sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

“Railander”: a difícil arte da sobrevivência


Nos anos 80 a aventura de fantasia e ação Highlander – O Guerreiro Imortal foi sucesso nas salas de cinema e nas videolocadoras. O filme contava a história de um guerreiro escocês do século XVI, descendente de um clã que tinha a estranha peculiaridade de nunca morrer, por mais fortes e poderosos fossem seus inimigos.

Pois parece que um representante deste clã está aqui, entre nós. Mais precisamente em uma pequena cidade do interior do Rio Grande do Sul. A identificação da origem se dá pelo nome, aqui batizado com a brasileiríssima grafia de Railander, e a afamada imortalidade, ainda que esteja presente simbolicamente, se manifesta de forma menos literal, ficando apenas no nível existencial, da sobrevivência mesmo.

E ficamos por aqui nestes paralelos. Esqueça a fantasia e a mitologia presentes na narrativa do Highlander oitentista. No curta-metragem Railander, escrito e dirigido por Alexandre Derlam, entra em cena nossa realidade cotidiana e todas suas nuances sociais contemporâneas. A matéria prima que constrói o suporte dramático do roteiro está fortemente ancorada em temas candentes que estão na ordem do dia: o bullying, o assédio moral e o abuso de autoridade. O forte apelo da atualidade destes temas, aliado a uma história bem contada, potencializa o interesse na narrativa do curta.


Railander (Alex Kanoff) trabalha como caixa de um pequeno supermercado de uma cidade do interior. Calado, tímido e retraído, ele não se enquadra nos padrões esperados pela sociedade. Railander convive com uma rotina tediosa envolvendo abuso de poder do proprietário do supermercado (Carlos Busato) e bullyings frequentes por estar acima do peso. Seu melhor amigo é um colega de trabalho (Ângelo Sérgio), que ao perceber o dilema existencial que consome Railander o estimula a reagir para virar o jogo daquela opressão permanente. A oportunidade da virada acontece de maneira fortuita, quando seu chefe se envolve em um conflito com o também autoritário juiz local. Ao perceber que até os poderosos também caem, Railander assume uma nova postura frente à vida. Reinventa-se e assume pela primeira vez os destinos da sua própria existência.

O curta-metragem de Alexandre Derlam trata essencialmente de relações pessoais e seus opressores mecanismos de controle social, manifestos pelo preconceito e abuso moral sobre minorias. A realidade vivida pelo personagem central é facilmente identificável e, infelizmente, muito comum em diversas esferas do nosso cotidiano. Assim como qualquer indivíduo introspectivo, o mundo interior de Railander é rico de significados e compreensão da realidade onde está inserido. A questão é o quanto ele se mostra incapaz de manifestar ações que possam efetivamente construir uma nova realidade.


Por ser tão corriqueira, a situação vivida por Railander desperta imediatamente no espectador o sentimento da empatia. Sofremos e torcemos por ele. Não é sem um senso de justiça, portanto, que acompanhamos o início da virada do personagem. Neste aspecto muito feliz é a direção de cena e a direção de arte no processo de desenvolvimento da personagem central. Alguns sinais de que a revolta de Railander está se processando são lançados ao longo do filme. Algo está acontecendo abaixo da superfície visível.  Em dado momento ele ensaia frente ao espelho uma explosão de ira contra sua condição. Mais adiante, aparece lendo um livro que aborda a construção da figura mítica do Herói. E por fim, nos momentos cruciais e decisivos da história, veste uma camiseta preta com a imagem do personagem “Justiceiro” dos quadrinhos (simbolizado por uma caveira), como a nos mostrar que houve uma transformação interior que se exterioriza de forma explícita. Um novo Railander estava nascendo, capaz de desafiar o antigo chefe e afrontar os garotos que diariamente faziam chacota com ele no trajeto até o trabalho.

Premiada em diversos festivais de cinema, a comédia dramática Railander é uma pequena fábula moderna que tem muito a nos dizer sobre o tempo em que vivemos.

Assista o trailer: Railander

Jorge Ghiorzi

quarta-feira, 21 de novembro de 2018

“Corrida Silenciosa”: jardins do espaço


Em tempos de discussões sobre escassez de recursos naturais que assegurem a sustentabilidade da vida humana no planeta Terra é oportuno o exercício de olhar um pouco para o passado. Mais precisamente para 45 anos atrás. Naquela época foi lançado um filme de ficção científica cuja revisão faz total sentido nos dias de hoje. Em 1972 o longa Corrida Silenciosa (Silent Running) chegou aos cinemas num período muito emblemático. Vivia-se um período de pré-Crise do Petróleo (que estouraria pra valer um ano depois), com acalorados debates sobre fontes alternativas de energia que fossem sustentáveis com o meio ambiente. Foi nesse tempo que a consciência ecológica começou a ser difundida e incorporada pelas grandes massas, além dos ambientes acadêmicos e científicos.

Corrida Silenciosa, primeiro trabalho de direção de Douglas Trumbull, é um produto típico daquele momento. Escrito (entre outros roteiristas) por Michael Cimino (creditado como Mike), o filme é uma fábula ecológica que abraça a causa com paixão, idealismo e poesia.

Num futuro incerto, mas absolutamente plausível, as florestas e a vida selvagem foram extintas na Terra, vítimas dos efeitos climáticos combinados com a ação devastadora da exploração humana dos recursos naturais não renováveis. Os problemas de fome, desemprego e doenças estavam resolvidos. Porém, o fim do nosso bioma era uma questão de tempo. Para preservar o pouco do que ainda resta da flora e fauna uma frota de naves cargueiro carrega para o espaço os últimos exemplares de plantas, árvores e alguns poucos pequenos animais silvestres, confinados em gigantescas estufas com ambiente controlado. Uma espécie de Arca de Noé com florestas nativas. Um Éden bíblico.


