quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

“Deadpool”: reinvenção das adaptações


Questões de ordem. É necessário conhecer/ler os quadrinhos antes de assistir um filme? O não conhecimento prévio do material original prejudica a apreciação da obra em outra mídia? As indagações não são meramente retóricas. Fazem total sentido frente a muito bem sucedida adaptação de Deadpool para os cinemas. Longe de integrar o primeiro time dos super-heróis, o debochado e desbocado personagem sempre teve um status cult. Agora, vai conhecer o céu e o inferno do mainstream.

Voltando às questões iniciais, a resposta para ambas é “não”. Caso contrário, seria impossível assistir e apreciar na plenitude filmes como Guerra e Paz ou Laranja Mecânica, sem antes ler os livros de Leon Tolstoi e Anthony Burgess. Tipo estudar antes para ir bem na prova.

Resumo da ópera para esta introdução. Não, nunca li Deadpool nos quadrinhos. Mas sim, curti o filme. Meu julgamento é apenas sobre o que objetivamente assisti na tela, e não sobre o que supostamente possa estar achando que vi ou gostaria de ter visto.


Com Deadpool, o filme, as adaptações dos quadrinhos para o cinema definitivamente chegaram à pós-modernidade, aquele momento quando as narrativas entram em crise e passam para a autorreflexão. Repensar-se a si próprio. Houve um tempo em que as adaptações precisavam ser literais, no máximo com algumas poucas alterações na mitologia original das personagens, (tipo o Superman do Richard Donner em 1978, e o Homem Aranha de Sam Raimi do início dos anos 2000). Depois veio a fase dos universos expandidos e das revisões/reinterpretações da formação da mitologia, da qual o Batman de Christopher Nolan é o expoente máximo. Agora, passadas as necessárias fases de maturação, e prestes a esgotar a fórmula, chegou à fase três. A hora da diversão, de não levar-se a sério demais. O sucesso recente dos Guardiões da Galáxia apontou o caminho dessa reinvenção, no qual “Deadpool” se jogou de cabeça.

Quadrinho no original inglês é “comics”. Comédia, diversão, entretenimento. E Deadpool cumpre a missão. É divertido, sarcástico, autorreferente ao universo das HQs, crítico ao mundo pop e muito bem humorado. Talvez até um pouco demais em algumas sequências, chegando, por vezes, a um nível de irreverência que beira ao exagero gratuito. Mas tudo bem, está valendo o ingresso. É diversão para gente grande, sem esquecer os elementos de apelo ao público teen.


Com sacadas inspiradas, diálogos espertos e cinismo em doses generosas, o filme de Tim Miller não livra a cara de ninguém. Nem do próprio astro protagonista Ryan Reynolds, que leva na filmografia a fracassada (parar dizer o mínimo) adaptação Lanterna Verde. Agora, em sua nova incursão no gênero, Reynolds finalmente tem um super-herói para chamar de seu.

Vale chamar a atenção para a ótima presença da atriz brasileira Morena Baccarin no elenco. Com cartaz em alta na TV, onde já participou de séries como Firefly; V; Homeland e Gotham, Morena Baccarin dá seus primeiros passos no cinema. E tirou sorte grande com Deadpool.

A adaptação apostou na anarquia e quebrou a banca. As fenomenais bilheterias em todo o mundo estão aí para comprovar isso. Então, preparem-se. Vem aí Deadpool 2 com mais um estoque de piadinhas.

PS.: Não perca o encerramento dos créditos de Deadpool, OK?

(Texto originalmente publicado no portal “Movi+” em fevereiro de 2016)


Jorge Ghiorzi

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

David Bowie: o homem que caiu na Terra


O clichê consagrado é chamá-lo de camaleão. Faz sentido. Sua capacidade de se transmutar foi única no meio artístico. Mais do que diversificada e múltipla, sua trajetória foi consistente por vencer o desafio do tempo. Não foi uma explosão passageira, com prazo de validade.

O cantor, compositor, produtor musical e também ator inglês David Robert Jones, que o mundo conhece como David Bowie construiu uma carreira de mais de quatro décadas, encerrada no início de janeiro de 2016, dois dias após completar 69 anos de idade. Não sem antes nos deixar sua última obra “Blackstar”, recentemente lançada. Mas aqui não vamos tratar do Bowie músico. Vamos relembrar um pouco da trajetória do Bowie ator.

