terça-feira, 13 de junho de 2017

"Daqui a Cem Anos": um futuro possível


Todo filme de ficção científica que se preze invariavelmente apresenta altas doses de ambição. Explorar as possibilidades infinitas de um futuro possível é um arriscado, nem por isto menos estimulante, exercício de pretensão. É justamente a imponderabilidade do tempo futuro que estimula a imaginação dos escritores do gênero. Dentre eles o nome de H. G. Wells se destaca. Não só pela qualidade da obra, mas pelo fato de ser um dos autores mais adaptados pelo cinema. Livros, contos e novelas de Wells são fonte de inspiração de filmes desde 1919, com uma primeira versão de The First Men in the Moon, até hoje, incluindo uma anunciada nova adaptação de O Homem Invisível, a ser lançada em 2018, com Johnny Depp no elenco.

Umas das primeiras obras de H. G. Wells utilizadas no cinema foi Daqui a Cem Anos (Things to Come, 1936), longa-metragem dirigido por William Cameron Menzies (Os Invasores de Marte), um reconhecido Diretor de Arte que eventualmente se arriscava na direção de filmes. Neste trabalho Menzies contou com uma colaboração de luxo. O próprio Wells foi autor do roteiro, uma experiência única na sua carreira. O filme foi baseado no livro “The Shape of Things to Come”, publicado em 1933, que faz uma crônica da civilização humana até o ano de 2106.


Daqui a Cem Anos, apesar do que diz o título brasileiro, não conta a história de um século. Mas apenas 96 anos (!). Explica-se: a narrativa inicia em 1940 e encerra em 2036. Aqui, já temos uma peculiaridade. A história do filme tem seu ponto de partida apenas quatro anos à frente da época em que foi realizado (1936). No mundo real, a Guerra Mundial era uma possibilidade real naquele momento histórico, que, infelizmente, acabou por se confirmar em 1939. Este mesmo clima de ameaça à paz dá o tom inicial do filme, que se passa na fictícia “Everytown”, claramente inspirada em Londres. A cidade vive a iminência do início da Guerra, que já havia eclodido na Europa, mas tenta esquecer temporariamente os problemas para viver os dias de alegria que antecedem o Natal de 1940. Nesta sociedade organizada e próspera, a crença nos valores da família e a fé inabalável nas possibilidades da ciência garantem a prosperidade. Esta é a visão de mundo do personagem central, John Cabal (Raymond Massey). Segundo seu entendimento, somente uma guerra seria capaz de romper aquele equilíbrio social. E ela vem, com todo seu poder de destruição e desagregação familiar. Vidas sucumbem, esperanças morrem e a cidade de “Everytown” se transforma em ruínas após duas décadas de conflito.

Corte. Somos jogados no futuro, no ano de 1966. A guerra acabou. Mas as cidades e suas populações foram duramente castigadas. Os recursos e a prosperidade são coisas do passado. A nova realidade impõe um cenário de miséria, fome e destruição. Quase uma volta ao tempo das cavernas. Uma das mais nefastas consequências da guerra foi a temível “Doença dos Errantes” que leva as pessoas a ficarem vagando sem rumo (zumbis?). Os contaminados eram abatidos a tiro, sem compaixão. A peste extermina metade da população.


Mais um pulo no tempo. Estamos em 1970. A “peste” foi erradicada. A civilização começa a dar sinais de estar saindo da época das trevas. No entanto, naquela nova sociedade rural que começa a se formar, ainda não há a noção de Estado e Governo. No vácuo de poder logo o instinto de dominação dos homens se manifesta com o surgimento de um pequeno tirano local que domina com mão de ferro a região de “Everytown”, transformada num pequeno reino particular. Porém tudo muda com o retorno de John Cabal à cidade, após lutar no front de batalha da guerra. Ele vem com ideias progressistas, ainda com a fé inabalável nos poderes transformadores da ciência e da tecnologia. Dá-se então o inevitável embate entre a barbárie (o tirano) e a civilização (o progressista), e o mundo mergulha na nova ordem mundial que promete tempos de prosperidade.

Uma última viagem no tempo. Vamos parar em 2036, no admirável mundo novo, altamente tecnológico, onde todas as necessidades materiais do homem estão supridas. Mas, nem tudo é um mar de rosas. Em certo momento um dos personagens diz: “Progresso não é viver. É a preparação para viver”. Não há mais desafios pessoais, a ciência dá todas as respostas. A questão de fundo é: Será este o mundo que realmente desejamos?