A bordo de uma destas naves, chamada Valley Forge, está uma tripulação de quatro pessoas. Um deles é o botânico Freeman Lowell (Bruce Dern), um apaixonado pela natureza e grande entusiasta da missão espacial. Idealista, sonhador e cheio de boas intenções, Lowell está em constante atrito com seus companheiros de viagem. Indiferentes aos objetivos nobres do projeto, eles só pensam em acabar a missão e voltar logo para casa. E este momento chega quando o comando da missão na Terra decide abortar o projeto (por razões não esclarecidas) e ordena a destruição das cúpulas com os espécimes vegetais e animais preservados. Inconformado com o fim do projeto Lowell se rebela e decide agir por conta própria para salvar o que resta do seu sonho.

Corrida Silenciosa é um libelo ecológico que ainda faz total sentido nos dias de hoje. Aliás, muito mais sentido do que 45 anos atrás. Seu recado é claro e objetivo, ainda que por vezes demonstre alguma ingenuidade de propósitos. Como estrutura narrativa o filme de Douglas Trumbull se recente de uma trama mais elaborada e o conflito do protagonista, que se estende do início ao fim sem grandes questionamentos, deixa pouco espaço para explorar suas reais motivações. Nada sabemos de sua história, seu passado ou relações. Apenas somos apresentados à sua utopia, e com ela embarcamos em sua jornada pessoal. Vale atentar para o significado metafórico que se esconde sob o nome do personagem principal, Freeman, o “homem livre”.


Normalmente os filmes de ficção científica privilegiam a frieza dos cenários e a eficiência da tecnologia, quase sempre apresentando robôs e androides como personagens duros e sem emoção. Pois Corrida Silenciosa quebra esta regra. A bordo da Valley Forge, além dos quatro tripulantes, também há três pequenos robozinhos, responsáveis por pequenas tarefas de manutenção e reforma da nave. O detalhe é que esses simpáticos robozinhos são muito amigáveis com os seres humanos. Demonstram sentimentos e empatia por vezes até comoventes com seus “donos”. Criativos pelo design e convincentes em ação, os robozinhos são resultado de uma bem sucedida experiência de utilizar atores reais amputados (sem as pernas) para manipular e dar “vida” às máquinas.

Com sua mensagem explicitamente ecológica Corrida Silenciosa carrega ecos do espírito do movimento hippie que pregava (entre outras coisas) um retorno dos homens às coisas básicas da natureza. Este espírito meio “hiponga” se manifesta tanto pelos discursos de Lowell quanto por seu figurino. Mas o grande vínculo com o “flower-power”, sem dúvida, são as canções de Joan Baez que pontuam a narrativa em momentos chave.


Ao ser lançada em 1968, a ópera espacial 2001 – Uma Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick, resgatou o interesse da ficção científica no cinema ao apontar as imensas potencialidades do gênero para além de uma mera aventura de entretenimento, como era usual até então. A ficção científica podia sim tratar de temas mais profundos, questionando a humanidade frente aos desafios de sua própria sobrevivência como espécie, sempre sob uma perspectiva filosófica. Corrida Silenciosa, lançado quatro anos após, é fruto direto da obra de Kubrick. Não apenas por tratar também de assuntos de fundo existencial, mas por uma outra questão mais objetiva. O supervisor dos inovadores efeitos especiais e fotográficos de 2001, Douglas Trumbull, estreou na direção de longas-metragens com esta produção que conquistou, ao longo dos anos, o status de filme cult.

Nunca é demais falar de ecologia. E o cinema sabe muito bem disso. Volta e meia os filmes de ficção científica voltam ao tema. Vale lembrar que em 2009 foi lançado Avatar, de James Cameron, que também tinha essa pegada ecológica, provando que o tema segue sempre atual e oportuno.

Assista o trailer: Corrida Silenciosa

      (Texto originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em julho de 2017)

Jorge Ghiorzi

segunda-feira, 8 de outubro de 2018

“Procura Insaciável”: choque de gerações


O movimento hippie, quem diria, já é um cinquentão. O “verão do amor”, marco da proposta de mudança de comportamentos apregoada pela juventude, aconteceu no distante ano de 1967 na icônica cidade de São Francisco, na Califórnia (EUA). A contestação aos padrões sociais estabelecidos ganhava força através da cultura que conquistou os corações e mentes dos jovens com um fortíssimo aliado: o rock. A liberdade absoluta era um direito a ser exercido na plenitude. Sem limites. E de preferência com flores (e algo mais) na cabeça. O cinema, é claro, não podia ficar de fora daquela nova onda. Naquele período em particular surgiram muitos filmes explorando aquele universo social e suas ideias. Ora tratando o tema com interesse genuinamente sociológico, ora com algum caráter de exploração gratuita ou cômica, ou ainda, na maior parte das vezes, apenas incluindo personagens hippies na história para aproveitar o modismo e atrair público.

Um dos filmes mais significativos e simbólicos daquele período foi realizado tardiamente, apenas em 1971, por um diretor europeu, portanto, com um olhar estrangeiro, crítico e não comprometido com aquele ambiente social dos Estados Unidos. O realizador foi o checo (hoje naturalizado norte-americano) Milos Forman e o filme em questão é Procura Insaciável (Taking Off). Esta foi sua primeira realização em terras americanas, com a qual ganhou o Prêmio Especial do Júri do Festival de Cinema de Cannes daquele ano. O projeto inicial de Forman ao viajar para a América era filmar a peça “Hair”, de grande sucesso na época, mas o projeto acabou sendo adiado, só concretizando-se oito anos depois, no final da década de 70. Partindo de um roteiro original, escrito em parceria com Jean-Claude Carrière, Milos Forman aborda em Procura Insaciável temas semelhantes e afins com Hair. Substancialmente o que diferencia os dois filmes é a mudança de foco narrativo. Em Hair acompanhamos a trama pela ótica dos jovens, já em Procura Insaciável o eixo de interesse se dá sob a perspectiva dos adultos, no caso, os pais da jovem influenciada pelo universo da contracultura.


