A sabedoria de um
conhecido provérbio decreta que quem é “feliz no jogo” necessariamente será
“infeliz no amor”. E vice-versa. Ou seja, não podemos possuir todos nossos
sonhos. Algo se perde pelo caminho. O destino, portanto, pode estar sendo
decidido sobre o veludo verde de uma mesa de carteado, ou no giro de uma
roleta. Ou não. A sorte está lançada.
Estas questões
estão no centro da narrativa de A Baía dos Anjos (La Baie des Anges) dirigido pelo francês
Jacques Demy em 1962. O universo dos cassinos e seus obstinados frequentadores
faz pano de fundo para a história de duas almas desgarradas de seus vínculos
familiares que encontram na adrenalina das apostas uma razão para viver. Até
que o amor entra no jogo das emoções e as apostas ficam mais arriscadas. Ou
quebram a banca, ou quebram o coração.
Jean (Claude
Mann), funcionário de banco entediado com a rotina do trabalho, tem uma vida
solitária e aborrecida com o pai, com quem tem uma relação conflitada. Por
sugestão de um colega de trabalho, apostador costumaz, Jean é induzido a entrar
no mundo dos jogos em busca de um pouco de emoção e dinheiro fácil. No cassino ele conhece Jackie (Jeanne Moreau), uma
parisiense de meia idade que abandonou marido e filhos para se aventurar no
vício das roletas em Nice, vizinha de Cannes, na Riviera francesa. Sem planos
definidos para o futuro, os dois encontram interesses comuns e mergulham de
cabeça na orgia do perde e ganha dos jogos, arriscando tudo como se não
houvesse amanhã. Aos poucos, no entanto, cresce uma paixão que vai além das
mesas dos jogos.
Filmes
sobre o vício dos jogos costumam contar histórias de excessos, limites, riscos
e superação. Mostram personagens em situações limite, beirando a
autodestruição, cuja jornada de aprendizado acaba por representar um
renascimento. Uma vida nova concebida a partir de uma expiação ética e/ou
moral. O filme de Jacques Demy segue por esta trilha, introduzindo porém outro
elemento catalisador com poder de transformação: a paixão amorosa.
O
personagem Jean é um homem frágil, em busca de sentido para a vida. Um homem em
reconstrução. Simbólica para esta compreensão é sua imagem refletida em uma
série de espelhos, no corredor de entrada do cassino. Imagem de uma
personalidade fragmentada aspirando sua integralidade.
Por sua vez, a
personagem Jackie exala autoconfiança e
controle. Ao menos na superfície de sua personalidade. Um sentido de autodefesa
reprime a verdadeira Jackie, uma mulher em crise que rompe laços familiares em
nome de uma libertação ilusória. Jackie é tão ou mais frágil que Jean, na
medida em que não reconhece suas contradições. Esteticamente esta bipolaridade
fica expressa no figurino da personagem, que alterna as cores branco (anjo?) e
preto, conforme os estados da alma da personagem.
Filme
de forte teor existencialista, seguindo uma certa tendência do cinema francês, A Baía dos Anjos apresenta personagens que parecem dialogar mais com seu próprio interior do que com os
interlocutores. Falam e verbalizam mais para si do que para o outro. Isto
inevitavelmente se reflete nas interações frias entre os personagens, ainda que
imersas no fogo das paixões. As relações amorosas do casal são marcadas por uma
quase total ausência de sentimentalismo, mas sempre elegantes. Um encontro
desesperado de dependentes, quase uma fuga de vidas frustradas. Jackie carrega
a culpa do abandono do marido e filhos, e Jean é assombrado pelo fantasma do
pai repressor. O que falta em fogo e paixão no romance dos dois, sobra em
reflexão e análise.
O
final conciliador de A Baía dos Anjos
revela o desconforto de Jacques Demy em abandonar seus personagens à própria
sorte. A vida é um jogo. Às vezes perdemos. Às vezes ganhamos. Se na vida real
não temos controle do destino, na vida da ficção podemos idealizar e conciliar
nossos sonhos. E a roda da fortuna volta a girar, até a próxima aposta.
Ainda que o início
da carreira de Jacques Demy tenha ocorrido no período de surgimento da Nouvelle
Vague, o fato é que o cineasta passou relativamente ao largo do movimento.
Cineasta de perfil mais acadêmico, Demy não tinha especial interesse em romper
com a chamada narrativa clássica. Sua filmografia revela um realizador mais
afeito a contar histórias com personagens interessantes do que contestar o status quo de um cinema tradicional.
La La Land, o neon-musical de Damien Chazelle,
que vem encantando multidões, buscou um pouco de inspiração num dos maiores
sucessos da carreira de Jacques Demy, quem diria. Vencedor da Palma de Ouro no
Festival de Cannes, o musical Os
Guarda-Chuvas de Amor, com Catherine Deneuve, lançado em 1964, revolucionou
o gênero tipicamente hollywoodiano. Nada mal para um cineasta clássico como
Jacques Demy.
Assista o trailer: A Baía dos Anjos
(Texto
originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em fevereiro de
2017)