sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

“Henry – Retrato de um Assassino”: crimes em série


A cena de abertura já dá o tom. A partir do super close do rosto de uma mulher (lembrando aquela tomada clássica de Hitchcock em Psicose), um movimento de zoom out combinado com suave giro circular da câmera abre o quadro para revelar um corpo inerte, ensanguentado. Corta. Cena seguinte: close em uma mão nervosa apagando o cigarro no cinzeiro. Não resta dúvida. Estamos diante do autor do homicídio. Logo surgem mais corpos de outras vítimas, todas mulheres. Uma, duas, três. Crimes em série. Além da autoria somos também informados que o assassino pratica o mesmo tipo de crime com frequência. Ele, portanto, é um serial killer, e sabemos muito bem o que virá a seguir.

O filme é Henry – Retrato de um Assassino (Henry: Portrait of a Serial Killer, 1986), dirigido por John McNaughton, livremente inspirado na história real de Henry Lee Lucas, um dos mais notórios serial killers do mundo, preso e condenado em 1983 no Texas (EUA).

O longa mostra a rotina do perturbado Henry (Michael Rooker), que sofre um distúrbio mental que o leva a matar mulheres aleatoriamente, sem razões aparentes. Ele vive com um ex-presidiário em condicional, o desocupado Otis (Tom Towles). Juntos eles começam a cometer crimes simplesmente para dar vazão a seus impulsos de violência gratuita. A chegada de Becky (Tracy Arnold), irmã de Otis, para morar temporariamente com eles, altera o equilíbrio da dupla. Aos poucos começa a nascer uma relação de afeto entre Henry e Becky, cujo desfecho não poderia ser outro senão mais uma tragédia.


O filme de John McNaughton foi realizado apenas três anos após a revelação dos fatos. Portanto, no calor da hora, ainda sob o impacto das mortes. Produção modesta, realizada com pouco mais de 100 mil dólares, Henry visava apenas o promissor mercado do home vídeo da época, e mesmo assim a produção teve pouca circulação. O filme ficou esquecido por três anos até ser exibido em 1989 no Festival de Telluride, no Colorado. Imediatamente entrou no radar dos críticos e do público. Ao ser relançado nos cinemas no início dos anos 90, Henry tornou-se um dos cults mais estimados e integrou a lista dos dez melhores filmes do ano por várias publicações norte-americanas.

Os poucos recursos da produção acabaram favorecendo o estilo quase documental da narrativa. A sordidez dos ambientes e a crueza das sequencias dos assassinatos ainda hoje provocam sensações de desconforto na audiência. A proposta do projeto era explorar uma história grotesca, com personagens desagradáveis e crimes brutais. Tudo baseado em fatos reais, não devemos esquecer. Porém, a abordagem do realizador John McNaughton foi um tanto além do simples apelo exploitation. Há um toque artístico na narrativa, ainda que o roteiro seja um tanto esquemático, raso em alguns aspectos e não ofereça uma trama mais consistente. Impõe-se, porém, o vigor de um relato que chega a ser chocante na maior parte do tempo. Uma morbidez pesada permeia todo o filme. A opção de conduzir a história com a ambição (parcialmente atingida, é verdade) de desvendar minimamente as razões da mente perturbada do personagem, eleva as qualidades de Henry acima da média de produções similares. Usualmente filmes do gênero não costumam sair da superfície da exploração gratuita da violência gráfica.


Curiosamente, o próprio filme contém uma sequência que explicita o poder de sedução catártica que uma imagem de violência gráfica pode produzir. Ao cometer a chacina de uma família, Henry e Otis gravam em vídeo o massacre. Depois, em casa, ficam assistindo continuamente as cenas macabras que protagonizaram, extraindo um incontido prazer vouyerístico da sessão. Podem avançar, retroceder, pausar ou ver tudo em slow motion. Ficam em êxtase pelo protagonismo da cena e pelo controle da imagem, subjugada a seus desejos. Um prenúncio involuntário da “era do selfie” que vivemos, onde o protagonismo é a razão de ser da avalanche de imagens a que somos submetidos diariamente nas redes sociais. Sem, é claro, o componente da violência.

Para retratar a vida do verdadeiro Henry Lee Lucas o diretor (e também roteirista) John McNaughton se viu obrigado a tomar liberdades criativas, pois à época das filmagens as informações disponíveis sobre o serial killer ainda eram restritas. A base de suas informações se restringia às matérias dos jornais e TVs. O restante da história era preenchido pela imaginação criativa do roteiro. Isto explica algumas liberdades como apresentar a personagem Becky como irmã de Otis, quando na verdade ela era sua sobrinha. Mas, sem dúvida, transformá-la em irmã agregou elementos extras potencialmente explosivos à relação dos três personagens.

Henry foi o segundo filme do diretor John McNaughton, que posteriormente fez a comédia Uma Mulher Para Dois (1993), com Robert De Niro, Bill Murray e Uma Thurman, e o thriller erótico Garotas Selvagens (1998), com Kevin Bacon, Matt Dillon e Neve Campbell.


(Texto originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em março de 2017)

Jorge Ghiorzi