O modo de vida hippie é envolvente e sedutor para os adolescentes presos às tradições sociais das famílias conservadoras. É esta promessa de um mundo de liberdade que faz a cabeça da jovem aspirante à cantora Jeannie Tyne (Linnea Heacock). Ao participar, sem avisar aos pais, de uma audição para o elenco de uma produção teatral (uma longa sequência inicial) a jovem fica fora de casa por muitas horas. A ausência da filha faz os pais imaginarem que ela decidiu fugir de casa para viver com os hippies. Ou, quem sabe, ela foi sequestrada por um bando deles. Decididos a descobrir o paradeiro da filha, o casal Larry (Buck Henry) e Lynn (Lynn Carlin) decide que eles próprios devem procurar por ela. Nesta busca por bares e ruas da cidade conhecem outros pais em situação semelhante e se envolvem numa viagem de descobertas pessoais que superam inclusive o desejo de encontrar a própria filha.

Procura Insaciável retrata uma espécie de ressaca do movimento hippie no início dos anos 70. O fim de um tempo de utopia se aproximava e o movimento chegava num impasse por não propor caminhos viáveis para alcançar resultados concretos e objetivos. Mas que deu uma sacudida na sociedade ocidental, disso não há dúvida. Ao forçar os limites comportamentais provocou reflexões mais do que oportunas. E a família tradicional nunca mais foi a mesma. Milos Forman faz um retrato deste tempo de mudanças e troca da guarda. O filme, que na essência mostra o choque de gerações e suas respectivas visões de mundo, se constitui hoje num preciso documento histórico.

A procura dos pais pela filha os tira de um estado de letargia. Viver o mundo real além das paredes confortáveis do lar seguro possibilita que eles “vejam” o mundo com outros olhos. Mais do que isto na verdade. Permite que eles experimentem novos desejos e sensações que estavam adormecidas, ou domesticadas em nome dos bons modos de uma sociedade repressora e careta. Na prática eles descobrem um mundo de liberdades que eles próprios reprimiam em sua filha. Milos Forman é sarcástico e implacável com esta hipocrisia. O resultado é um riso amargo no rosto do espectador.


Impossível ficar impassível diante da impagável sequência de um grupo de pais tendo aulas de como fumar um cigarrinho de maconha, ministrada por um expert no assunto, um interno com problemas de dependência química. Rico em detalhes de como preparar o baseado, passando pelos atos de acender e tragar a fumaça, a experiência deveria ser importante para os pais realmente entenderem seus filhos. Se entenderam realmente não se tem certeza, mas que o experimento foi um barato, não resta dúvida.

Procura Insaciável é um registro histórico também por mostrar na sequência inicial (da audição musical) duas artistas que ganhariam notoriedade anos depois: a atriz Kathy Bates e a cantora Carly Simon. Consta que a cantora Madonna (então com cerca de 10 anos de idade) disputou sem sucesso um papel para participar desta sequência. E mais: Tina Turner aparece se apresentando num show real filmado numa casa de espetáculos.

Assista o trailer: Procura Insaciável

     (Texto originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em julho de 2017)

Jorge Ghiorzi

domingo, 9 de setembro de 2018

“Mulheres Apaixonadas”: ciranda de amores e desamores


O escritor inglês D. H. Lawrence (1885 – 1930) é reconhecido por uma obra marcada essencialmente pela contundência de uma crítica social que, ao mesmo tempo em que contesta a hipocrisia moral da elite inglesa, aborda abertamente e sem pudor temas relacionados ao sexo e erotismo como um caminho de prazer rumo à libertação pessoal. Seu livro mais conhecido é o polêmico “O Amante de Lady Chatterley”, escrito em 1928. Acusado de pornográfico, o livro ficou proibido na Grã-Bretanha até os anos 60. E foi também apenas no final desta década que a obra do autor ganhou repercussão no cinema com a adaptação cinematográfica do livro “Mulheres Apaixonadas”, seu quarto romance.

Lançado em 1969, Mulheres Apaixonadas (Women in Love) foi dirigido pelo não menos polêmico cineasta inglês Ken Russell, provocativo e estiloso realizador de filmes como o drama religioso Os Demônios (1971); a ópera-rock Tommy (1975); as cinebiografias Lisztomania (1975) e Valentino (1977) e o sexo-thriller Crimes de Paixão (1984). A combinação entre D. H. Lawrence e Ken Russell tinha tudo para ser explosiva. E foi mesmo. Mulheres Apaixonadas foi imediatamente reconhecida como uma da mais fiéis transposições da literatura para o cinema. Mas o que mais chamou atenção de verdade, fonte de escândalo nos círculos mais conservadores, foi a franqueza da abordagem dos temas sexuais e relacionamentos amorosos. O tratamento aberto, ousado e despudorado, em níveis nunca vistos até então em produções de grande porte com estrelas de primeira grandeza no elenco, marcou época, chocou puritanos e rendeu discussões acaloradas na imprensa.


A época é os anos 20. O cenário é cidade mineira de Beldover, na Inglaterra. Os protagonistas são dois casais formados por pessoas de personalidades, temperamentos e objetivos de vida distintos. As mulheres são as irmãs Brangwen. Gudrun (Glenda Jackson), identificada com as artes e a cultura, é independente e crítica das regras sociais. Ursula (Jennie Linden) é uma jovem inocente e apaixonada, a procura de um príncipe encantado para viver a sonhada grande paixão. Elas são bem diferentes, mas algo as une: ambas estão em busca do amor, cada uma a sua maneira. Gudrun se envolve com o rico proprietário de minas de carvão, Gerald Crinch (Oliver Reed), um homem arrogante que considera o casamento apenas outra forma de exercer o seu desejo de poder e dominação. Ursula, por sua vez, acaba se relacionando com Rupert Birkin (Alan Bates), um inspetor escolar, sonhador, poético e admirador das belezas que a vida oferece. E amigo de Gerald.