Daqui a Cem Anos é uma típica alegoria progressista que já foi tema de muitas histórias de H. G. Welles. Há, porém, um componente adicional: o humanismo. Além do grande e ambicioso painel histórico que a história retrata, não foram deixados de lado os pequenos dramas pessoais que movem as grandes revoluções. A utopia das sociedades perfeitas e mundos idealizados é tema de fundo das primeiras obras de ficção científica produzidas nos anos iniciais do século 20. E Daqui a Cem Anos é um inestimável exemplo do que de melhor já se fez no gênero. Vale lembrar que ele surge apenas uma década após a obra-prima Metrópolis, de Fritz Lang, com a qual, aliás, possui alguns pontos de contato pela abordagem do totalitarismo nas sociedades altamente tecnológicas.

Em termos eminentemente artísticos o filme de William Cameron Menzies é um espetáculo à parte por sua deslumbrante cenografia (lembrando, o filme é de 1936, em preto-e-branco), elaborados sets e eficientes trucagens de maquetes. Como exercício de especulação de possibilidades científicas, Daqui a Cem Anos traz muitos acertos em termos de imaginação de tecnologias que surgiriam no futuro. O filme apresenta pioneiras TVs planas, telas de LED, tablet, celular de pulso, projeção holográfica e uso regular de helicóptero como transporte civil (que era apenas um projeto em desenvolvimento naquela época).

Daqui a Cem Anos faz parte da coleção “Clássicos Sci-Fi – Volume 3”, lançamento da Versátil Home Vídeo.

Assista o trailer: Daqui a Cem Anos

(Texto originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em outubro de 2016)

Jorge Ghiorzi

sexta-feira, 9 de junho de 2017

“A Múmia”: mal renascido


O cinema definitivamente não deixa as múmias em paz. Figura recorrente na literatura fantástica, as múmias ressurgem nos filmes com frequência, desde o clássico da Universal lançado em 1932, com Boris Karloff, que estabeleceu as características finais do ícone do terror que faz parte do nosso inconsciente coletivo. Uma leva recente com o tema aconteceu no início dos anos 2000, com dois filmes estrelados pela “Múmia”, o primeiro deles com Brendan Fraser e Rachel Weisz. Passados 17 anos, a mesma Universal decide que era hora de ressuscitar o monstro para apavorar as novas gerações. Porém, com a ajuda de um astro de primeira grandeza, Tom Cruise, para garantir as bilheterias. Mas, algo deu muito errado. O retorno foi desastroso. Como uma maldição, a produção sofreu as consequências malignas de invocar impunemente os mortos.

A Múmia (The Mummy), primeira produção da Dark Universe, nova divisão da Universal responsável pelos “filmes de monstro” que vem por aí, foi dirigido pelo realizador novato Alex Kurtzman (este foi seu segundo longa), mais conhecido pelos roteiros de sucessos como Missão Impossível 3; Star Trek; Transformers e Cowboys & Aliens. Consta que ele está finalizando o roteiro do remake de A Noiva de Frankenstein, a ser lançado em 2019, com Javier Bardem no elenco.


Nesta releitura da Múmia, uma espécie de reboot, a produção atualizou o mito e se adaptou aos gostos e expectativas das plateias mais jovens, acostumadas aos filmes de ação e super-heróis. O filme é justamente isto: uma tentativa de reciclar velhos ícones e apresentá-los como “novidade”.

A história de A Múmia inicia séculos atrás, no Antigo Egito, quando a princesa Ahmanet (Sofia Boutella) invoca o deus da morte, Set, para tomar o trono de seu pai. Descoberta a trama, ela é mumificada, amaldiçoada e sepultada numa tumba na Mesopotâmia (atual Iraque), a milhas de distância de sua terra natal, o Egito. Nos dias atuais, no século XXI, a tumba é descoberta por acaso por uma dupla de soldados das Forças Especiais do exército norte-americano, Nick Morton (Tom Cruise) e Chris Vail (Jake Johnson), especializados em explorar tesouros e relíquias históricas. Na exploração da tumba eles contam com a ajuda da pesquisadora Jenny Halsey (Annabelle Wallis). Ao resgatarem o ataúde que contém a múmia de Ahmanet, o mal desperta e a maldição milenar se cumpre.


