por Alexandre Derlam
De Olhos Abertos
“Quando os integrantes
do Boca se reúnem, eles formam uma roda. Ninguém fica na frente ou atrás de
ninguém. Todos podem se olhar nos olhos da mesma distância. Em 18 anos de vida,
passamos por muita coisa juntos. JUNTOS, essa é a palavra que nos define...”.
Este texto é apresentado na
abertura do documentário De Olhos Abertos. A cena em questão é
uma reunião das pessoas em situação de rua que produzem e vendem o seu próprio
jornal, o “Boca de Rua”, único no mundo. Os participantes formam uma roda e a
jornalista Rosina Duarte, uma das criadoras do Boca de Rua, compartilha o texto
em voz alta. Rosina exerce um papel como figura central na história. Em suas
conversas com o grupo vamos conhecendo os moradores de rua integrantes do Boca.
Um misto formado por relatos, registros da vida e até da rotina destes
moradores e suas representações. Manifestações contundentes e reveladoras. Com
potencial para nos fazer pensar: Como a gente os vê? De onde a gente olha? Quais
relações criamos e como reagimos?
A narrativa se apoia nos
depoimentos e olhares dos integrantes do Boca de Rua. Suas impressões sobre a
cidade, o cotidiano e o valor do trabalho realizado com o jornal. Junto aos
depoimentos e conversas, está a constante observação da câmera. Acompanhando os
moradores pelas ruas. Enquanto oferecem o jornal, dormem, brincam e se
alimentam. Vemos repetitivamente calçadas e seus buracos. Lages quebradas numa
demonstração de abandono. Durante as reuniões todos são participantes ativos.
Discutem e debatem os temas definindo as escolhas de pautas, matérias e fotos.
Conferem e aprovam capas e edições. De forma democrática e participativa, cabendo
sempre a Rosina mediar as conversas e desavenças. Há espaço para contestação e indignação. Mas
as regras estabelecidas são cumpridas. Alguns dos personagens ganham mais
evidência. Seja na eloquência de seus relatos e pensamentos (caso específico de
Anderson). Ele se inscreveu no vestibular da UFRGS e foi aprovado. Inteligente
e questionador, Anderson se destaca entre os depoimentos ao longo dos 112 min
de projeção.
Há também um simpático e
diplomático candidato a vereador. O camarada é um sonhador como ele mesmo diz.
Seus recursos de oratória e visual caprichado (o tempo todo vestindo blaser e
gravata) conferem uma certa nobreza, espontaneidade e bom humor. A propósito o
alto astral está presente em boa parte do filme. Uma empatia natural que emana
da tela. E este é apenas um entre outros pontos positivos da produção. Capaz de
dar voz a todos e todas com sensibilidade, carinho e respeito (sem apelar a
vitimismo ou fazer uso de dados assistenciais ou sentimentais) e sim dialogando
com o espectador. Permitindo suas reações e reflexões.
Em uma dinâmica com fluência
de imagens e som. De Olhos Abertos possui
dois fundamentos muito importantes e que podem ser identificados com uma
observação mais próxima. A montagem é assinada pela diretora Charlotte
Dafol e por
Alfredo Barros. Sendo
coerente e precisa. Alfredo é um nome conhecido e atuante no meio
cinematográfico. Um montador experiente que também atua como professor de
cinema. Uma outra atração a parte é a trilha sonora a cargo do trio de
compositores Rafael Sarmento, Marcelo Cougo e Paulo Bettanzos. Além de
funcionar organicamente, fornece ritmo e contagia a plateia, colaborando nas
passagens e transições ao longo da projeção. Sem esquecer a contribuição do
trabalho de desenho de som realizado por Juan Quintáns.
O filme vem construindo uma
carreira significativa com sessões culturais, sociais e principalmente obtendo
justa notoriedade e reconhecimento em premiações. Foi selecionado em diversos
festivais nacionais e internacionais. Fruto da proximidade e entrosamento da
diretora com os entrevistados. Da capacidade de demonstrar uma visão intima de
classe. Se por um lado De Olhos Abertos
não apresenta experimentação com a linguagem, suas boas escolhas são acessíveis
e familiares ao público. Como resultado principal, o filme nos devolve um pouco
da esperança e da crença em espaços sociais onde possamos coexistir. Com mais
coletividade e sendo plurais.