terça-feira, 12 de setembro de 2017

“Amityville – O Despertar”: terror barato


Acredite se quiser. A saga da casa assombrada “Amityville” chega ao seu 10º (!) capítulo. Iniciada em 1979, com Horror em Amityville, a série de filmes é desigual e na verdade nunca despertou grande interesse. Isto explica porque apenas cinco produções foram exibidas nos cinemas, as demais ou foram direcionadas para a TV ou distribuídas diretamente para o mercado de home vídeo. O grande apelo do filme original foi o fato de ter sido baseado na história verídica do massacre de uma família, supostamente motivado por forças malignas que habitariam uma casa em Amityville (EUA).

Passados quase 40 anos, os espíritos demoníacos seguem assombrando o casarão. E o cinema também. Afinal, sempre há novos incautos dispostos a levar velhos sustos. Só isto explica a existência deste Amityville – O Despertar (Amityville: The Awakening), uma produção absolutamente desnecessária que nada acrescenta à mitologia da franquia, a não ser alguns dólares a mais nos bolsos dos produtores.


O endereço é o mesmo: Ocean Avenue, 112 – Long Island. Apesar de um passado assustador, a casa responsável por uma série de mortes violentas continua de pé, a espera de novos moradores. E eles chegam: uma família formada por uma mãe, Joan (Jennifer Jason Leigh), e seus três filhos, a adolescente Belle (Bella Thorne), a pequena Juliet (McKenna Grace), e o também adolescente James (Cameron Monaghan), que vive em coma vegetativo após um acidente, preso a uma cama numa pequena UTI doméstica montada no quarto.

Logo a casa começa a manifestar seus poderes, que afetam inicialmente James que gradualmente revela pequenos sinais de que poderia estar despertando do coma. Paralelamente, Belle descobre o verdadeiro passado da casa (que a família ignorava!), e liga os pontos da situação: os poderes malignos do local estão se apossando de seu irmão.

Amityville – O Despertar, a exemplo de muitas outras franquias e séries de longa duração, faz uso daquele truquezinho esperto que visa conquistar a atenção e a empatia das novas plateias: os protagonistas são sempre adolescentes. Os adultos são meros coadjuvantes que apenas cumprem uma função dramática secundária. Nem sempre funciona, é verdade. E aqui estamos diante de um caso destes. Os personagens são por demais rasos e o elenco pouco ajuda a superar este problema.


Isto para não falarmos de um roteiro que não se decide por qual caminho seguir. Por vezes abre algumas possibilidades interessantes de abordagem, mas desperdiça todas elas. A mais flagrante é o equívoco em não seguir no caminho de um exercício de meta-linguagem, semelhante ao adotado em Pânico, onde os personagens eram inseridos num universo fictício autorreferente, com plena consciência de estarem em um filme de terror. Em dado momento os protagonistas adolescentes de Amityville – O Despertar se referem ao passado da casa como um fato real que gerou um filme, o citado Horror em Amityville de 1979, que inclusive assistem em DVD numa sessão coletiva em casa. Seria sem dúvida um caminho muito estimulante a seguir, mas o filme dirigido por Franck Khalfoun (de P2 – Sem Saída e Maníaco) não embarca nesta viagem. Opta em seguir a trilha preguiçosa de tentar pregar sustos gratuitos e forçados na plateia a cada dez minutos.

Desconexo em sua lógica e desleixado em suas soluções fáceis (absolutamente inconvincentes) O Despertar não consegue sequer a façanha mínima de se apresentar como um filme de terror digno de nota. É um equívoco que decepciona do primeiro ao último minuto. Que os espíritos do mal que habitam aquela casa mal assombrada sejam deixados em paz, de uma vez por todas. Fica a dica.

Assista o trailer: Amityville – O Despertar

Jorge Ghiorzi

Exorcismo Negro (1974)



terça-feira, 5 de setembro de 2017

“Os Amores de Maria”: desejo e paixão


Em 1946 o cineasta John Huston dirigiu um documentário de encomenda para o Exército norte-americano. A proposta era retratar a recuperação dos soldados que voltaram da Segunda Guerra Mundial com problemas psíquicos, internados num hospital militar. O filme, com pouco menos de uma hora de duração, chamado Let there be light (disponível no You Tube), ficou proibido para exibições públicas até 1980. A alegada razão para a interdição eram as fortes emoções provocadas pelo impacto das imagens e os tocantes depoimentos dos soldados abalados pela guerra.