Mesmo sendo um filme de época, em certa medida Mulheres Apaixonadas representa o espírito de efervescência cultural e contestação da época em que a produção foi filmada, a agitada swing London do final dos anos 60. O que, aliás, apenas reforça a ideia de que a obra de D. H. Lawrence, escrita há quase um século, estava à frente de seu tempo no que refere a comportamentos individuais mais libertários. O rompimento com as convenções sociais, um tema caro na obra do escritor, está presente com grande força na adaptação de Ken Russell. A proposta é quebrar as barreiras, incluindo as de classe. E isto fica muito bem representado pela “mobilidade social” das irmãs. Provenientes da classe proletária, as duas transitam livremente, e com muita naturalidade, diga-se, entre os dois mundos, o dos ricos da elite e o dos trabalhadores e operários de uma Inglaterra que vivia a industrialização das grandes cidades.


“Tente me amar um pouco mais e me querer um pouco menos”

Gudrun e Ursula são duas mulheres em busca de seu lugar no mundo, mas não a qualquer custo. Não cedem facilmente às convenções familiares, nem às expectativas do papel social que lhes parecia reservado na comunidade onde viviam. O comportamento livre que adotam, ao mesmo que afronta, atrai os homens a sua volta. “Eles” comandam, mas “Elas” é que conduzem o jogo da vida.

Aqui, vale um comentário para os homens da trama. Gerald e Rupert são dois personagens que na superfície parecem ser donos de seus destinos, mas frente às armadilhas do coração e da paixão revelam fragilidades internas. Certezas transformam-se em incertezas. Desnudam-se exibindo seus mais profundos sentimentos refreados. Ken Russell explicita esta situação com a polêmica (e famosa) sequência que mostra os dois nus praticando uma amigável luta livre sobre os tapetes de uma sala aquecida por uma lareira. Esta sequência em especial, mas em outras passagens também, parece indicar, com um grau de liberdade inesperado e inédito para a época, que haveria alguma paixão reprimida entre eles. As relações de Gerald e Rupert com suas respectivas mulheres sugerem então que não passariam de um artifício para afastá-los de uma homossexualidade latente e não consumada.


Mulheres Apaixonadas foi um filme moderno em seu tempo. Ainda hoje resiste como uma obra significativa e importante com seus questionamentos das convenções sociais e apresentação do sexo com uma fonte de prazer. Na ciranda de amores e desamores, o filme de Ken Russell se apresenta como uma espécie de “quatrilho à inglesa”, ora contestando a opressão moral que as sociedades exercem, ora se entregando aos prazeres carnais sem nenhum resquício de culpa católica. Mulheres Apaixonadas é provocativo na forma e romântico no conteúdo.

Assista o trailer: Mulheres Apaixonadas


(Texto originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em junho de 2017)

Jorge Ghiorzi

terça-feira, 17 de julho de 2018

“Tesis”: manipulação do olhar


As imagens se sucedem. A sensação do movimento é uma miragem, uma ilusão de ótica provocada pela persistência da visão. A retina retém a visão por uma fração de segundo após sua percepção. Imagens projetadas a um ritmo superior a 16 quadros por segundo enganam o cérebro que acaba registrando o movimento onde ele não existe de fato. Este é o princípio do Cinema. Um engodo consciente.

Este artifício de manipulação do olhar está na base criativa do primeiro longa-metragem do cineasta espanhol, Alejandro Amenábar, o mesmo realizador de Os Outros e Mar Adentro. Realizado há mais de duas décadas, Tesis: Morte Ao Vivo (Tesis, 1996) manipula o olhar do espectador contando a história de uma protagonista guiada apenas pelo o que vê, ou pensa (ou deseja) ver, num misto de real e imaginário. O que pensamos estar vendo é tão ou mais ilusório quanto o que não podemos enxergar. Este é um tema que parece muito caro à Amenábar, que voltou a tratar do assunto, de forma diversa, em seu filme seguinte, Preso na Escuridão (Abre los ojos). Entre o abrir e o fechar dos olhos, um mundo inteiro se esconde. Ora revelado, ora oculto.

Em Tesis uma estudante de Cinema da Faculdade de Ciências da Informação de Madri, Angela (Ana Torrent), está desenvolvendo uma pesquisa para sua tese sobre a violência registrada em imagens e seus efeitos no comportamento das pessoas a elas expostas. Ela pede ajuda ao professor para ter acesso aos arquivos de vídeo da universidade. Disposto a ajudá-la, o professor decide pesquisar o acervo por conta própria e acaba descobrindo um compartimento secreto que guarda uma coleção de fitas de vídeo VHS (estamos nos anos 90!). Após assistir um dos vídeos o professor sofre um ataque cardíaco e morre. Angela resgata a fita de vídeo e descobre que trata-se de uma gravação caseira que mostra uma garota sendo torturada até a morte, registrada ao vivo, diante da câmera. Com ajuda de um colega de faculdade, Angela assume a missão de descobrir quem está por trás da produção daquele vídeo.


Tesis: Morte ao Vivo é um filme desenvolvido a partir de uma tese: a exposição e superexposição da violência pelos meios de comunicação (cinema, TV, mídia em geral). Tema já relevante há 20 anos, e muito mais ainda hoje, com a proliferação de imagens de violência gráfica, disseminadas massiva e indiscriminadamente pelas redes e dispositivos móveis. Como pano de fundo, e motor da narrativa, o filme de Amenábar se utiliza porém de um elemento fictício: a lenda urbana dos filmes “Snuff”, produções baratas, originadas no submundo, que exibem cenas de tortura e mortes, supostamente reais, registradas ao vivo, sem censura nem efeitos especiais.