A Múmia parece sofrer de um defeito de origem, sem conserto. A ambição do projeto foi fatal para sua plena realização. O longa parece a todo o momento querer abraçar o mundo, incluindo o conceito da convergência, que mistura influências, referências e reciclagem de ideias alheias. Originalidade passou a léguas de distância. Bebendo na mesma fonte de Indiana Jones, com alguns toques das aventuras do professor Robert Langdon (da criação de Dan Brown, “O Código Da Vinci”), a aventura resulta confusa e dispersiva. Dá-se inclusive ao luxo de desperdiçar a presença de um astro do porte de Russell Crowe, completamente deslocado no papel de um cientista / pesquisador chamado Dr. Henry Jekyll, que não disse a que veio. Bem, ninguém se chama Jekyll impunemente, sem sugerir a existência de um certo Sr. Hyde, referência direta da obra clássica de Robert Louis Stevenson.

Tom Cruise sendo mais Tom Cruise do que nunca, e correndo em cena como sempre, não agrega elementos ao personagem que possam tirá-lo de sua condição rasa de um mero tipo unidimensional, sem vida, sem nuances, sem fragilidades. Mesmo um Indiana Jones, para ficarmos numa referência já citada, se apresenta como um personagem crível, dotado de cinismo e zonas de sombra em sua personalidade. Portanto, a desculpa de que se trata meramente de uma aventura não justifica o desleixo da abordagem. Em A Múmia temos mais do mesmo, beirando ao esgotamento de uma fórmula que já não tem mais nada a oferecer ao espectador. Por outro lado, a companheira de Tom Cruise nas aventuras, Annabelle Wallis (do terror Annabelle e do recente Rei Arthur), traz algum sopro de renovação que vislumbra uma perspectiva de futuro. Annabelle é uma atriz promissora, à beira do estrelato.


Indeciso em sua proposta, A Múmia abandona o clima de terror, que insinuava em seus movimentos iniciais, para se atirar no terreno fácil da aventura inconsequente. Claramente a produção foi desenvolvida para sustentar mais uma franquia para Tom Cruise, já “dono” das séries Missão Impossível e Jack Reacher (e Top Gun que vem aí), mas os resultados alcançados parecem ter sepultado o projeto para a eternidade sob toneladas de areia do deserto. Mas, como todas as lendas ensinam, as múmias sempre ressuscitam para assombrar.

Assista o trailer: A Múmia

Jorge Ghiorzi

terça-feira, 6 de junho de 2017

“Mulher-Maravilha”: heroína para os novos tempos


O primeiro filme solo da heroína dos quadrinhos nasceu sob o signo da desconfiança. E razões não faltavam. A começar por ser uma personagem da DC, que, convenhamos, não tem tido muita sorte (ou competência) em suas adaptações cinematográficas. Outro fator de suspeição era o histórico desfavorável das personagens femininas protagonistas no universo dos super-heróis, quando chegam às telas. Quem não lembra dos fracassos monumentais da Mulher-Gato e Elektra? Ou seja, havia muitos riscos envolvidos na primeira aventura cinematográfica da Mulher-Maravilha. No entanto, apesar de todas as adversidades potenciais que rondavam a produção, o filme se mostra um êxito absoluto sob qualquer ângulo de análise, seja como entretenimento, seja pelas expressivas bilheterias, seja pelas possibilidades de estabelecer, de maneira afirmativa, a primeira franquia de real futuro da DC no cinema.

A exemplo do Capitão América (da Marvel), a Mulher-Maravilha também é uma personagem fora de seu tempo. No caso da heroína, fora de seu espaço também, pois abandona seu idílico mundo feminino na oculta ilha de Themyscira para ingressar no mundo dos Homens (no sentido mais amplo da palavra) em plena Guerra Mundial. Este é o primeiro conflito apresentado em Mulher-Maravilha (Wonder Woman), o filme. A princesa amazona Diana Prince (Gal Gadot) é uma personagem idealista, deslocada numa terra que desconhece, regida por regras e ambições individualistas que custa a entender. A pureza de sentimentos e convicções morais que cultua em sua civilização entra em choque com as fraquezas éticas e morais de um mundo movido pelo ódio, ganância e luta pelo poder. A Mulher-Maravilha é uma heroína do passado que resgata valores básicos de justiça, paz e harmonia, muito bem-vindos nos dias que correm.


