quarta-feira, 12 de março de 2025

Better Man – A História de Robbie Williams: o lado B do sucesso

 

Os anos 90 foram marcados pela proliferação das boy bands, fenômeno que conquistou o mundo da música e deixou um legado nostálgico. Algumas dessas bandas alcançaram o topo das paradas musicais e lotaram estádios ao redor do globo, tornando-se ícones de uma geração. Hoje, são lembradas com carinho por fãs que, em muitos casos, já são adultos e até pais de família. Grupos como Backstreet Boys, *NSYNC, New Kids on the Block e One Direction viveram o auge do sucesso, mas também enfrentaram o inevitável declínio que acompanha a fama meteórica.

As meninas também tiveram seu espaço nesse cenário. No Reino Unido, as Spice Girls surgiram como um furacão cultural, redefinindo o conceito de girl power e rivalizando em popularidade com outro fenômeno britânico que conquistou o mundo: o Take That. Foi nesse contexto de ascensão e queda, de glória e desafios, que histórias como a retratada no filme Better Man ganham vida, oferecendo um olhar sobre os bastidores da fama e os sacrifícios que ela exige.

Artista mais destacado do Take That em sua formação original, Robbie Williams ganhou uma projeção que inevitavelmente incomodou a vaidade dos demais participantes do grupo. Então, o inevitável aconteceu: Robbie foi gentilmente convidado a sair. Foi nesse momento que começou a fase de maior sucesso de sua carreira, quando ele se lançou como cantor e compositor solo. Rapidamente, tornou-se o maior astro da música britânica e um dos maiores nomes da cena pop mundial. A cinebiografia Better Man – A História de Robbie Williams (Better Man, 2024) conta essa trajetória de uma maneira que você nunca viu, recriando o artista como um macaco, e não como um ser humano.

À primeira vista, a história de Robbie Williams parece seguir um arquétipo familiar no universo das cinebiografias de superastros da música: a ascensão meteórica, os excessos do estrelato, as batalhas contra os vícios e a busca por redenção. Em outras mãos, essa narrativa poderia resultar em um filme trivial e previsível, mais um retrato convencional de fama e decadência. No entanto, Better Man escapa dessa armadilha ao introduzir uma inovação audaciosa: a substituição do artista de carne e osso por um macaco gerado por CGI. Essa escolha surreal e simbólica não apenas desafia as expectativas do público, mas também liberta a narrativa dos limites convencionais do gênero.

Consta que a ideia de utilizar a figura de um macaco surgiu nos momentos iniciais do projeto, quando o realizador questionou Robbie Williams sobre qual animal melhor o representava ou com qual ele mais se identificava. O resultado dessa pergunta está na tela. O macaco, como uma figura fantástica e quase onírica, permite explorar a psique de Williams de maneira mais livre e metafórica, transformando a cinebiografia em uma experiência visual e emocional que transcende a mera reconstituição de fatos. É como se o filme dissesse que, para entender a complexidade de um ícone pop, é necessário ir além da realidade — adentrar o reino da fantasia, onde os conflitos internos e as verdades mais profundas podem ser revelados de forma mais vívida e impactante.

O conceito que sustenta Better Man é, ao mesmo tempo, inovador, desafiador e disruptivo. Em um gênero frequentemente marcado por narrativas que glorificam o ego e a mitologia pessoal de artistas famosos, este filme opta por um caminho inverso e surpreendente. Em vez de mergulhar na exposição convencional da imagem pública de Williams, o filme suprime a estética e o simbolismo tradicionalmente associados ao artista. A ausência de sua figura reconhecida — seja por meio de imagens de arquivo ou reconstituições — é uma escolha audaciosa que convida o espectador a refletir sobre a persona versus a pessoa, o mito versus a realidade. Essa abordagem não apenas desafia as expectativas do público, mas também expande os limites do que uma cinebiografia costuma ser, priorizando a introspecção e a humanidade em detrimento de uma simples celebração do estrelato.

Os números musicais e a exploração do universo interior de Robbie Williams proporcionam os momentos mais memoráveis e visualmente espetaculares de Better Man. Aqui, o adjetivo "espetacular" se justifica plenamente: trata-se de uma experiência que encanta o olhar, com um sedutor espetáculo de cores, luzes, movimento e encenação. Essas sequências, repletas de energia e inventividade, ecoam as origens britânicas do artista, remetendo em certa medida ao cinema lisérgico e psicodélico do “malucão” conterrâneo Ken Russell, um dos cineastas mais ousados e visionários da Inglaterra. Não é difícil traçar uma conexão entre a estética exuberante de Russell — conhecido por suas narrativas alucinadas e visuais extravagantes em filmes como Tommy e Os Demônios — e a abordagem do diretor australiano Michael Gracey, que parece ter bebido dessa fonte para criar cenas que transcendem a simples biografia e mergulham no universo sensorial e emocional de Williams.

O mergulho de Robbie Williams em sua biografia, apesar de sua condição de produtor executivo e colaborador do roteiro, está longe de ser um mero exercício de ego trip ou uma celebração autocomplacente de sua carreira. Seu propósito transcende a simples glorificação pessoal, revelando-se mais profundo e introspectivo. Williams parece genuinamente disposto a se expor diante das câmeras com uma honestidade rara, na plenitude de sua humanidade e vulnerabilidade. Ele não hesita em revelar suas falhas de caráter, suas fraquezas e os momentos de derrocada causados pelos vícios que quase destruíram sua vida e carreira. Better Man funciona, assim, como uma espécie de sessão de terapia coletiva, na qual o artista se submete a uma autoanálise pública, sem censura ou medo de julgamentos. Essa abordagem corajosa não apenas humaniza Williams, mas também convida o público a refletir sobre suas próprias lutas e imperfeições, transformando o filme em um espelho tanto para o artista quanto para quem o assiste.