A atração pelo mórbido consome o olhar da protagonista Angela, situação explicitamente definida na sequência de abertura que mostra um acidente no metrô. O desejo de ver a qualquer custo o corpo destroçado por um acidente na linha do trem supera qualquer racionalidade. Um desejo primal de testemunhar, apropriando-se da imagem como algo a ser conquistado. Lembremos que civilizações ancestrais temiam os efeitos da fotografia alegando que “roubavam” a alma, a essência da pessoa.


A levada do filme de Amenábar é de um thriller. Há uma ameaça, um suposto assassino e uma vítima potencial, elementos primordiais típicos de um suspense bem temperado. Aqui e ali, como qualquer exemplar do gênero, encontram-se furos de roteiro, incongruências que ferem a lógica e concessões demasiadas em favor do necessário ritmo crescente de inquietação e apreensão que se deseja provocar na plateia. Mas, absolutamente, isto não faz de Tesis um filme menor. Pelo contrário. Apenas reforça o controle do realizador sobre os destinos de sua obra. Amenábar manipula com habilidade todos estes elementos e nos entrega um filme eficiente em sua proposta de suspense e contundente na exploração de uma temática perturbadora.

Um destaque que faz a alegria de todos os cinéfilos é o reencontro com Ana Torrent, cuja imagem de garotinha ficou cristalizada em pelos menos dois clássicos dos anos 70, O Espírito da Colmeia e Cria Cuervos, quando ela tinha cerca de dez anos de idade. Passados vinte anos, a reencontramos em Tesis, e descobrimos que seus expressivos grandes olhos negros permanecem lá, no rosto de uma respeitável atriz de 30 anos de idade. Na época de seu lançamento, Tesis: Morte ao Vivo foi exibido no Festival de Cinema de Gramado (RS), em 1996, com direito à presença da própria Ana Torrent na plateia.

Assista o trailer: Tesis

(Texto originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em maio de 2017)

Jorge Ghiorzi

domingo, 24 de junho de 2018

“Conta Comigo”: rito de passagem


A passagem da infância para a vida adulta é matéria prima recorrente para livros e filmes. Embora a imensa maioria das vezes o tratamento do tema seja ficcional, é verdade também que é quase inevitável a inserção de elementos biográficos pontuais do autor. O escritor Stephen King, reconhecido mundialmente por suas histórias que exploram o fantástico e o terror sob muitas formas, não resistiu aos apelos da memória e também produziu textos com este olhar afetivo para o passado. Um destes trabalhos foi o conto “O Outono da Inocência – O Corpo”, incluído no livro “As Quatro Estações”.

Fugindo a todas as expectativas, dado o perfil do autor, este pequeno conto que evoca um tempo de nostalgia e inocência foi fonte de inspiração para uma adaptação cinematográfica. Aliás, deste mesmo livro também saiu outro conto que foi parar no cinema, Um Sonho de Liberdade. O resultado foi o filme Conta Comigo (Stand by me, 1986) dirigido por Rob Reiner. Mais identificado com as comédias, como o falso-documentário Isto é Spinal Tap, e mais Harry e Sally – Feitos Um Para o Outro e Sintonia de Amor, Reiner ainda realizaria, quatro anos depois, outro longa baseado em Stephen King, desta vez no gênero terror: Louca Obsessão.

A ação de Conta Comigo inicia no tempo presente, quando o escritor Gordie Lachance (Richard Dreyfuss) lê no jornal a notícia da morte de um homem chamado Chris Chambers. Este fato deflagra nele a recordação de um acontecimento marcante ocorrido quando ele tinha cerca de 12 anos de idade. Viajamos com as memórias do protagonista e vamos parar no ano de 1959, na pequena localidade de Castle Rock, no Oregon (EUA). Naquele tempo e espaço conhecemos seus três melhores amigos: o próprio Chris Chambers (River Phoenix), Teddy Duchamp (Corey Feldman) e Vern Tessio (Jerry O’Connell).


Jovens, sonhadores e inocentes, eles enfrentam conflitos familiares e a opressão física e psicológica dos meninos mais velhos, o famoso “bullying”. Todos, a sua maneira, carregam traumas e dramas pessoais. Um é acusado de roubo (Chris), outro é vítima de violência dos pais (Teddy), outro se sente rejeitado por ser gordo (Vern) e outro vive a depressão pelo irmão morto (Gordie). Deslocados num mundo adulto, os quatro amigos procuram saídas para superar seus fantasmas. A oportunidade surge quando eles ficam sabendo que o corpo de um garoto desaparecido foi encontrado (mas ainda não revelado para as autoridades). Como forma de demonstrar coragem e fortalecer a autoafirmação, eles decidem se aventurar numa expedição para encontrar o corpo.

Por tratar-se de um original de Stephen King, sabemos de antemão que de alguma forma o terror nos espreita. Sim, ele está lá. Mas apresenta-se de forma mais simbólica do que usualmente conhecemos na sua obra. Um corpo desaparecido é por si só uma imagem que provoca graus diversos de terror. Quem matou? O trem atropelou? Foi crime ou acidente? Como está o corpo? Mas o caminho oferecido é outro. O cadáver, tão obsessivamente procurado, é apenas um pretexto. Um gatilho que detona uma revelação que se dá no nível psicológico dos quatro amigos. Ao se imporem a missão de resgatar um defunto que paira como alma penada sobre uma pequena comunidade, os garotos fortalecem suas fraquezas e mostram seu valor como figuras sociais. A ideia era sair das sombras do mundo adulto, deixar de ser invisível e reivindicar seu lugar ao sol.