A ambientação no período da Grande Guerra oferece um cenário perfeito para estabelecer o choque de realidade da Mulher-Maravilha, que percorre sua jornada a partir de um idealismo quase inocente para uma personagem que transita e sobrevive se adaptando ao meio ambiente hostil. Para tanto enfrenta vilões bem humanos (incluindo uma vilã) e também adversários mitológicos dotados de super poderes. Por tratar-se de um filme de origem, Mulher-Maravilha oferece o esperado pacote completo, onde o arco da evolução da personagem é um tanto acelerado no primeiro ato para dar conta de entregar uma super-heroína “pronta” para os atos dois e três da aventura. Mas nada que comprometa significativamente o interesse. Pelo contrário, aliás. A história é envolvente e cativa em poucos minutos. Afinal, estamos diante de uma HQ transformada em filme, com todas as liberdades e licenças artísticas que uma adaptação se permite fazer.


A direção de Patty Jenkins, a mesma de Monster – Desejo Assassino (com Charlize Theron), é competente nas sequências de ação e sensível nos momentos mais intimistas, recorrendo a pequenas piadinhas sexistas disparadas contra o universo dos homens. Equilibradas e provocativas na medida, sem exagero, diga-se, e totalmente afirmativas no terreno minado dos super-heróis, dominado pelas figuras masculinas. Neste ponto, Mulher-Maravilha ganha pontos preciosos e conquista merecido espaço para futuros projetos no gênero.


Parte significativa dos acertos de Mulher-Maravilha deve ser creditada à atriz Gal Gadot, que já havia estreado na pele da heroína no irregular Batman vs Superman: A Origem da Justica em 2016. Ex-Miss Israel de 2004, e ex-integrante do exército israelense, Gal Gadot encarna com paixão, garra e convicção a princesa amazona. Sua formação militar fica evidente nas sequências de ação, quando sua figura cresce em cena ganhando vigor e força nas coreografias. No entanto, fica um tanto a dever nos momentos onde a personagem exige um pouco mais de talento dramático. Ainda assim, o saldo final é positivo. Gal Gadot se apropriou definitivamente da personagem, e o que vem daqui para a frente deverá fazer a alegria dos fãs.

Assista o trailer: Mulher-Maravilha

Jorge Ghiorzi

quinta-feira, 1 de junho de 2017

"A Tortura do Medo": um homem, uma câmera


O cineasta britânico Michael Powell sempre foi reconhecido como um eficiente narrador, cujo elaborado estilo visual se ajustava à perfeição ao tom levemente (ou totalmente) fantasioso de seus melhores filmes. Powell era dotado de uma prodigiosa visão estética vocacionada ao espetáculo visual. Exemplo clássico de seu estilo foi Os Sapatinhos Vermelhos (1948) que capturou a imaginação das plateias com seu clima de sonho e magia. Um dos mais notórios entusiastas deste filme é Martin Scorsese, fã confesso do realizador.

Com uma extensa filmografia de prestígio, nada faria supor que Michael Powell provocasse uma inesperada virada na fase final da carreira. Em 1960 lança o surpreendente A Tortura do Medo (Peeping Tom). Ousado e insanamente incompreendido em seu tempo, o filme foi destruído pela crítica e decretou o assassinato da carreira de Michael Powell, que a partir de então mergulhou em declínio, rumando definitivamente para um precoce ostracismo.


Considerando a perspectiva histórica, parece compreensível a polêmica e o choque que o filme provocou. Claramente a obra de Powell estava à frente de seu tempo nas questões estéticas, narrativas e temáticas. Era um filme insólito que chocou as plateias britânicas bem comportadas da época. Curiosamente, no mesmo período foi lançado outro filme de impacto, com resultado totalmente diverso, embora também inesperado levando-se em conta a carreira do realizador. A Tortura do Medo foi lançado em abril de 1960, e apenas dois meses após, em junho, Psicose de Alfred Hitchcock chegava às telas. Ambos os filmes ousaram no roteiro, avançaram na abordagem da violência, apresentaram protagonistas assassinos (que provocam reações de empatia / rejeição na audiência) e envolviam o espectador num universo de morbidez psicológica. No entanto, os filmes percorreram caminhos distintos. Enquanto um se tornava clássico instantâneo, o outro era esquecido, colocado no limbo da história. Então, surge o catador de pérolas, Martin Scorsese, que vinte anos depois resgata o filme de Michael Powell, exibe em festivais e oportuniza a redescoberta de uma obra-prima, elevada hoje à categoria de “cult movie”.

