sarcástico, autorreferente ao universo das HQs, crítico ao mundo pop e muito bem humorado. Talvez até um pouco demais em algumas sequências, chegando, por vezes, a um nível de irreverência que beira ao exagero gratuito. Mas tudo bem, está valendo o ingresso. É diversão para gente grande, sem esquecer os elementos de apelo ao público teen.


Com sacadas inspiradas, diálogos espertos e cinismo em doses generosas, o filme de Tim Miller não livra a cara de ninguém. Nem do próprio astro protagonista Ryan Reynolds, que leva na filmografia a fracassada (parar dizer o mínimo) adaptação Lanterna Verde. Agora, em sua nova incursão no gênero, Reynolds finalmente tem um super-herói para chamar de seu.

Vale chamar a atenção para a ótima presença da atriz brasileira Morena Baccarin no elenco. Com cartaz em alta na TV, onde já participou de séries como Firefly; V; Homeland e Gotham, Morena Baccarin dá seus primeiros passos no cinema. E tirou sorte grande com Deadpool.

A adaptação apostou na anarquia e quebrou a banca. As fenomenais bilheterias em todo o mundo estão aí para comprovar isso. Então, preparem-se. Vem aí Deadpool 2 com mais um estoque de piadinhas.

PS.: Não perca o encerramento dos créditos de Deadpool, OK?

(Texto originalmente publicado no portal “Movi+” em fevereiro de 2016)


Jorge Ghiorzi

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

David Bowie: o homem que caiu na Terra


O clichê consagrado é chamá-lo de camaleão. Faz sentido. Sua capacidade de se transmutar foi única no meio artístico. Mais do que diversificada e múltipla, sua trajetória foi consistente por vencer o desafio do tempo. Não foi uma explosão passageira, com prazo de validade.

O cantor, compositor, produtor musical e também ator inglês David Robert Jones, que o mundo conhece como David Bowie construiu uma carreira de mais de quatro décadas, encerrada no início de janeiro de 2016, dois dias após completar 69 anos de idade. Não sem antes nos deixar sua última obra “Blackstar”, recentemente lançada. Mas aqui não vamos tratar do Bowie músico. Vamos relembrar um pouco da trajetória do Bowie ator.

A figura estética de David Bowie sempre atraiu a atenção. Ícone fashion, andrógino, artista performático, mestre da arte de seduzir plateias, ele não fazia apenas música. Entregava um pacote completo: som, imagens, luzes e imaginação. Era quase inevitável, senão desejável, que Bowie se aproximasse do cinema, ou vice-versa.


O que pouca gente sabe é que antes de ser músico Bowie foi ator. Estudou teatro e participou de peças e filmes de TV na Inglaterra. Então, em 1969 tudo muda com o estouro de “Space Oddity”, e o ator iniciante dá lugar ao rockstar em ascensão. A reaproximação com o cinema só ocorreu em 1976 com o filme O Homem que Caiu na Terra, dirigido por Nicolas Roeg. Apropriadamente David Bowie interpretou um alienígena que vem à Terra em busca de salvação para seu planeta. A figura andrógina e misteriosa que o artista encarnava nos palcos naquele período foi muito bem aproveitada pelo filme que se mostrou um excelente veículo para potencializar a imagem que por muitos anos ficou associada ao artista.


No início dos anos 80 David Bowie atinge o ápice de sua carreira como artista pop. Com o lançamento do disco “Let’s Dance”, recheado de hits, Bowie vendeu como nunca e rivalizava nas paradas de sucesso com Michael Jackson. Muito requisitado pela mídia, e também pelo cinema, Bowie participou de diversos filmes neste intenso período. Em 1983 estrelou Furyo, Em Nome da Honra, dirigido por Nagisa Oshima (de Império dos Sentidos). Sua interpretação de um prisioneiro inglês preso num campo de concentração na ilha de Java, em plena Segunda Guerra Mundial, foi amplamente elogiada pela crítica, e Bowie definitivamente atingia o status de ator. Na sequência Bowie viveu, ao lado de Catherine Deneuve, um vampiro moderno em crise no clássico Cult Fome de Viver, de Tony Scott.

Cineasta em alta na metade dos anos 80, John Landis chama Bowie para uma participação na comédia de ação Um Romance Muito Perigoso (1985), estrelada por Jeff Goldblum e Michelle Pfeiffer.


O tipo exótico que Bowie sempre inspirou, foi mais uma vez muito bem utilizado na produção de 1986, Labirinto – A Magia do Tempo. Ao lado de uma jovem e bela Jennifer Connelly, David Bowie faz um convincente e maligno Rei dos Duendes nesta fantasia infanto-juvenil dirigida por Jim Henson.

Ainda em 1986 David Bowie participa do musical Absolute Beginners, de Julien Temple, que revive em tom nostálgico e dinâmico os anos 50 quando o rock domina o mundo e vira a cabeça da juventude. A trilha sonora, recheada de sucessos, inclui o próprio David Bowie.