Cerca de quatro anos após a liberação, cenas deste documentário foram utilizadas na sequência de abertura de Os Amores de Maria (Maria’s lovers, 1984), dirigido nos EUA pelo russo Andrei Konchalovsky. Faz todo sentido. Os dois filmes tratam do mesmo tema de fundo: os efeitos da guerra na sanidade mental dos soldados. Um sob a forma de documentário, outro com um tratamento de ficção. As imagens em preto e branco mostram sessões de terapia com os soldados relatando seus problemas para psicólogos militares. Um a um os depoimentos vão se sucedendo, até que acontece uma passagem de cenas reais do documentário para cenas encenadas (ainda descoloridas) por John Savage, interpretando um soldado em recuperação. Assim somos apresentados ao personagem Ivan Bibic, protagonista da história de Os Amores de Maria.


Após sobreviver um período detido por japoneses num campo de prisioneiros, na Segunda Guerra Mundial, Ivan Bibic retorna para a casa do pai (Robert Mitchum), numa comunidade de imigrantes iugoslavos nos subúrbios de Pittsburgh, na Pensilvânia (EUA). Durante o tempo em que ficou preso o soldado jurou amor à sua paixão de infância, a bela e virgem Maria Bosic (Nastassja Kinski). Na volta, eles reatam a relação interrompida e acabam casando, contra a vontade do pai, que julga Maria uma mulher inadequada para o filho. Além do que, ele também demonstra uma paixão recolhida pela jovem, que é filha de uma antiga amante do passado. Logo após o casamento, a fragilidade de Ivan se manifesta na impotência psicológica. Bloqueado, ele não consegue fazer amor com sua esposa, apenas com outras mulheres. Maria permanece virgem, e o casamento se desmancha no ar. Até que surge na cidade um músico/cantor andarilho, Clarence Butts (Keith Carradine), que seduz Maria e precipita o desfecho da história.

Por caminhos um tanto tortuosos, se estabelece, em algum nível, o clássico triângulo amoroso, mas com nuances mais profundas e simbólicas. Maria inspira paixões em todos os homens que a conhecem, o que nos permite uma livre interpretação para uma analogia religiosa. A virgem Maria é objeto de paixão (idolatria?) do Pai (pai de Ivan), do Filho (o próprio Ivan) e do Espírito Santo (Clarence Butts). A via-crúcis de Ivan, em busca da redenção, é a sustentação da narrativa em Os Amores de Maria.


O retorno de Ivan para casa mostra um descolamento da realidade em sua mente, uma sensação de não-pertencimento daquela comunidade que fez parte da sua história de vida. No período de prisão a idolatria à amada o manteve vivo. Orientou seu retorno. Mas não foi suficiente para a felicidade. O amor pensado não suportou a realidade do amor vivido. A fantasia da paixão não encontrou ressonância nos fatos. O romantismo perdeu para a vida real.

O desejo sexual movimenta os personagens protagonistas do filme de Andrei Konchalovsky. Com resultados distintos para cada um deles, evidentemente. Enquanto a virgem e ingenuamente sedutora Maria é uma explosão de hormônios em ebulição, o pobre Ivan sucumbe pela impossibilidade de dar vazão plena aos desejos carnais pela esposa. Há inclusive, uma sequência exemplar que explora belamente esta relação que, além de não se concretizar, os afasta definitivamente. No mesmo enquadramento vemos Ivan e Maria, separados por uma parede. Ivan está no quarto, sentado em um pequeno triciclo infantil em frente a um espelho. O retrato perfeito de uma personalidade imatura. Ivan é uma criança, frágil e indefesa. Maria, por sua vez, está no banheiro, vestindo uma sexy lingerie preta. A imagem de uma mulher sedutora, poderosa e altiva. Há mais do que uma parede separando os universos de Ivan e Maria.