A figura estética de David Bowie sempre atraiu a atenção. Ícone fashion, andrógino, artista performático, mestre da arte de seduzir plateias, ele não fazia apenas música. Entregava um pacote completo: som, imagens, luzes e imaginação. Era quase inevitável, senão desejável, que Bowie se aproximasse do cinema, ou vice-versa.


O que pouca gente sabe é que antes de ser músico Bowie foi ator. Estudou teatro e participou de peças e filmes de TV na Inglaterra. Então, em 1969 tudo muda com o estouro de “Space Oddity”, e o ator iniciante dá lugar ao rockstar em ascensão. A reaproximação com o cinema só ocorreu em 1976 com o filme O Homem que Caiu na Terra, dirigido por Nicolas Roeg. Apropriadamente David Bowie interpretou um alienígena que vem à Terra em busca de salvação para seu planeta. A figura andrógina e misteriosa que o artista encarnava nos palcos naquele período foi muito bem aproveitada pelo filme que se mostrou um excelente veículo para potencializar a imagem que por muitos anos ficou associada ao artista.


No início dos anos 80 David Bowie atinge o ápice de sua carreira como artista pop. Com o lançamento do disco “Let’s Dance”, recheado de hits, Bowie vendeu como nunca e rivalizava nas paradas de sucesso com Michael Jackson. Muito requisitado pela mídia, e também pelo cinema, Bowie participou de diversos filmes neste intenso período. Em 1983 estrelou Furyo, Em Nome da Honra, dirigido por Nagisa Oshima (de Império dos Sentidos). Sua interpretação de um prisioneiro inglês preso num campo de concentração na ilha de Java, em plena Segunda Guerra Mundial, foi amplamente elogiada pela crítica, e Bowie definitivamente atingia o status de ator. Na sequência Bowie viveu, ao lado de Catherine Deneuve, um vampiro moderno em crise no clássico Cult Fome de Viver, de Tony Scott.

Cineasta em alta na metade dos anos 80, John Landis chama Bowie para uma participação na comédia de ação Um Romance Muito Perigoso (1985), estrelada por Jeff Goldblum e Michelle Pfeiffer.


O tipo exótico que Bowie sempre inspirou, foi mais uma vez muito bem utilizado na produção de 1986, Labirinto – A Magia do Tempo. Ao lado de uma jovem e bela Jennifer Connelly, David Bowie faz um convincente e maligno Rei dos Duendes nesta fantasia infanto-juvenil dirigida por Jim Henson.

Ainda em 1986 David Bowie participa do musical Absolute Beginners, de Julien Temple, que revive em tom nostálgico e dinâmico os anos 50 quando o rock domina o mundo e vira a cabeça da juventude. A trilha sonora, recheada de sucessos, inclui o próprio David Bowie.


Grande sonho de Martin Scorsese, o polêmico A Última Tentação de Cristo foi lançado sob protestos da comunidade religiosa em 1988. Para o papel de Pôncio Pilatos o diretor Scorsese escalou David Bowie, que aceitou o papel, abrindo mão de interpretar um vilão na série 007.

Nos anos 90 Bowie se limitou a fazer participações em filmes de pouca repercussão como Twin Peaks – Os Últimos Dias de Laura Palmer; Romance por Interesse e Basquiat – Traços de uma Vida, entre outros menores.


Na primeira década dos anos 2000 Davis Bowie ainda permanecia ativo no cinema. Estrelou o drama familiar Mr. Rice’s Secret (2000); deu um charme extra à comédia Zoolander (2001), de Ben Stiller; interpretou o cientista e inventor Nikola Tesla em O Grande Truque (2006), dirigido por Christopher Nolan; colocou a voz em um personagem da animação Arthur e os Minimoys (2006), de Luc Besson; dublou um personagem do desenho animado Bob Esponja (2007, na TV); participou do drama Reação Colateral (2008) e, por fim, sua última participação creditada no cinema como ator em ficção, foi em High School Band (2009) interpretando… David Bowie!

