segunda-feira, 14 de maio de 2018

“Lili Marlene”: a canção que uniu uma nação


A Alemanha conviveu com os fantasmas da Segunda Guerra Mundial por cerca de três décadas até abordar abertamente o tema no cinema. Neste período de cicatrização dos traumas e reconstrução do país, um grupo de novos cineastas alemães (nascidos justamente no período da guerra) assumiu o compromisso de fazer este reencontro nas telas com o passado. O movimento do Novo Cinema Alemão reuniu um grupo de realizadores intelectualizados e cinéfilos. Coube a eles este acerto de contas com sua própria história, sempre com o pesado olhar crítico da primeira geração que viveu as consequências diretas da guerra.

Um dos primeiros filmes alemães a tratar diretamente do papel do país no conflito mundial, sem qualquer traço de ufanismo mal disfarçado, foi a superprodução Lili Marlene (Lili Marleen, 1981) dirigida pelo enfant terrible do movimento, o intenso e prolífico Rainer Werner Fassbinder (1945 – 1982). Projeto de encomenda de um poderoso produtor alemão, o longa-metragem mirou o mercado global, o que justifica as filmagens em inglês (posteriormente o filme foi dublado em alemão) e a presença de elenco internacional. O longa-metragem foi, em sua época, o mais caro já produzido no país. Com orçamento generoso e sua a exuberância de cenografia, figurino e direção de arte, Lili Marlene destoa da escassez habitual de recursos com as quais Fassbinder sempre se defrontou em seus projetos mais pessoais, muitos deles nos limites de uma produção amadora, ainda assim criativas e íntegras como realização artística de qualidade diferenciada.


A narrativa de Lili Marlene se constrói a partir do confronto entre política e arte, entre ideologia e entretenimento, e como estes dois campos se atraem, se repelem, mas, invariavelmente, se valem um do outro para alcançar seus objetivos. Uma comunhão de interesses num momento histórico peculiar de uma Alemanha utópica, à beira da catástrofe.

Lili Marlene coloca no protagonismo uma mulher forte e poderosa, fato recorrente na filmografia de Fassbinder. Basta lembrarmos de Petra Von Kant, Veronika Voss, Lola e Maria Braun. O filme é baseado na autobiografia da cantora Lale Andersen e seu romance com o músico Rolf Liebermann, tendo como pano de fundo a trajetória de sucesso da famosa canção “Lili Marlene”.

No filme Lale e Rolf foram rebatizados como Willie (interpretada pela musa de Fassbinder, Hanna Schygulla) e Robert Mendelsson (o italiano Giancarlo Giannini). Às vésperas da Segunda Guerra Mundial, ambos vivem um romance idílico em Zurique, na Suíça. Ele é boêmio judeu, de família rica e tradicional. Ela é alemã, cantora de cabaré. A família de Robert é contra o relacionamento dos dois. Após retornarem de uma viagem à Alemanha, Willie é impedida de cruzar a fronteira e retornar à Suíça. O casal acaba se separando, graças a uma trama bem sucedida do pai de Robert, o poderoso David Mendelson (Mel Ferrer).


Sozinha na Alemanha, que vivia o período de ascensão do partido Nazista ao poder, Willie volta a cantar na noite de Berlim, onde conhece Henkel, um ambicioso comandante nazista. Com a ajuda do novo amigo e admirador, Willie grava um disco com a canção “Lili Marlene”. Para surpresa de todos a música se torna um inesperado e estrondoso sucesso entre as tropas alemãs no campo de batalha, já com a guerra em pleno andamento. A notoriedade repentina torna Willie uma estrela. Famosa e popular, ela recebe os privilégios do poder, chegando inclusive a encontrar pessoalmente Adolph Hitler, a pedido dele próprio. O propósito é utilizá-la como um símbolo do regime nazista. Inconformado com o destino de sua amada, Robert decide cruzar a fronteira para uma perigosa missão de resgate.