O diretor Konchalovsky demonstra um tratamento carinhoso e compreensivo ao casal. Não há vilões. Apenas vítimas. Ele não julga, apenas testemunha uma relação tormentosa e conflitada, sem optar por nenhum dos lados. Isto equilibra a condução da história e proporciona ao expectador a possibilidade de compartilhar as ações e reações de Ivan e Maria sem comprometer o engajamento a nenhum dos lados. Aqui o realizador demonstra uma sensibilidade que, no entanto, foi totalmente desnecessária em seu filme seguinte, Expresso para o Inferno (1986), um drama de ação com Jon Voight vivendo um prisioneiro em fuga que se esconde num trem desgovernado sem controle. Sem falar em Tango e Cash – Os Vingadores (1989), com Sylvester Stallone e Kurt Russell.

Os Amores de Maria não se caracteriza exatamente como um filme romântico. É por demais melancólico, lento e pesado para quem busca este tipo de experiência. No entanto, possui elementos típicos do gênero: uma história de amor (ainda que não convencional); um casal de jovens atores com apelo midiático (particularmente Nastassja Kinski, no auge da beleza); música marcante (a bela “Maria’s eyes”, composta e interpretada por Keith Carradine) e fotografia exuberante (de Juan Ruiz Anchía).

Uma curiosidade. Quando lançado no Brasil, o filme recebeu inicialmente o título de Os Amantes de Maria. Anos depois, em seu lançamento em home video, o título foi alterado para Os Amores de Maria, que adotamos nesta resenha.

Assista o trailer: Os Amores de Maria

(Texto originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em dezembro de 2016)

Jorge Ghiorzi

Sessão de Cinema

domingo, 27 de agosto de 2017

“Maratona da Morte”: fuga do passado


Dirigido em 1976 pelo britânico John Schlesinger, Maratona da Morte (Marathon Man) é um filme policial de suspense muito representativo do cinema norte-americano da primeira metade dos anos 70. Naquele tempo os thrillers eram um gênero em alta na indústria de Hollywood, particularmente após o sucesso de crítica, de público e dos prêmios Oscar concedidos a Operação França (1971), de William Friedkin. A premiação máxima da indústria garantiu o selo de qualidade a um tipo de filme usualmente relegado ao segundo plano por serem considerados destituídos de qualidades cinematográficas dignas de interesse.

No rastro surgiu uma leva de filmes que mesclavam tramas policiais e conspirações políticas, como A Conversação (1974), de Francis Ford Coppola; A Trama (1974), de Alan J. Pakula; a sequência Operação França II (1975), de John Frankenheimer; Os Três Dias do Condor (1975), de Sydney Pollack, e Todos os Homens do Presidente (1976), também de Pakula. Vale reparar: todos dirigidos por cineastas do primeiro time. Uma comprovação de prestígio do gênero suspense / thriller naquele período.


Foi neste contexto que surgiu Maratona da Morte. Com roteiro escrito por William Goldman, a partir de seu próprio livro, o filme de John Schlesinger apresenta uma intrincada trama internacional de espionagem que mistura espiões com nazistas escondidos na América do Sul, a exemplo de Joseph Mengele, que viveu muitos anos incógnito no Brasil. O filme sugere que a custa de muitos diamantes os nazistas foragidos negociam sua liberdade com agentes de espionagem que atuam à margem do sistema.

O personagem principal é Thomas “Babe” Levy (Dustin Hoffman), jovem estudante universitário de História, e maratonista nas horas vagas, que desenvolve uma tese sobre o período do Macartismo (do senador Joseph McCarthy) para provar a inocência do pai, que cometeu suicídio após ser perseguido e expulso da universidade. Seu irmão é Henry “Doc” Levy (Roy Scheider), que se apresenta como negociante do mercado de petróleo, mas na verdade é agente secreto de uma agência ultrassecreta, paralela ao governo, chamada “A Divisão”. Suas ligações perigosas com o contrabando de diamantes, fruto de roubo dos nazistas da Segunda Guerra, acabam por levar Henry à morte. O culpado foi o carrasco nazista Dr. Christian Szell (Laurence Olivier), antigo dentista da SS que prestava serviço no campo de concentração de Auschwitz. Com receio de ser descoberto, Szell passa então a perseguir e torturar o inocente irmão do espião, “Babe”, para descobrir o que ele realmente sabe de toda a trama.