2016. Ano em que o homem que caiu na Terra partiu, nos deixando o legado de sua arte na música e no cinema.

(Texto originalmente publicado no portal “Movi+” em janeiro de 2016)

Jorge Ghiorzi

sábado, 4 de fevereiro de 2017

“Expresso do Amanhã”: viagem sem fim e sem volta


Não é nenhuma novidade a vocação de Hollywood para “importar” cineastas de outras nacionalidades. Além de revitalizar o ambiente criativo doméstico, a estratégia também serve para dar uma face mais internacional para o cinema que está cada vez mais globalizado, quase uma “commodity”. No período do pós-guerra o interesse estava nos cineastas europeus. Mais recentemente foi a vez dos realizadores latino americanos, particularmente os mexicanos. Agora, a bola da vez vem da Ásia. Mais claramente da Coréia do Sul.

Após o sucesso mundial de O Hospedeiro, lançado em 2006, o sul-coreano Joon-ho Bong entrou no radar dos grandes estúdios. Seu trabalho seguinte, Expresso do Amanhã (Snowpiercer, 2013) já ganhou ares de produção internacional, pois é falada em inglês, conta com elenco predominantemente americano e inglês, e foi financiada parcialmente com capital europeu e norte-americano.


Baseado em uma graphic novel francesa chamada “Le Transperceneige”, de Jean-Marc Rochette e Jacques Loeb, “Expresso do Amanhã” é uma ficção científica que segue a trilha das distopias ao retratar uma Terra em perigo de extinção, tomada por uma nova era glacial que ameaça a vida no planeta. Neste cenário apocalíptico os poucos sobreviventes estão confinados a bordo de um trem (maravilha da tecnologia de ponta) que segue ininterruptamente em viagem, sem parar já por 17 anos. Esta é a única forma de assegurar a sobrevivência num meio ambiente que passou a ser hostil aos serem humanos.

No interior do trem os “passageiros” são apartados de acordo com seu status social. Os pobres vivem em condições miseráveis, nos últimos vagões da composição férrea. A classe dominante privilegiada vive uma boa vida de conforto e luxo nos vagões da dianteira. Até que chega o dia da revolta dos oprimidos que decidem entrar em combate contra a injustiça social que se reproduz no interior daquele trem. O líder dos revoltados, Curtis (interpretado por Chris Evans, o “Capitão América” em pessoa), é a figura mítica que vai alterar a ordem estabelecida naquele microcosmo


Todos os elementos de um típico filme de ação hollywoodiano estão identificáveis em Expresso do Amanhã. O herói, o antagonista, o conflito, a missão e a adrenalina, o combustível que move o enredo. Porém, por tratar-se de uma produção dirigida por um coreano, tudo isto se apresenta sob uma ótica diversa do modelo hegemônico, com uma abordagem que denuncia um novo olhar para filmes de gênero. A ênfase ao movimento, à energia cinética, cadenciada na edição clipada, marca registrada do cinema de ação produzido em Hollywood, está presente na tela. Mas há algo mais em cena. Uma sensibilidade incomum no gênero. Isto fica muito evidente no tratamento dado às personagens. Sim, às personagens, no plural. O foco da narrativa não está concentrado apenas no protagonista. Os personagens secundários também são relevantes e capturam o interesse do espectador.

A cenografia também merece registro, ao propor um modelo de ação 100% confinada no espaço estrito de um trem, por si só uma premissa estimulante. O extrato social da pirâmide de classes (castas) é engenhosamente bem resolvido na concepção estilizada de cada um dos vagões que compõem  o comboio. São relíquias arqueológicas de um mundo que sucumbiu ao apocalipse, preservadas no espaço-tempo do universo em movimento do trem que não pode interromper sua viagem eterna, como um tubarão que jamais pode parar de nadar.

(Texto originalmente publicado no portal “Movi+” em setembro de 2015)

Jorge Ghiorzi

segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

“Hacker”: Michael Mann, um renegado de Hollywood


Não é novidade para ninguém que o cinema comercial norte-americano é uma máquina avassaladora que premia sucessos de bilheteria na mesma medida em que condena qualquer manifestação de autonomia criativa que não siga a cartilha. Cineastas do mainstream que eventualmente flertam com um cinema um pouco mais autoral são jogados ao limbo na medida em que os fracassos de público se sucedem. Nunca é demais lembrar que sucessos de bilheteria não necessariamente são êxitos de crítica. A bem da verdade, essa lógica, no mais das vezes, é reversa.