Conta Comigo é um filme memorialista que cultua a nostalgia. A percepção de um tempo passado é permanente no desenrolar da história, o que nos leva a crer estarmos diante de uma proposta de revisão do passado para explicar a realidade do presente. Uma busca das origens do que somos, do que nos tornamos, que mundo criamos e as consequências advindas de uma existência pregressa. Testemunhamos um rito de passagem, uma experiência transformadora, formadora do caráter e virtudes que carregamos, com direito a risos, dor e lágrimas. Reveladora é a reflexão de Gordie ao retornar da expedição: “Estivemos fora apenas dois dias, mas a cidade parece diferente, menor”.

Garotos de origens sociais diversas, mas igualmente problemáticos em suas relações familiares, foram também protagonistas de outro pequeno clássico (assim como Conta Comigo também se classifica), realizado por Stanley Kramer em 1971, chamado Abençoai as Feras e as Crianças, que em sua época ficou muito conhecido por uma bela canção do grupo “The Carpenters”.

Assista o trailer: Conta Comigo

(Texto originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em maio de 2017)

Jorge Ghiorzi

segunda-feira, 14 de maio de 2018

“Lili Marlene”: a canção que uniu uma nação


A Alemanha conviveu com os fantasmas da Segunda Guerra Mundial por cerca de três décadas até abordar abertamente o tema no cinema. Neste período de cicatrização dos traumas e reconstrução do país, um grupo de novos cineastas alemães (nascidos justamente no período da guerra) assumiu o compromisso de fazer este reencontro nas telas com o passado. O movimento do Novo Cinema Alemão reuniu um grupo de realizadores intelectualizados e cinéfilos. Coube a eles este acerto de contas com sua própria história, sempre com o pesado olhar crítico da primeira geração que viveu as consequências diretas da guerra.

Um dos primeiros filmes alemães a tratar diretamente do papel do país no conflito mundial, sem qualquer traço de ufanismo mal disfarçado, foi a superprodução Lili Marlene (Lili Marleen, 1981) dirigida pelo enfant terrible do movimento, o intenso e prolífico Rainer Werner Fassbinder (1945 – 1982). Projeto de encomenda de um poderoso produtor alemão, o longa-metragem mirou o mercado global, o que justifica as filmagens em inglês (posteriormente o filme foi dublado em alemão) e a presença de elenco internacional. O longa-metragem foi, em sua época, o mais caro já produzido no país. Com orçamento generoso e sua a exuberância de cenografia, figurino e direção de arte, Lili Marlene destoa da escassez habitual de recursos com as quais Fassbinder sempre se defrontou em seus projetos mais pessoais, muitos deles nos limites de uma produção amadora, ainda assim criativas e íntegras como realização artística de qualidade diferenciada.


A narrativa de Lili Marlene se constrói a partir do confronto entre política e arte, entre ideologia e entretenimento, e como estes dois campos se atraem, se repelem, mas, invariavelmente, se valem um do outro para alcançar seus objetivos. Uma comunhão de interesses num momento histórico peculiar de uma Alemanha utópica, à beira da catástrofe.

Lili Marlene coloca no protagonismo uma mulher forte e poderosa, fato recorrente na filmografia de Fassbinder. Basta lembrarmos de Petra Von Kant, Veronika Voss, Lola e Maria Braun. O filme é baseado na autobiografia da cantora Lale Andersen e seu romance com o músico Rolf Liebermann, tendo como pano de fundo a trajetória de sucesso da famosa canção “Lili Marlene”.

No filme Lale e Rolf foram rebatizados como Willie (interpretada pela musa de Fassbinder, Hanna Schygulla) e Robert Mendelsson (o italiano Giancarlo Giannini). Às vésperas da Segunda Guerra Mundial, ambos vivem um romance idílico em Zurique, na Suíça. Ele é boêmio judeu, de família rica e tradicional. Ela é alemã, cantora de cabaré. A família de Robert é contra o relacionamento dos dois. Após retornarem de uma viagem à Alemanha, Willie é impedida de cruzar a fronteira e retornar à Suíça. O casal acaba se separando, graças a uma trama bem sucedida do pai de Robert, o poderoso David Mendelson (Mel Ferrer).


Sozinha na Alemanha, que vivia o período de ascensão do partido Nazista ao poder, Willie volta a cantar na noite de Berlim, onde conhece Henkel, um ambicioso comandante nazista. Com a ajuda do novo amigo e admirador, Willie grava um disco com a canção “Lili Marlene”. Para surpresa de todos a música se torna um inesperado e estrondoso sucesso entre as tropas alemãs no campo de batalha, já com a guerra em pleno andamento. A notoriedade repentina torna Willie uma estrela. Famosa e popular, ela recebe os privilégios do poder, chegando inclusive a encontrar pessoalmente Adolph Hitler, a pedido dele próprio. O propósito é utilizá-la como um símbolo do regime nazista. Inconformado com o destino de sua amada, Robert decide cruzar a fronteira para uma perigosa missão de resgate.

O conceito de melodrama é muito flexível e se adapta a muitas situações. Mas Fassbinder propõe uma definição certeira quando diz que melodrama é essencialmente uma história sobre pessoas. E é exatamente disso que se trata Lili Marlene. Um olhar fechado sobre a paixão interrompida entre dois amantes em meio ao fantasma do nazismo que se insinua sorrateiramente na sociedade até o golpe final da conquista que coloca uma nação de joelhos.


Ainda que o roteiro avance aos solavancos, as interpretações beirem ao teatral (reverência estética de Fassbinder aos palcos do início da carreira) e a montagem descontinuada perturbe o entendimento de certas passagens, o certo é que o realizador sabe exatamente as feridas que deve cutucar. Um país remoendo suas culpas se viu frente a frente com um passado que condena.