 “Peeping Tom” é uma expressão inglesa que significa algo como “espiar”, “observar secretamente”, cuja origem remonta a uma lenda anglo-saxã relacionada à Lady Godiva, que cavalgou nua pelas ruas da sua cidade. Ao fazer este passeio (fruto de uma promessa) ela teria instruído ao povo para se fechar em suas casas, para não vê-la sem roupas. Mas, um tal de Tom não resistiu e acabou espiando pela janela. Como punição divina ele teria ficado imediatamente cego.


“Tudo que eu filmo, eu sempre perco”

O personagem protagonista de A Tortura do Medo é Mark Lewis (Karlheinz Böhm, bastante conhecido na época por ter interpretado o imperador Francisco José nos três filmes da série Sissi), um cinegrafista que trabalha como auxiliar do diretor de fotografia de um estúdio de cinema. Nas horas vagas trabalha como fotógrafo de “nus eróticos” em um estúdio clandestino. Seu grande projeto de vida é realizar um documentário, cujo conteúdo desconhecido é eventualmente sugerido ao espectador ao longo da história. No decorrer das filmagens amadoras a verdadeira compulsão deste personagem sexualmente reprimido se revela: assassinar mulheres para captar com a câmera o preciso momento de horror que precede a morte (um precursor dos míticos “snuff movies”).

A origem deste comportamento estaria no passado do protagonista Mark Lewis. Quando criança, seu pai, um psicólogo, o submetia a experiências para explorar os efeitos do medo no sistema nervoso. Estas experiências eram filmadas para posterior análise psicológica das reações da mente de uma criança em formação. Posteriormente, Mark Lewis, já adulto, com uma câmera na mão e uma obsessão na cabeça, segue seu comportamento compulsivo de registrar a verdadeira emoção humana em filme.

Com um roteiro original, de forte caráter freudiano, A Tortura do Medo discute o tema do voyeurismo, que expressa subliminarmente uma carga de perversão. Tímido e recluso, Mark Lewis é frio em suas interações sociais. Manifesta-se apenas pelo olhar da câmera, a cujas imagens captadas atribui significados distorcidos, desconectados da realidade.


No “grand finale” finalmente o cineasta frustrado consegue finalizar sua grande obra documental, uma espécie de acerto de contas definitivo com a figura do pai repressor. Uma libertação registrada em película.

Constantemente tenso e mórbido, o filme de Michael Powell trabalha no registro psicológico de uma mente pervertida. A obsessão do protagonista em registrar a “verdadeira” emoção humana, analogamente pode ser entendida, com todas as ressalvas, ao ato de fazer cinema. Neste sentido, A Tortura do Medo é também um filme de e sobre o cinema, a exemplo de Blow Up, de Michelangelo Antonioni; Oito e Meio, de Federico Fellini; O Desprezo, de Jean-Luc Godard; Um Tiro na Noite, de Brian de Palma e Janela Indiscreta, de Alfred Hitchcock.

Uma aproximação entre Michael Powell e Alfred Hitchcock se dá também pela presença da atriz Anna Massey, que 12 anos depois atuaria na última obra-prima do mestre do suspense, Frenesi, com o qual, aliás, A Tortura do Medo compartilha algumas semelhanças de estilo narrativo.

(Texto originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em outubro de 2016)

Jorge Ghiorzi

quinta-feira, 25 de maio de 2017

"Westworld": perigos da tecnologia


O lançamento da série de TV Westworld, pela HBO, propicia a revisão do pequeno clássico cult dos anos 70, matriz da nova produção que chega às telinhas com status de superprodução, muita ambição e a assinatura da grife J. J. Abrams – Nolan.

Fruto da prodigiosa imaginação do prolífico escritor Michael Crichton (“Enigma de Andrômeda”, “O Homem Terminal”, “Sol Nascente”, “Assédio Sexual” e “Jurassic Park”), Westworld, o filme, foi lançado num período onde a ficção científica vivia um momento de alta no cinema. Ao especular o impacto da tecnologia na humanidade, a ficção científica na literatura discute a condição do homem em seu próprio tempo e sua perspectiva de futuro. O cinema, ao compartilhar esta visão - por vezes pessimista - de mundo, encontra o ponto de virada do gênero, rumo à maturidade, em 1968, quando Stanley Kubrick lança 2001 – Uma Odisseia no Espaço. A partir de então, o gênero poderia ir avante e além de um mero entretenimento descartável. Logo em seguida, em 1971, George Lucas vem com sua fábula distópica THX 1138.