Não faltam nomes para incluir na relação de cineastas malditos para a indústria, conhecidos como “venenos de bilheteria”. Apenas para ficar nos tempos mais contemporâneos, nesta lista negra estão nomes como Brian De Palma; William Friedkin; Paul Schrader; Paul Verhoeven e Michael Cimino, entre outros, que após grandes sucessos buscaram reafirmar uma carreira mais personalista, e fracassaram (ao menos no mercado norte-americano).


Faz parte deste time de cineastas renegados de Hollywood o diretor Michael Mann, conhecido por filmes como O Último dos Moicanos; Fogo Contra Fogo; Colateral e Miami Vice, versão cinematográfica da célebre e cult série de TV dos anos 80, da qual Mann foi um dos criadores e produtor executivo. Seu mais recente filme, Hacker (Blackhat, 2015), após um lançamento fracassado nos cinemas dos Estados Unidos, onde frustrou as expectativas nas bilheterias, caiu em desgraça nas distribuidoras internacionais que optaram por lançar o longa-metragem diretamente para o mercado de home video (DVD e Blu-Ray), inclusive no Brasil, onde acaba de ser disponibilizado.

Cineasta de gênero, especialistas em narrativas policiais de suspense, Michael Mann costuma alcançar resultados acima da média em suas produções. Habilidoso no trato das cenas de ação, fortemente marcadas por um estilo elegante, Mann costuma jogar todas as fichas de seus filmes enfocando mais em personagens do que nas tramas propriamente ditas. Embora não seja de seus trabalhos mais inspirados, Hacker possui qualidades que justificariam uma maior circulação, e merece sim uma conferida com mais atenção.

O filme aborda questões tecnológicas que, apesar de abstratas e intangíveis, estão aí na ordem do dia afetando a todos nós. O universo interligado e as conexões da internet são o tema de fundo da produção. A abordagem deste assunto por um cineasta de mais de 70 anos é reveladoramente respeitosa e um tanto distante. E logo fica flagrante que Michael Mann demonstra pouca adesão ao tema, preferindo tratar do mundo real ao invés do universo virtual, que ao final das contas não passará apenas de um pretexto para acionar a ação da narrativa.


O filme tem como protagonista um especialista em invadir sistemas e redes de computador, preso por cometer crimes virtuais, interpretado por Chris Hemsworth (revelado pelo papel em Thor). Porém, seus préstimos serão solicitados pelos serviços de inteligência dos governos da China e dos EUA, após uma série de atentados virtuais em usinas atômicas e na bolsa de valores. Acompanhado de um agente chinês, o hacker americano precisa identificar, localizar e impedir novos golpes do gênio cibernético, com o qual acaba por rivalizar em termos habilidade, capacidade e conhecimento.

Dos cineastas americanos do primeiro time, Michael Mann tem o mérito de ser um dos primeiros a adotar as filmagens em vídeo digital, o que hoje é quase uma unanimidade. No entanto, apesar deste caráter, digamos, moderno e antenado com os novos tempos, em termos narrativos e estéticos Mann é um cineasta que poderíamos chamar de “old school”. A agilidade que o equipamento digital permite é muito bem utilizada pelo diretor que sabe carregar com dinamismo as sequências de ação. Inclusive nas cenas noturnas (uma marca de Mann) que privilegiam enquadramentos fechados e closes que ganham uma textura peculiar e granulada, também vistas com destaque em Miami Vice, o filme.

Hacker não é o melhor de Michael Mann, mas reafirma as características do realizador que constrói um cinema onde a imagem se impõe sobre a narrativa, sem perder a mão (e o interesse) para a trajetória pessoal de seus (anti)heróis.

(Texto originalmente publicado no portal “Movi+” em julho de 2015)

Jorge Ghiorzi

terça-feira, 24 de janeiro de 2017

O renascimento da cinefilia


As inovações tecnológicas alteraram profundamente a forma e as condições com que assistimos filmes. Do suporte físico do celuloide, vivemos hoje tempos onde os acervos estão nas nuvens, esse espaço intangível onde cabem todos nossos sonhos.