O sucesso da canção “Lili Marlene” foi um daqueles acasos da natureza. A melodia é triste e a letra contradizia os ideais da luta nacional socialista. Segundo o Ministro da Propaganda nazista, Joseph Goebbels, o final mórbido da canção não inflamava o patriotismo, por esta razão ele a chamava de “besteira com cheiro de morte”. Mas o líder nazista, fazendo jus ao título de “gênio do mal”, soube perceber o poder e o apelo da música nos corações e mentes das tropas alemãs (e dos aliadas também, diga-se). O poder de convencimento da palavra, e da arte em especial, pode mover montanhas e conquistar mentes quando utilizada com propósitos nefastos.

Assista o trailer: Lili Marlene

(Texto originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em maio de 2017)

Jorge Ghiorzi

terça-feira, 1 de maio de 2018

“Arabesque”: mistério e bom humor


Os anos 60 foram o paraíso para as histórias de espionagem na ficção, seja na literatura ou no cinema. Nada a estranhar, afinal, vivia-se àquela época o auge da Guerra Fria entre as grandes potências, EUA e URSS. Aqueles foram tempos de surgimento e afirmação de autores célebres como Ian Fleming (“007”) e John Le Carré, cujas obras foram rapidamente adaptadas para o cinema. Sabidamente o mais celebrado dos espiões da ficção foi, e continua sendo, James Bond, verdadeiro ícone e inspiração para histórias do gênero há mais de 50 anos. O estrondoso sucesso dos filmes com as aventuras de 007 mostraram um caminho a ser seguido e serviram de modelo para uma séria de outras produções.

Um dos títulos que seguiu à risca este caminho foi a comédia de suspense Arabesque (Arabesque, 1966), dirigida pelo versátil Stanley Donen, responsável por clássicos estimados como Cantando na Chuva (1952) e Sete Noivas para Sete Irmãos (1954), e fracassos como Os Aventureiros do Lucky Lady (1975) e Feitiço do Rio (1984), seu último trabalho, parcialmente filmado no Rio de Janeiro.


Arabesque é sim um filhote dos filmes de James Bond, e para não deixar dúvidas sobre qual foi a fonte de inspiração, o longa de Stanley Donen já abre com créditos animados muito semelhantes, para não dizer iguais, aos dos filmes de 007. E isto tem uma explicação: o próprio criador das aberturas das aventuras do agente, o artista gráfico e designer Maurice Binder, foi convidado para animar também a abertura de Arabesque.

Mas, além de alguns outros aspectos básicos de uma narrativa de suspense tradicional, as semelhanças acabam por aí. A destacar a diferença fundamental do perfil do protagonista. Enquanto James Bond é um cara destemido, sedutor, bom de briga e obstinado, o herói de Arabesque é um sujeito pacato, desencanado, vacilante e um pouco atrapalhado, que acaba jogado no meio de uma conspiração internacional.

Este herói involuntário é o professor David Pollock (Gregory Peck), um especialista em hieróglifos arábicos da Universidade de Oxford. Graças a esta habilidade ele é recrutado pelo primeiro-ministro de um país do Oriente Médio para decifrar uma mensagem que pode revelar uma trama de assassinato. Para cumprir a missão, que aceita a contragosto, Pollock se infiltra na organização de um oponente do primeiro-ministro. Lá conhece a bela Yasmin Azir (Sophia Loren), que também parece interessada em resolver o mistério, que acaba se tornando sua aliada. Juntos precisam decifrar o enigma, escapar dos inimigos e evitar um atentado ao primeiro-ministro.


O professor Pollock encarna uma espécie de precursor do futuro professor especialista em simbologia Robert Langdon, criação do escritor Dan Brown (“Anjos e Demônios” e “O Código Da Vinci”). Com muito mais charme e bom humor, diga-se de passagem. E aqui está um dos destaques do filme de Stanley Donen. O encantador desempenho de Gregory Peck não deixa nada a desejar a um Gary Grant, por exemplo, especialista em papéis que exigem equilíbrio entre simpatia, elegância e descontração. E, claro, não podemos esquecer da parceira de Gregory Peck. A italiana Sophia Loren, esbanjando a beleza e sedução, também não deixa a desejar em seu papel de espiã / agente duplo dissimulada, digna das femmes fatales do cinema noir. A bela Yasmin Azir faz a cabeça e tira do prumo a fleuma britânica do professor Pollock, constantemente em dúvida sobre as verdadeiras intenções e objetivos de sua companheira de aventura. Em dado momento ele questiona: “Por que é sempre tão difícil acreditar em você?”.

A trama de Arabesque se movimenta a partir do clássico artifício de um “MacGuffin” (aquele objeto que todos desejam e deve ser encontrado a qualquer custo), que no caso é um pequeno pedaço de papel com a mensagem cifrada. Mas o que vale mesmo são as perseguições, fugas e ameaças que colocam em risco os heroicos protagonistas que agem apenas para que a justiça seja feita e os maus sejam punidos. A história, que inicia como uma clássica narrativa de suspense, tipo Hitchcock, logo muda de tom e se assume abertamente como uma comédia, que em alguns momentos chega a flertar com o gênero pastelão. A cereja do bolo são os diálogos elegantes, criativos, inteligentes e cheios de segundas intenções.


Arabesque foi realizado por Stanley Donen apenas três anos após Charada, também uma comédia de suspense e mistério, estrelada por outra charmosa dupla: Cary Grant e Audrey Hepburn. Donen acertou a mão nos dois filmes, títulos bastante representativos do cinema de entretenimento dos anos 60. Ambos são filmes que se assiste com prazer e deleite, não ofendendo a inteligência do espectador. Então, apague a luz e dê o play. E não esqueça do balde de pipocas.