Neste contexto Westworld, que no Brasil recebeu o inspirado subtítulo Onde Ninguém tem Alma, chega aos cinemas em 1973 com direção do próprio Michael Crichton, falecido em 2008. Cineasta bissexto, Crichton eventualmente se aventurou no cinema como diretor de filmes como O Primeiro Assalto de Trem, Coma e Runaway – Fora de Controle.

Em algum tempo de um futuro não muito distante, existe um paraíso na Terra. Com o nome de Delos, este paraíso é um parque de diversões para adultos, sonho de consumo de uma elite endinheirada. Sim, a diversão não é para todos os bolsos: 1.000 dólares por dia. O parque recria três universos distintos: o Mundo Romano, o Mundo Medieval e o Mundo do Velho Oeste. Todos habitados por androides de altíssima tecnologia, simulacros perfeitos do ser humano. O barato da brincadeira é vivenciar uma fantasia virtual propiciada por um cenário cuidadosamente preparado para aparentar uma ilusão de realidade. No Mundo Romano o “visitante” pode participar de banquetes orgiásticos regados com muito vinho e erotismo, no Mundo Medieval pode viver em Castelos usufruindo as delícias da Corte, ou, no Mundo do Velho Oeste pode virar caubói, cavalgar pelos vilarejos e, com alguma sorte, duelar com pistoleiros mal encarados, sem o risco de perder a vida. Essa é a grande sacada da diversão: os androides não podem, sob hipótese alguma, infligir mal ou qualquer dano físico aos visitantes do parque. Mas, a tecnologia, como uma boa ficção científica nos alerta, mesmo quando domesticada e massificada, não é infalível. Problemas ocorrem e as consequências podem ser devastadoras.


O encantamento com as possibilidades da ciência é a fonte primeira que inspira a ficção científica em narrativas literárias ou cinematográficas. As máquinas, que podem ser parte da solução dos problemas, invariavelmente são também apontadas como causadoras de novos problemas, desde a Revolução Industrial diga-se. Nasce aí o conflito central que baliza a história narrada em Westworld.

O filme de Crichton dá mostras de não ter resistido bem à passagem do tempo com sua produção um tanto modesta e precária (mesmo para a época). A narrativa é excessivamente lenta para os tempos atuais. No entanto, curiosamente, é justamente naquela estética típica dos anos 70 que reside parte de seu charme cult. A premissa, por demais interessante, seria revisitada pelo próprio Crichton anos depois ao criar Jurassic Park: um parque de diversões criado para o deleite (o paraíso), com tecnologia de ponta e o “demônio” da pane nas criações do homem quando brinca de deus (o inferno).


Imagem símbolo de Westworld, o pistoleiro assassino vivido por um improvável Yul Brynner (O Rei e Eu) certamente está na galeria dos mais icônicos androides / robôs da história do cinema. Sua vilania implacável e obstinada, guiada por assustadores olhos metálicos, domina a história, estando ou não em cena, transformando os protagonistas (interpretados por Richard Benjamin e James Brolin, pai de Josh Brolin) em meros coadjuvantes.

Três anos depois, em 1976, Westworld ganhou uma continuação malsucedida, chamada Ano 2003 – Operação Terra (Futureworld no original), estrelada por Peter Fonda.

(Texto originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em outubro de 2016)

Jorge Ghiorzi

sábado, 13 de maio de 2017

"Rififi": a arte do crime


Integrante da Lista Negra de Hollywood, o cineasta Jules Dassin foi vítima do Comitê de Atividades Antiamericanas no início dos anos 50. Presidido pelo senador Joseph McCarthy, o comitê perseguia, investigava, julgava e condenava comunistas ou simpatizantes de ideias esquerdistas infiltrados na comunidade artística dos Estados Unidos, particularmente no cinema. Delatados por colegas de profissão, uma geração de realizadores, produtores, atores e roteiristas ficou marcada por esta perseguição. Muitos perderam empregos, foram impedidos de trabalhar e sustentar suas famílias. Outros foram forçados ao exílio e buscaram refúgio na Europa. Esse foi o caminho de Jules Dassin, que se radicou na França em busca de novas oportunidades de trabalho. Neste período o diretor foi procurado por um produtor local que propôs a adaptação de um pequeno livro policial francês. A produção seria de baixo orçamento, sem grandes estrelas, mas, vá lá, era uma oportunidade de trabalho, e Dassin aceitou, apesar de não ter gostado do livro.