Desde o surgimento do cinema, há mais de 120 anos, até o final dos anos 70, exercer a cinefilia exigia, além de dedicação, uma disponibilidade de tempo e recursos. O resgate e a revisão das grandes obras do cinema só era possível através do acesso às cinematecas. Mas então, o milagre se fez. Nos anos 80 surge o VHS. E tudo mudou. Pela primeira vez uma geração de cinéfilos sentiu o gostinho de “levar o cinema para casa”. Com aquelas fitas magnéticas, seladas ou piratas, os usuários se sentiam um pouquinho donos dos filmes. E a cinefilia viveu seu primeiro apogeu. Podia-se ver e rever filmes no conforto dos lares. A opção de escolha se tornou possível. Depois, era só rebobinar a fita e devolver na locadora antes de virar mais uma diária.


Quando o mundo do audiovisual já parecida dominado, eis que surge mais uma novidade tecnológica, que acabou por revigorar o prazer de consumir cinema em casa. Os antigos VHS foram substituídos pelos então inovadores DVDs. E lá se foi uma geração de cinéfilos se desfazendo dos acervos de fitas emboloradas em troca das elegantes cópias em DVD. A qualidade de som e imagem eram “Infinitamente” superiores. Sem falar que ocupavam menos espaço na estante.

Ah, bendita tecnologia! Sempre nos aprontando das suas. E não é que lá veio outra inovação? O futuro chegou. E com ele vieram os insuperáveis Blu-rays. Som THX, 5.1 canais, stereo surrounded e imagem cristalina em full HD. Com essas qualidades era quase uma obrigação substituirmos nossos queridos DVDs. Por que não? Os novos disquinhos azuis ocupavam ainda menos espaço.


A revolução seguinte acabou por se dar não no suporte no qual os filmes eram apresentados. Mas sim na diversificação dos canais de disponibilização. Chegou a era dos filmes “on demand”. A filosofia é simples: assistir o que quiser, na hora que desejar, da forma mais conveniente. A diversificação dos dispositivos e a evolução da velocidade do streaming propicia nosso consumo de filmes no computador, no tablet, no smartphone e na smart TV. Sem suporte físico. E sem ocupar espaço nas prateleiras. O inovador serviço da Netflix passou a ser o sonho de consumo dos novos (e antigos) cinéfilos.


Então, quando tudo parecia ajustado, eis que surge um novo prazer para exercermos a boa e velha cinefilia. O superado e decadente DVD vive um momento de renascimento. E a responsável por este movimento é a Versátil Home Vídeo que descobriu um nicho de mercado que dá novo fôlego aos disquinhos prateados. A vocação do colecionismo, típica dos cinéfilos de carteirinha, voltou a dar sinais de vida graças aos imperdíveis lançamentos dos boxes de DVDs dos mais diversos temas. E tem para todos os gostos: terror; western, ficção científica, filme noir, e tantos outros. Além de lançar filmes inéditos no mercado brasileiro, as edições da Versátil respeitam o consumidor aos privilegiar as versões restauradas, nas melhores condições disponíveis, recheados de extras que fazem a alegria de qualquer espectador. Hoje, com a Versátil, voltar a consumir e colecionar DVDs é vintage.

Curiosa essa evolução nas formas de assistirmos filmes. No início, nos primitivos “nickelodeons’, a exibição era privada. Apenas um espectador de cada vez. Depois, com o surgimento das gigantescas salas de cinema, as sessões passaram a ser um ritual coletivo. Centenas de pessoas, no mesmo ambiente, compartilhavam o mesmo momento. Na medida em que a tecnologia avançou o ato da cinefilia recuou para o ambiente doméstico, com poucos espectadores. E por fim, fechando um ciclo, a experiência de assistir filmes praticamente voltou a ser solitária com o uso dos dispositivos móveis, como o celular e o tablet. No entanto, apesar de tudo e todos, a cinefilia continua muito viva. E nunca foi tão fácil praticá-la.

(Texto originalmente publicado no portal “Movi+” em agosto de 2015)

Jorge Ghiorzi

terça-feira, 17 de janeiro de 2017

Cinema, Política & Ideologias


Um filme é sempre a representação de uma época. Um recorte no tempo, no espaço e nas circunstâncias sociais. Quando o cinema retrata fatos políticos isto fica ainda mais flagrante. Não se trata exatamente de um gênero cinematográfico, mas de uma visão do mundo, sujeita sempre à interpretações ideológicas ou versões dos vencedores. Acompanhe esta viagem por 7 filmes, que se passam em 7 países em 4 continentes.