A sequência de abertura de Maratona da Morte já sugere o tema central da narrativa: a superação. As cenas iniciais mostram imagens do célebre maratonista etíope Abebe Bikila nos Jogos Olímpicos de Roma, em 1960, que venceu a prova da Maratona correndo de pés descalços. Um símbolo de heroísmo, determinação e superação. O personagem de Dustin Hoffman encarna um fracassado, um looser, em oposição à imagem de requintado, bon vivant e bem sucedido que o irmão “Doc” transmite. “Babe” é de outra turma, ligado aos livros e estudos, no entanto, constantemente assombrado pelas memórias do trágico destino do pai suicida. Neste sentido, a maratona na vida de “Babe” é uma metáfora para a necessidade permanente de superação de limites.

Involuntariamente envolvido num perigoso jogo de poderosos, “Babe” de uma hora para outra vê sua vida colocada do avesso. Num piscar de olhos passa a tratar com espiões, assassinos e carrascos torturadores.  Chega, portanto, o inevitável momento de amadurecimento, de libertação do passado. Ele, estudante de História, conflitado pela necessidade de revisão da verdadeira história do seu pai, se depara com a História em pessoa, na figura do nazista foragido. Oportunidade única de fazer justiça (e História) com as próprias mãos. E, ironia suprema, valendo-se da própria arma utilizada pelo pai no suicídio.


“É seguro?”

Suspense e tensão são magistralmente manipulados por John Schlesinger na condução do ritmo do longa. Nada é óbvio, nada é o que parece ser à primeira vista. A dissimulação é uma arma estratégica muito bem utilizada por todos os personagens, sejam quais forem suas posições no jogo. E o espectador é envolvido lentamente conforme a narrativa evolui. Quanto mais a trama vai se desenvolvendo, mais elementos são acrescentados, estabelecendo novas conexões e inusitados desfechos. Enfim, a matriz perfeita de uma trama bem elaborada.

Maratona da Morte é extremamente eficaz como thriller de suspense, e duas sequências em particular se destacam: o ataque no banheiro e a sessão de tortura. A primeira lida magistralmente com o medo e a tensão com o desconhecido ao colocar o personagem de Dustin Hoffman num relaxante banho de banheira enquanto assassinos invadem seu apartamento. A segunda sequência é a famosa e impactante tortura do dentista Szell manipulando os dentes de um apavorado Dustin Hoffman, sem anestesia. O sádico nazista pergunta repetidamente: “É seguro?”. Aqui, vale um registro para o desempenho magistral de Laurence Olivier que faz diversas inflexões da pergunta “É seguro?”, cada uma delas de forma distinta. Coisa de mestre.


Este filme marcou um reencontro de Dustin Hoffman com o diretor John Schlesinger, sete anos após Perdidos na Noite. A escolha do ator para interpretar um jovem universitário causou algumas críticas na época, pois parecia um claro equívoco em razão da idade do ator na ocasião. Como um ator de quase 40 anos poderia interpretar um jovem? Mas, o fato é que deu certo, assim como ocorreu quando Hoffman foi escalado para A Primeira Noite de um Homem. O restante do elenco principal de Maratona da Morte dá um clima internacional à produção. Além do inglês Laurence Olivier, também está a atriz suíça Marthe Keller (Domingo Negro), que na época não sabia falar inglês, interpretando apenas reproduzindo os fonemas. Recentemente a atriz foi vista em Amnésia, de Barbet Schroeder.

A fotografia de Conrad L. Hall e a música de Michael Small contribuem decisivamente para o ótimo resultado final de Maratona da Morte, sem falar, é claro, das belas locações nas ruas de Nova Iorque que trazem um tom quase documental de registro das ruas, pontes, parques e becos de um momento bem específico da metrópole.

Assista o trailer: Maratona da Morte

(Texto originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em novembro de 2016)

Jorge Ghiorzi

A Primeira Noite de um Homem (1967)