Apesar de Better Man ser uma cinebiografia não convencional, estrelada por um personagem ‘macaco’, esse fato não exige demasiada suspensão de descrença por parte da plateia. Tudo flui com naturalidade e incrível verossimilhança. Não há estranhamento, e o conceito é rapidamente aceito, integrando-se naturalmente à narrativa. A essência do filme está em outro local: na análise fria e humana dos desafios que uma vida de fama e sucesso exigem de um artista. Original e ousado, Better Man é um espetáculo. E isso é tudo que poderíamos querer.

Assista ao trailer: Better Man – A História de Robbie Williams


Jorge Ghiorzi

Membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e ACCIRS (Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul)

Contato: janeladatela@gmail.com  /  jghiorzi@gmail.com

@janeladatela


quarta-feira, 5 de março de 2025

O Macaco: brinquedo assassino

 

Adaptado de um conto de Stephen King, O Macaco (The Monkey), com direção de Osgood Perkins (do recente Longlegs), é uma experiência cinematográfica que mergulha o espectador em uma narrativa que oscila entre o horror visceral, o humor negro e uma reflexão sobre a morte e o trauma herdado. Perkins constrói uma montanha-russa emocional, capaz de provocar risos, choques e sim, uma diversão insana.

A cena de abertura já é um exemplo da forma como o filme pretende estabelecer sua atmosfera. Um piloto de avião sério e confiável, introduz a ameaça do macaco com uma tensão genuína. A sequência é eletrizante: alguém é morto e o piloto se envolve em uma batalha feroz com o brinquedo amaldiçoado, gritando na noite enquanto o macaco revela sua natureza maligna. Essa introdução, repleta de energia bizarra, prepara o terreno para o que está por vir, deixando o espectador com o queixo no chão antes mesmo do título aparecer na tela.

Quando a história avança para a Nova Inglaterra dos anos 1990, o macaco ressurge, desta vez para assombrar os filhos gêmeos do piloto, Hal e Bill Shelburn, interpretados por Theo James em um duplo papel. Aqui, o filme explora o fino véu entre a vida e a morte, usando o brinquedo como uma metáfora para o trauma familiar. Hal e Bill representam duas formas distintas de lidar com a perda e o medo: Hal, mais introspectivo e fechado, luta para se conectar com seu filho Petey (Colin O'Brien), enquanto Bill é o irmão mais extravagante e caótico, cuja paranoia e desenvolvimento interrompido são retratados com uma dose de humor negro. A escolha de figurino de Bill, inspirada no Superman, é um toque genial que adiciona camadas ao personagem, ao mesmo tempo que provoca risos e reforça a fragilidade humana diante da morte.

No entanto, o filme não é imune a tropeços. A transição para o foco nos irmãos Shelburn é um pouco abrupta, e nenhum dos dois personagens é apropriadamente desenvolvido. Eles funcionam mais como arquétipos — Hal como a representação da luta interna e Bill como o caos externo —, o que pode deixar o espectador desejando uma exploração mais rica de suas motivações. Ainda assim, Theo James entrega performances sólidas, trazendo vulnerabilidade e charme aos papéis, o que mantém o público investido na jornada dos irmãos para deter o macaco.

Um dos aspectos mais interessantes de O Macaco é sua abordagem ao tema do trauma herdado. O filme vai além das cicatrizes emocionais, transformando o trauma em uma força sobrenatural tangível, personificada pelo macaco. O brinquedo não é apenas um objeto amaldiçoado, mas um símbolo do legado sombrio deixado pelo pai de Hal e Bill, que abandonou a família e, de certa forma, passou adiante o fardo do medo e da morte. Essa conexão entre gerações é reforçada pela relação de Hal com seu filho Petey, criando uma cadeia traumática de custódia que questiona como o mal se perpetua através das famílias.

O diretor Osgood Perkins demonstra habilidade ao equilibrar os elementos de terror com uma narrativa emocionalmente carregada. Ele entende as necessidades centrais da história e extrai seus temas de maneira eficaz, sem perder de vista o entretenimento. O macaco, como antagonista, é ao mesmo tempo assustador e fascinante, um instrumento de destruição que desafia os personagens a confrontarem seus medos mais profundos. A trilha sonora e a fotografia sombria complementam a atmosfera opressiva, enquanto as cenas de violência são coreografadas com um impacto visceral que não deixa espaço para indiferença.

O Macaco pode ser considerada uma boa adaptação do conto de Stephen King, que não costuma ser muito feliz nas adaptações de suas obras. O filme se destaca pela atmosfera claustrofóbica e sombria, que amplificam a tensão. A direção consegue criar cenas perturbadoras, embora se renda a algumas convenções e clichês do gênero. O elenco entrega performances sólidas, mas o roteiro peca por desenvolvimentos previsíveis e explicações excessivas, que diminuem o impacto do mistério, problemas que Osgood Perkins já havia apresentado no seu filme anterior, o já citado Longlegs. A trilha sonora, no entanto, é um ponto alto, elevando os momentos de suspense. No geral, O Macaco é uma experiência prazerosa para os fãs de terror, mas que poderia ter encontrado maior relevância caso houvesse explorado com mais profundidade sua premissa original.

Assista ao trailer: O Macaco


Jorge Ghiorzi

Membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e ACCIRS (Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul)

Contato: janeladatela@gmail.com  /  jghiorzi@gmail.com

@janeladatela