País: EUA
TODOS OS HOMENS DO PRESIDENTE (Direção: Alan J. Pakula -1976)
Clássico filme político norte-americano. Exemplar do cinema engajado de Hollywood dos anos 70, que trata do emblemático caso Watergate, cujas consequências culminaram na renúncia do presidente Richard Nixon. Dois jornalistas (Robert Redford e Dustin Hoffman) do Washington Post iniciam uma investigação protocolar sobre a invasão do prédio Watergate por cinco ladrões comuns, e se deparam com um escândalo de espionagem política que tem sua origem na Casa Branca.


País: Chile
DESAPARECIDO – UM GRANDE MISTÉRIO (Direção: Costa-Gavras – 1982)
Em 1973, no Chile, um golpe de estado derruba o presidente Salvador Allende. Baseado numa história verídica, Desaparecido narra a história de um pai norte-americano (Jack Lemmon) que vai até o Chile, em plena guerra civil, para descobrir o paradeiro do filho, um jornalista considerado subversivo, que, após ser submetido a um interrogatório, desaparece. Nesta jornada pelos porões de uma ditadura violenta e sanguinária o pai, até então um alienado político, acaba verdadeiramente conhecendo quem foi seu filho.


País: Argentina
A HISTÓRIA OFICIAL (Direção: Luis Puenzo – 1985)
Após a ditadura militar, que vigorou de 1976 até 1983, a Argentina tratou de buscar a identidade perdida do país. Sem negar o passado, nem jogá-lo para debaixo do tapete, a coletividade argentina encarou de frente a reconstrução, de vidas e da nação. O filme A História Oficial, produzido ainda sob os ecos da ditadura recém findada, é um exemplo vigoroso deste momento. Em plena “guerra suja” do regime militar argentino uma professora da classe média (Norma Aleandro) decide descobrir quem são os verdadeiros pais de sua filha adotiva. O que descobre era para ser uma história nunca revelada.

País: URSS
REDS (Direção: Warren Beatty – 1981)
Drama biográfico baseado na vida de John Reed, o jornalista e escritor socialista norte-americano que testemunhou e retratou a Revolução Soviética no livro “Dez Dias que Abalaram o Mundo”. Mesclando um pouco de reportagem e outro tanto de política, Reds é uma versão romantizada de uma figura que era tratada como herói pela antiga União Soviética. John Reed (Warren Beatty), juntamente com a ativista feminista Louise Bryant (Diane Keaton), vai para a Rússia para ver de perto a Revolução de Outubro de 1917, quando os comunistas assumiram o poder. Ao retornarem aos EUA pretendem liderar uma revolução semelhante na América.


País: Alemanha
ADEUS, LÊNIN! (Direção: Wolfgang Becker – 2003)
A queda do Muro de Berlim e a unificação da Alemanha são o pano de fundo histórico desta comédia dramática que faz graça dos antigos símbolos do socialismo soviético. O protagonista é um jovem ativista que protesta contra o regime socialista da então Alemanha Oriental (RDA), para desgosto da mãe, totalmente alinhada à doutrina soviética. Após sofrer um ataque cardíaco ela fica em coma por vários meses. Neste tempo muita coisa mudou no país, que deixou de ser comunista. Quando afinal ela desperta do coma o jovem faz de tudo para poupar a mãe do choque com a nova realidade capitalista do país. Uma crítica mordaz aos regimes totalitários baseados na doutrinação cega da população.


País: Brasil
PRA FRENTE, BRASIL (Direção: Roberto Farias – 1982)
Enquanto o Brasil parava para torcer pela seleção brasileira na Copa de 1970, nos porões da ditadura militares “torciam” e torturavam presos políticos. O filme tem o mérito de ser uma das primeiras produções brasileiras a retratar os anos de chumbo no país e chegou a ser alvo de censura por algum tempo. A dureza daqueles anos de repressão invadiu a vida de uma família da classe média quando um pacato trabalhador é confundido com um subversivo de esquerda. Preso e condenado sem julgamento, o inocente não suporta a violência das diversas sessões de tortura e morre. Enquanto isso, o país canta a marchinha “Pra Frente, Brasil” pela conquista do tri campeonato na Copa do México.


