sábado, 7 de maio de 2022

De Olhos Abertos


 

por Alexandre Derlam


De Olhos Abertos

“Quando os integrantes do Boca se reúnem, eles formam uma roda. Ninguém fica na frente ou atrás de ninguém. Todos podem se olhar nos olhos da mesma distância. Em 18 anos de vida, passamos por muita coisa juntos. JUNTOS, essa é a palavra que nos define...”.

Este texto é apresentado na abertura do documentário De Olhos Abertos. A cena em questão é uma reunião das pessoas em situação de rua que produzem e vendem o seu próprio jornal, o “Boca de Rua”, único no mundo. Os participantes formam uma roda e a jornalista Rosina Duarte, uma das criadoras do Boca de Rua, compartilha o texto em voz alta. Rosina exerce um papel como figura central na história. Em suas conversas com o grupo vamos conhecendo os moradores de rua integrantes do Boca. Um misto formado por relatos, registros da vida e até da rotina destes moradores e suas representações. Manifestações contundentes e reveladoras. Com potencial para nos fazer pensar: Como a gente os vê? De onde a gente olha? Quais relações criamos e como reagimos?


A narrativa se apoia nos depoimentos e olhares dos integrantes do Boca de Rua. Suas impressões sobre a cidade, o cotidiano e o valor do trabalho realizado com o jornal. Junto aos depoimentos e conversas, está a constante observação da câmera. Acompanhando os moradores pelas ruas. Enquanto oferecem o jornal, dormem, brincam e se alimentam. Vemos repetitivamente calçadas e seus buracos. Lages quebradas numa demonstração de abandono. Durante as reuniões todos são participantes ativos. Discutem e debatem os temas definindo as escolhas de pautas, matérias e fotos. Conferem e aprovam capas e edições. De forma democrática e participativa, cabendo sempre a Rosina mediar as conversas e desavenças.  Há espaço para contestação e indignação. Mas as regras estabelecidas são cumpridas. Alguns dos personagens ganham mais evidência. Seja na eloquência de seus relatos e pensamentos (caso específico de Anderson). Ele se inscreveu no vestibular da UFRGS e foi aprovado. Inteligente e questionador, Anderson se destaca entre os depoimentos ao longo dos 112 min de projeção.

Há também um simpático e diplomático candidato a vereador. O camarada é um sonhador como ele mesmo diz. Seus recursos de oratória e visual caprichado (o tempo todo vestindo blaser e gravata) conferem uma certa nobreza, espontaneidade e bom humor. A propósito o alto astral está presente em boa parte do filme. Uma empatia natural que emana da tela. E este é apenas um entre outros pontos positivos da produção. Capaz de dar voz a todos e todas com sensibilidade, carinho e respeito (sem apelar a vitimismo ou fazer uso de dados assistenciais ou sentimentais) e sim dialogando com o espectador. Permitindo suas reações e reflexões.


Em uma dinâmica com fluência de imagens e som. De Olhos Abertos possui dois fundamentos muito importantes e que podem ser identificados com uma observação mais próxima. A montagem é assinada pela diretora Charlotte Dafol e por Alfredo Barros. Sendo coerente e precisa. Alfredo é um nome conhecido e atuante no meio cinematográfico. Um montador experiente que também atua como professor de cinema. Uma outra atração a parte é a trilha sonora a cargo do trio de compositores Rafael Sarmento, Marcelo Cougo e Paulo Bettanzos. Além de funcionar organicamente, fornece ritmo e contagia a plateia, colaborando nas passagens e transições ao longo da projeção. Sem esquecer a contribuição do trabalho de desenho de som realizado por Juan Quintáns.


O filme vem construindo uma carreira significativa com sessões culturais, sociais e principalmente obtendo justa notoriedade e reconhecimento em premiações. Foi selecionado em diversos festivais nacionais e internacionais. Fruto da proximidade e entrosamento da diretora com os entrevistados. Da capacidade de demonstrar uma visão intima de classe. Se por um lado De Olhos Abertos não apresenta experimentação com a linguagem, suas boas escolhas são acessíveis e familiares ao público. Como resultado principal, o filme nos devolve um pouco da esperança e da crença em espaços sociais onde possamos coexistir. Com mais coletividade e sendo plurais.