Este foi o contexto que antecedeu a realização de Rififi (Du rififi chez les hommes), filmado em 1954 e lançado no ano seguinte a partir de sua participação no Festival de Cannes, onde recebeu o prêmio de melhor direção. Passados 60 anos de sua estreia, Rififi ostenta o título de uma das melhores produções do gênero policial de todos os tempos e um marco dos filmes noir, ainda que realizado na Europa. François Truffaut declarou, à época: “Foi o pior romance policial que eu li, mas Jules Dassin realizou o melhor filme policial que eu assisti”. E o crítico André Bazin completou afirmando que Rififi “quebra as convenções dos filmes policiais e consegue tocar nossos corações”.


Ao longo dos anos Rififi foi se notabilizando, não sem razão, por apresentar a mais espetacular sequência de roubo já vista no cinema. No entanto, curiosamente, no livro a sequência do assalto à joalheria era apenas um detalhe em meio à história. Jules Dassin, numa decisão acertada, optou transformar o roubo na espinha dorsal da sua narrativa. O resultado foi esta pequena joia cinematográfica montada em três atos.

Recém saído da prisão, o renomado mas decadente criminoso Tony (Jean Servais) recebe do velho parceiro Jo (o ”sueco”), a proposta para assaltar uma joalheria. Inicialmente recusa, mas ao saber que sua ex-amante agora está vivendo com um gangster, se desilude quanto ao seu futuro de regeneração e acaba cedendo ao convite. Juntamente com outros dois comparsas italianos Mário e César (interpretado pelo próprio Jules Dassin com o pseudônimo de Perlo Vita) iniciam os preparativos para o ousado plano de invadir a joalheria e arrombar o cofre que guarda as joias mais valiosas. O planejamento e a minuciosa execução correm perfeitamente bem, porém a falibilidade e ambição de um dos integrantes, pós-roubo, colocam tudo a perder e a tragédia anunciada se confirma.

Realizado no período de gestação da Nouvelle Vague francesa, que despontaria para o mundo em 1959 com a exibição de Os Incompreendidos de Fraçois Truffautt no Festival de Cannes, Rififi, ainda que obedeça aos cânones do chamado cinema clássico, representou um suspiro de renovação ao gênero policial e ao cinema como um todo. A montagem “invisível”, a unidade temporal e o realismo aparente estão presentes, e predominam a narrativa enxuta. O aspecto que chamou a atenção foi a riqueza dos personagens e suas nuances psicológicas, algo pouco usual no período, que privilegiava as histórias em detrimento dos participantes do grande jogo cênico que uma representação cinematográfica impõe.


Além da excepcional fotografia em preto e branco, que explora brilhantemente cenários e enquadramentos de uma Paris constantemente cinza, e de uma montagem eficiente, a serviço de uma narrativa sólida e consistente, o grande destaque de Rififi é, evidentemente, a sequência do roubo das joias. Como diria aquela propaganda, “sempre imitada, nunca igualada”, a sequência se transformou em paradigma para o gênero que inspira cineastas desde então. O realizador Jules Dassin foi ousado ao conceber aquela encenação. Com duração de 25 minutos (quase 1/3 da duração do filme) a sequência não utiliza música, não possui diálogos e é praticamente silenciosa, a não ser por pequenos ruídos ocasionais que só corroboram o realismo e acentuam o pesado clima de suspense. Cinema em estado puro.

Quando lançado, Rififi foi por algum tempo proibido em alguns países sob a alegação de ser demasiadamente “didático” para inspirar mentes criminosas no mundo real. E, de fato, alguns assaltos ocorridos nos anos seguintes contaram com algumas das técnicas apresentadas no filme. Nos Estados Unidos Rififi fez uma trajetória um tanto acidentada pela interferência do Comitê, mas, mesmo assim, foi aclamado pela crítica norte-americana que o cobriu de elogios. No início dos anos 2000 foi relançado nos EUA com uma nova cópia de 35mm, que contou com a colaboração do próprio Dassin (falecido em 2008). O crítico Roger Ebert incluiu a produção em sua lista de Melhores Filmes e afirmou que as influências de Rififi podem ser encontradas desde O Grande Golpe (Stanley Kubrick, 1956) até Cães de Aluguel (Quentin Tarantino, 1992).

(Originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em outubro de 2016)

Jorge Ghiorzi

quarta-feira, 10 de maio de 2017

“Corra!”: fábula de terror


Um homem negro caminha à noite pelas calçadas de um típico bairro de classe média. Quando se dá por conta, está sendo seguido por um carro suspeito. A respiração fica ofegante, pois ele sabe que o seu destino já parece estar traçado.