País: Argélia
A BATALHA DE ARGEL (Direção: Gillo Pontecorvo – 1966)
O filme retrata os episódios emblemáticos que marcaram o levante do povo da Argélia em sua luta pela independência, quando ainda era uma colônia francesa, na segunda metade dos anos 50. Com um estilo marcadamente documental, o diretor Gillo Pontecorvo reconstituiu episódios reais utilizando moradores locais como atores. Um dos maiores clássicos mundiais do cinema político, A Batalha de Argel, ainda que um tanto panfletário, é um estimado libelo contra a opressão que inspirou (e ainda inspira) sonhos revolucionários mundo afora.

(Texto originalmente publicado no Caderno “Movi+ do jornal NH em março de 2015)

Jorge Ghiorzi

quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

“Birdman”: voo por uma mente atormentada


Histórias sobre redenções pessoais são sempre catalisadoras da atenção do público. Representam ideais de superação e são invariavelmente inspiradoras. Na literatura e no cinema encontramos muitas histórias assim. É por este caminho que vai Birdman ou A Inesperada Virtude da Ignorância, dirigido por Alejandro González Iñarritu, recentemente premiado com o Oscar nas categorias de Fotografia, Roteiro, Diretor e Filme.

Porém, em Birdman a redenção não é exatamente um ponto consensual, pois a subjetividade da narrativa não nos permite afirmar objetivamente se foi ou não bem sucedida. Mas, no fundo, não é o ponto final que importa, mas sim a jornada de (auto) descoberta do protagonista.


O ator Riggan Thomson (Michael Keaton) foi um astro no passado, quando interpretou com grande sucesso o personagem Birdman numa franquia de sucesso no cinema. Mas, ao recusar o retorno ao personagem pela quarta vez, sua carreira entrou em declínio. Para recuperar a fama perdida, e provar que é um ator de respeito, ele decide produzir, dirigir e estrelar uma adaptação teatral na Broadway de uma obra de Raymond Carver. Durante o processo de montagem, ensaios e pré-estreia o ator vive momentos de intensa pressão ao mesmo tempo em que reavalia suas relações com a ex-esposa, a filha, o empresário, os demais atores da peça, a crítica e a mídia em geral.

O tema do artista em decadência, tentando se reestabelecer na profissão, sem atentar para o fato de que seu tempo é passado, já foi tratado no clássico Crepúsculo dos Deuses (1950), que narra o ocaso da grande estrela Norma Desmond (Gloria Swanson). O mesmo confronto entre o universo interior e exterior da protagonista do filme de Billy Wilder também está presente na mente do protagonista de Birdman. Se o mundo de ficção onde Norma Desmond vive é apenas sugerido por seus atos e ações, no caso de Birdman a irrealidade ocupa a quase totalidade da narrativa de Alejandro Iñarritu. E o espectador mergulha junto no universo atormentado do ator à beira de um colapso.


Nestes tempos em que vivemos, a performance e os resultados são a mola propulsora da sociedade, especialmente na América, onde a competitividade acirrada inevitavelmente aparta e distancia vencedores de perdedores. Atingir o sucesso profissional é uma meta. A permanência no topo, no entanto, é uma missão de vida. Caso contrário, o perdedor é carta fora do baralho. O excessivo culto às celebridades é parte deste processo. Este é o drama existencial que assombra o personagem central de Birdman. Sua nova empreitada, a peça que tenta desesperadamente produzir e protagonizar, representa sua derradeira tentativa para se manter relevante e significativo no mundo artístico. E não será fácil, sabemos todos nós. A fuga da realidade, o delírio e a negação dos fatos parecem mais confortáveis para este duro enfrentamento da vida real.


A opção de Iñarritu em filmar a totalidade do longa com uma série de planos sequência foi uma opção narrativa muito interessante, na medida em que é uma eficiente representação estética do fluxo de consciência vivido por Riggan Thomson, em constante conflito com seus demônios interiores. As leis da física e da gravidade são quebradas para acompanhar os delírios de um ator em busca de seu papel redentor. Após duas horas de projeção, Birdman nos entrega um final marcadamente ambíguo que parece fazer pleno sentido para as incertezas do protagonista.

(Texto originalmente publicado no portal “Movi+) em março de 2015)


Jorge Ghiorzi