A passagem da
infância para a vida adulta é matéria prima recorrente para livros e filmes.
Embora a imensa maioria das vezes o tratamento do tema seja ficcional, é
verdade também que é quase inevitável a inserção de elementos biográficos pontuais
do autor. O escritor Stephen King, reconhecido mundialmente por suas histórias
que exploram o fantástico e o terror sob muitas formas, não resistiu aos apelos
da memória e também produziu textos com este olhar afetivo para o passado. Um
destes trabalhos foi o conto “O Outono da Inocência – O Corpo”, incluído no
livro “As Quatro Estações”.
Fugindo a todas as
expectativas, dado o perfil do autor, este pequeno conto que evoca um tempo de
nostalgia e inocência foi fonte de inspiração para uma adaptação
cinematográfica. Aliás, deste mesmo livro também saiu outro conto que foi parar
no cinema, Um Sonho de Liberdade. O
resultado foi o filme Conta Comigo (Stand by me, 1986)
dirigido por Rob Reiner. Mais identificado com as comédias, como o
falso-documentário Isto é Spinal Tap,
e mais Harry e Sally – Feitos Um Para o
Outro e Sintonia de Amor, Reiner ainda
realizaria, quatro anos depois, outro longa baseado em Stephen King, desta vez
no gênero terror: Louca Obsessão.
A ação de Conta Comigo inicia no tempo presente,
quando o escritor Gordie Lachance (Richard Dreyfuss) lê no jornal a notícia da
morte de um homem chamado Chris Chambers. Este fato deflagra nele a recordação
de um acontecimento marcante ocorrido quando ele tinha cerca de 12 anos de
idade. Viajamos com as memórias do protagonista e vamos parar no ano de 1959,
na pequena localidade de Castle Rock, no Oregon (EUA). Naquele tempo e espaço
conhecemos seus três melhores amigos: o próprio Chris Chambers (River Phoenix),
Teddy Duchamp (Corey Feldman) e Vern Tessio (Jerry O’Connell).
Jovens, sonhadores
e inocentes, eles enfrentam conflitos familiares e a opressão física e
psicológica dos meninos mais velhos, o famoso “bullying”. Todos, a sua maneira,
carregam traumas e dramas pessoais. Um é acusado de roubo (Chris), outro é
vítima de violência dos pais (Teddy), outro se sente rejeitado por ser gordo
(Vern) e outro vive a depressão pelo irmão morto (Gordie). Deslocados num mundo
adulto, os quatro amigos procuram saídas para superar seus fantasmas. A
oportunidade surge quando eles ficam sabendo que o corpo de um garoto
desaparecido foi encontrado (mas ainda não revelado para as autoridades). Como
forma de demonstrar coragem e fortalecer a autoafirmação, eles decidem se
aventurar numa expedição para encontrar o corpo.
Por tratar-se de
um original de Stephen King, sabemos de antemão que de alguma forma o terror
nos espreita. Sim, ele está lá. Mas apresenta-se de forma mais simbólica do que
usualmente conhecemos na sua obra. Um corpo desaparecido é por si só uma imagem
que provoca graus diversos de terror. Quem matou? O trem atropelou? Foi crime
ou acidente? Como está o corpo? Mas o caminho oferecido é outro. O cadáver, tão
obsessivamente procurado, é apenas um pretexto. Um gatilho que detona uma
revelação que se dá no nível psicológico dos quatro amigos. Ao se imporem a
missão de resgatar um defunto que paira como alma penada sobre uma pequena
comunidade, os garotos fortalecem suas fraquezas e mostram seu valor como
figuras sociais. A ideia era sair das sombras do mundo adulto, deixar de ser
invisível e reivindicar seu lugar ao sol.
Conta Comigo é um filme
memorialista que cultua a nostalgia. A percepção de um tempo passado é
permanente no desenrolar da história, o que nos leva a crer estarmos diante de
uma proposta de revisão do passado para explicar a realidade do presente. Uma
busca das origens do que somos, do que nos tornamos, que mundo criamos e as
consequências advindas de uma existência pregressa. Testemunhamos um rito de
passagem, uma experiência transformadora, formadora do caráter e virtudes que
carregamos, com direito a risos, dor e lágrimas. Reveladora é a reflexão de
Gordie ao retornar da expedição: “Estivemos
fora apenas dois dias, mas a cidade parece diferente, menor”.
Garotos de origens
sociais diversas, mas igualmente problemáticos em suas relações familiares,
foram também protagonistas de outro pequeno clássico (assim como Conta Comigo também se classifica),
realizado por Stanley Kramer em 1971, chamado Abençoai as Feras e as Crianças, que em sua época ficou muito
conhecido por uma bela canção do grupo “The Carpenters”.
(Texto originalmente
publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em maio de 2017)