O surpreendente drama de suspense Corra! (Get Out, 2017) abre com este prólogo que já oferece a linha temática que conduzirá a história que acompanharemos na sequência: o preconceito racial. Porém, a abordagem que o filme dará ao tema foge do óbvio e vai muito além de uma mera manifestação de preconceito, ao combinar crítica social e supremacia étnica e discriminação racial com doses pesadas de terror e angústia. Mistura inusitada, mas altamente letal para abalar os nervos da plateia. Sucesso de público e crítica nos Estados Unidos, Corra! está chegando aos cinemas brasileiros. Dirigido e escrito pelo comediante Jordan Peele, o filme pode ser descrito como uma fábula de terror que explora medos e fantasias de uma sociedade que hipervaloriza as aparências e cultua o individualismo. Alguém aí lembrou de Black Mirror?.

O bem sucedido fotógrafo Chris (o ótimo Daniel Kaluuya) namora a bela Rose (Allison Williams, da série Girls). Tudo corre bem com o relacionamento do casal, mas a luz vermelha de alerta acende para ele quando ela decide finalmente levá-lo para ser apresentado a seus pais, Dean (Bradley Whitford) e Missy (Catherine Keener). A preocupação de Chris se justifica, afinal, eles formam um casal inter-racial (ele, negro, ela, branca). A inicialmente calorosa recepção dos pais da namorada logo começa a dar sinais de que algo muito perturbador está se passando e algum segredo se esconde naquela casa.


Corra! desenvolve uma curiosa versão do que poderíamos chamar de “eugenia reversa”. Lembrando o conceito básico, a Eugenia, segundo a ideologia nazista, preconizava a “supremacia racial” dos arianos em relação aos judeus, negros e outras raças. Pois no filme de Jordan Peele os personagens caucasianos (brancos), antes de se limitarem apenas a exercer seu preconceito racial, na verdade estão mais interessados justamente nas reconhecidas vantagens genéticas e biológicas atribuídas aos negros, tais como força, saúde e longevidade.

Em certa passagem o patriarca da família, Dean, lembra e exalta as qualidades físicas e atléticas de Jesse Owens, o atleta negro norte-americano que venceu todos seus oponentes brancos, especialmente os alemães, para desgosto de Hitler, nos Jogos de Olímpicos de Berlim em 1946. A tese da supremacia atlética dos arianos caiu por terra. A ideia que Dean pretendia passar é de que reconhece o valor da conquista de Jesse Owens, apesar dele ser negro. E completa afirmando com ele próprio possui amigos negros e até votaria novamente em Barack Obama, se fosse possível. Atitude clássica que mais revela do que dissimula um mal disfarçado preconceito.


O tema do racismo permeia o longa do primeiro ao último minuto, ora de forma explícita, ora de forma oblíqua, ora de forma velada. Os diferentes tons desta questão fazem o jogo no qual se sustenta o suspense da narrativa. Tudo poderia ser apenas um grande equívoco. Ou na verdade o apavorado Chris estaria apenas superestimando seu próprio racismo defensivo. Ou sim, estaríamos diante de uma história assustadora e impensável. A plateia alterna constantemente seus sentimentos, se agarrando em pequenos sinais e avisos que vão surgindo enquanto as situações evoluem. A angústia do personagem é também a nossa angústia. Este é o grande trunfo de Corra!.

Os problemas de um casal inter-racial já foram objeto de atenção em inúmeros filmes, de diversos gêneros. Um dos mais estimados e lembrados é Adivinhe Quem Vem Para Jantar, estrelado por Sidney Poitier, Spencer Tracy e Katharine Hepburn. Lançada há exatos 50 anos, esta produção guarda semelhanças com a premissa de Corra! ao também contar a história de uma jovem (branca) que vai visitar os pais para apresentar seu namorado (negro) com quem pretende se casar. O tratamento é de comédia dramática, mas o tema revelador da discriminação racial está igualmente presente.

O roteiro de Corra! é original e bem resolvido em termos dramáticos, apesar de ser um tanto rápido e inconclusivo no desfecho em relação a certas questões que ficam em aberto. A experiência exasperante do protagonista é envolvente e perturbadora na medida adequada, sem excessos. O tema de fundo, a questão racial, recebe uma abordagem criativa, a milhas de distância de um discurso meramente panfletário. Corra! é uma produção admirável, seja pela ótica da crítica social, seja como exercício de terror.

Assista o trailer: Corra!

Jorge Ghiorzi