Grande sonho de Martin Scorsese, o polêmico A Última Tentação de Cristo foi lançado sob protestos da comunidade religiosa em 1988. Para o papel de Pôncio Pilatos o diretor Scorsese escalou David Bowie, que aceitou o papel, abrindo mão de interpretar um vilão na série 007.

Nos anos 90 Bowie se limitou a fazer participações em filmes de pouca repercussão como Twin Peaks – Os Últimos Dias de Laura Palmer; Romance por Interesse e Basquiat – Traços de uma Vida, entre outros menores.


Na primeira década dos anos 2000 Davis Bowie ainda permanecia ativo no cinema. Estrelou o drama familiar Mr. Rice’s Secret (2000); deu um charme extra à comédia Zoolander (2001), de Ben Stiller; interpretou o cientista e inventor Nikola Tesla em O Grande Truque (2006), dirigido por Christopher Nolan; colocou a voz em um personagem da animação Arthur e os Minimoys (2006), de Luc Besson; dublou um personagem do desenho animado Bob Esponja (2007, na TV); participou do drama Reação Colateral (2008) e, por fim, sua última participação creditada no cinema como ator em ficção, foi em High School Band (2009) interpretando… David Bowie!

2016. Ano em que o homem que caiu na Terra partiu, nos deixando o legado de sua arte na música e no cinema.

(Texto originalmente publicado no portal “Movi+” em janeiro de 2016)

Jorge Ghiorzi

sábado, 4 de fevereiro de 2017

“Expresso do Amanhã”: viagem sem fim e sem volta


Não é nenhuma novidade a vocação de Hollywood para “importar” cineastas de outras nacionalidades. Além de revitalizar o ambiente criativo doméstico, a estratégia também serve para dar uma face mais internacional para o cinema que está cada vez mais globalizado, quase uma “commodity”. No período do pós-guerra o interesse estava nos cineastas europeus. Mais recentemente foi a vez dos realizadores latino americanos, particularmente os mexicanos. Agora, a bola da vez vem da Ásia. Mais claramente da Coréia do Sul.

Após o sucesso mundial de O Hospedeiro, lançado em 2006, o sul-coreano Joon-ho Bong entrou no radar dos grandes estúdios. Seu trabalho seguinte, Expresso do Amanhã (Snowpiercer, 2013) já ganhou ares de produção internacional, pois é falada em inglês, conta com elenco predominantemente americano e inglês, e foi financiada parcialmente com capital europeu e norte-americano.


Baseado em uma graphic novel francesa chamada “Le Transperceneige”, de Jean-Marc Rochette e Jacques Loeb, “Expresso do Amanhã” é uma ficção científica que segue a trilha das distopias ao retratar uma Terra em perigo de extinção, tomada por uma nova era glacial que ameaça a vida no planeta. Neste cenário apocalíptico os poucos sobreviventes estão confinados a bordo de um trem (maravilha da tecnologia de ponta) que segue ininterruptamente em viagem, sem parar já por 17 anos. Esta é a única forma de assegurar a sobrevivência num meio ambiente que passou a ser hostil aos serem humanos.

No interior do trem os “passageiros” são apartados de acordo com seu status social. Os pobres vivem em condições miseráveis, nos últimos vagões da composição férrea. A classe dominante privilegiada vive uma boa vida de conforto e luxo nos vagões da dianteira. Até que chega o dia da revolta dos oprimidos que decidem entrar em combate contra a injustiça social que se reproduz no interior daquele trem. O líder dos revoltados, Curtis (interpretado por Chris Evans, o “Capitão América” em pessoa), é a figura mítica que vai alterar a ordem estabelecida naquele microcosmo


Todos os elementos de um típico filme de ação hollywoodiano estão identificáveis em Expresso do Amanhã. O herói, o antagonista, o conflito, a missão e a adrenalina, o combustível que move o enredo. Porém, por tratar-se de uma produção dirigida por um coreano, tudo isto se apresenta sob uma ótica diversa do modelo hegemônico, com uma abordagem que denuncia um novo olhar para filmes de gênero. A ênfase ao movimento, à energia cinética, cadenciada na edição clipada, marca registrada do cinema de ação produzido em Hollywood, está presente na tela. Mas há algo mais em cena. Uma sensibilidade incomum no gênero. Isto fica muito evidente no tratamento dado às personagens. Sim, às personagens, no plural. O foco da narrativa não está concentrado apenas no protagonista. Os personagens secundários também são relevantes e capturam o interesse do espectador.

A cenografia também merece registro, ao propor um modelo de ação 100% confinada no espaço estrito de um trem, por si só uma premissa estimulante. O extrato social da pirâmide de classes (castas) é engenhosamente bem resolvido na concepção estilizada de cada um dos vagões que compõem  o comboio. São relíquias arqueológicas de um mundo que sucumbiu ao apocalipse, preservadas no espaço-tempo do universo em movimento do trem que não pode interromper sua viagem eterna, como um tubarão que jamais pode parar de nadar.

(Texto originalmente publicado no portal “Movi+” em setembro de 2015)

Jorge Ghiorzi