Assista o trailer: Arabesque

(Texto originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em abril de 2017)

Jorge Ghiorzi

segunda-feira, 26 de março de 2018

“Alice nas Cidades”: vida em movimento


Uma rápida análise da carreira do diretor alemão Wim Wenders já é suficiente para constatar a forte atração do realizador pela cultura norte-americana. Ao longo de sua filmografia de quase 30 filmes é possível constatar que esta paixão se manifesta regularmente em grande parte de sua obra. Filmes como O Amigo Americano (1977), baseado na literatura policial de Patrícia Highsmith; Hammett – Mistério em Chinatown (1982), narrativa ficcional de mistério protagonizada pelo próprio escritor Dashiell Hammett; Paris – Texas (1984), road movie existencialista filmado na Califórnia; O Fim da Violência (1997), thriller que se passa no universo de Hollywood; O Hotel de Um Milhão de Dólares (2000), estilizada história de assassinato, traficantes e ladrões no submundo de Los Angeles; e também os documentários Um Filme para Nick (1980), que registra os últimos momentos do diretor Nicholas Ray ainda na ativa com projetos de cinema, e Willie Nelson at the Teatro (1998), que registra show do famoso cantor de country music, não deixam dúvida o quanto a matriz cultural norte-americana foi (e continua sendo) fonte de inspiração nos filmes de Wim Wenders.

As primeiras tentativas de aproximação do realizador alemão com seu objeto de desejo, a América, ocorreram na virada dos anos 60 para os 70, com alguns curtas-metragens com temas e músicas americanas (Bob Dylan, por exemplo). A consumação do desejo aconteceu apenas em 1974 com o longa-metragem Alice nas Cidades (Alice in den Städten), um road movie parcialmente filmado e ambientado em Los Angeles e Nova Iorque. Para um cineasta disposto a descobrir novas terras, o formato de filme de estrada sem dúvida era o mais adequado e seguro para a exploração. Paisagens inspiram reflexões, que interpretam as paisagens, que voltam a inspirar novas reflexões, num movimento moto-contínuo de ação e reação.


O jornalista alemão Philip Winter (Rüdiger Vogler), contratado para escrever uma longa matéria sobre os Estados Unidos, viaja pelo país, costa a costa, das praias da Califórnia até Manhattan. Em bloqueio emocional, que se transforma em bloqueio criativo, o jornalista faz todo o percurso, mas não consegue escrever uma linha sequer do artigo encomendado. Limita-se apenas a registrar suas impressões de viagem em melancólicas fotos de uma câmera polaroid (seria ele um precursor dos corriqueiros “check-ins” das redes sociais de hoje?). Sua grande queixa é constatar que, por mais sentimentos que uma paisagem provoque, a imagem de uma foto nunca consegue captar a realidade. Nunca registra o que realmente se vê. E muito menos o que se sente.

Após ser dispensado pelo contratante, por não cumprir o acordo, Winter arruma as malas e decide voltar para a Alemanha. Mas uma greve da companhia aérea atrasa os voos e o destino dá um jeitinho de mudar seus planos. Ainda no aeroporto conhece uma mulher, também alemã, e sua filha Alice, de 9 anos, que também pretendiam retornar para a Alemanha. Enquanto esperam a saída dos voos no dia seguinte, os três decidem passar a noite juntos num hotel. Na manhã seguinte a mulher desaparece, deixando a filha aos cuidados do jornalista. Ao chegarem à Alemanha os dois empreendem uma busca pelos familiares da garota, iniciando uma jornada de descobertas e amizade.


O olhar estrangeiro de Wim Wenders sobre a América se mostra um tanto dividido.  Um misto de deslumbramento, poesia, melancolia e apatia. Típica relação de amor e ódio. O personagem central não passa de um turista acidental que não ultrapassa a barreira da solidão, mesmo mergulhado em uma multidão. O sentimento de não-pertencimento àquele modo de vida apenas reforça a sensação de que a harmonia que deseja não será encontrada na viagem em si, muito menos no destino final da jornada. As respostas estão no ponto de partida, na Alemanha, sua terra natal. Ao embarcar numa jornada de busca pelo destino da garota, os dois mergulham no interior do país, nas pequenas cidades, pequenas ruas, casas de família, antigos ancestrais, ancorados no passado. Pelas mãos da pequena Alice, Winter é levado a sua verdadeira viagem de reencontro consigo próprio. O mundo de Alice não é um país das maravilhas, mas com certeza um mundo de descobertas, despertares e revelações.


O tema do personagem em busca de seu destino, de uma história para dar sentido à vida, é muito recorrente na obra de Wim Wenders. Paris – Texas é outro ótimo exemplo dessa abordagem, com o qual, aliás, Alice nas Cidades divide outra questão fundamental. Ambos discutem, por caminhos distintos, as consequências de famílias disfuncionais onde a figura do pai ausente (e mãe também, no caso) é fator que detona os processos de transformação dos personagens. Alice nas Cidades é um filme de movimento, avanços e recuos. De achados e perdidos. De perdas e ganhos. De imagens reais e simulacros. De sentimentos particulares e sensações coletivas. Quando o filme acaba a (nova) história de Philip Winter está apenas começando.

Alice nas Cidades é um dos títulos mais representativos do chamado Novo Cinema Alemão, situado entre os anos de 1969 e 1982, que reúne obras de outros importantes diretores como Werner Herzog, Rainer Werner Fassbinder, Volker Schlondorff e Alexander Kluge. Os filmes deste período renovaram o cinema alemão, rompendo com vigor e criatividade a expurgação do fantasma moral da culpa alemã na Segunda Guerra.

Assista o trailer: Alice nas Cidades

(Texto originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em abril de 2017)

Jorge Ghiorzi