O conceito de melodrama é muito flexível e se adapta a muitas situações. Mas Fassbinder propõe uma definição certeira quando diz que melodrama é essencialmente uma história sobre pessoas. E é exatamente disso que se trata Lili Marlene. Um olhar fechado sobre a paixão interrompida entre dois amantes em meio ao fantasma do nazismo que se insinua sorrateiramente na sociedade até o golpe final da conquista que coloca uma nação de joelhos.


Ainda que o roteiro avance aos solavancos, as interpretações beirem ao teatral (reverência estética de Fassbinder aos palcos do início da carreira) e a montagem descontinuada perturbe o entendimento de certas passagens, o certo é que o realizador sabe exatamente as feridas que deve cutucar. Um país remoendo suas culpas se viu frente a frente com um passado que condena.

O sucesso da canção “Lili Marlene” foi um daqueles acasos da natureza. A melodia é triste e a letra contradizia os ideais da luta nacional socialista. Segundo o Ministro da Propaganda nazista, Joseph Goebbels, o final mórbido da canção não inflamava o patriotismo, por esta razão ele a chamava de “besteira com cheiro de morte”. Mas o líder nazista, fazendo jus ao título de “gênio do mal”, soube perceber o poder e o apelo da música nos corações e mentes das tropas alemãs (e dos aliadas também, diga-se). O poder de convencimento da palavra, e da arte em especial, pode mover montanhas e conquistar mentes quando utilizada com propósitos nefastos.

Assista o trailer: Lili Marlene

(Texto originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em maio de 2017)

Jorge Ghiorzi

terça-feira, 1 de maio de 2018

“Arabesque”: mistério e bom humor


Os anos 60 foram o paraíso para as histórias de espionagem na ficção, seja na literatura ou no cinema. Nada a estranhar, afinal, vivia-se àquela época o auge da Guerra Fria entre as grandes potências, EUA e URSS. Aqueles foram tempos de surgimento e afirmação de autores célebres como Ian Fleming (“007”) e John Le Carré, cujas obras foram rapidamente adaptadas para o cinema. Sabidamente o mais celebrado dos espiões da ficção foi, e continua sendo, James Bond, verdadeiro ícone e inspiração para histórias do gênero há mais de 50 anos. O estrondoso sucesso dos filmes com as aventuras de 007 mostraram um caminho a ser seguido e serviram de modelo para uma séria de outras produções.

Um dos títulos que seguiu à risca este caminho foi a comédia de suspense Arabesque (Arabesque, 1966), dirigida pelo versátil Stanley Donen, responsável por clássicos estimados como Cantando na Chuva (1952) e Sete Noivas para Sete Irmãos (1954), e fracassos como Os Aventureiros do Lucky Lady (1975) e Feitiço do Rio (1984), seu último trabalho, parcialmente filmado no Rio de Janeiro.


Arabesque é sim um filhote dos filmes de James Bond, e para não deixar dúvidas sobre qual foi a fonte de inspiração, o longa de Stanley Donen já abre com créditos animados muito semelhantes, para não dizer iguais, aos dos filmes de 007. E isto tem uma explicação: o próprio criador das aberturas das aventuras do agente, o artista gráfico e designer Maurice Binder, foi convidado para animar também a abertura de Arabesque.

Mas, além de alguns outros aspectos básicos de uma narrativa de suspense tradicional, as semelhanças acabam por aí. A destacar a diferença fundamental do perfil do protagonista. Enquanto James Bond é um cara destemido, sedutor, bom de briga e obstinado, o herói de Arabesque é um sujeito pacato, desencanado, vacilante e um pouco atrapalhado, que acaba jogado no meio de uma conspiração internacional.

Este herói involuntário é o professor David Pollock (Gregory Peck), um especialista em hieróglifos arábicos da Universidade de Oxford. Graças a esta habilidade ele é recrutado pelo primeiro-ministro de um país do Oriente Médio para decifrar uma mensagem que pode revelar uma trama de assassinato. Para cumprir a missão, que aceita a contragosto, Pollock se infiltra na organização de um oponente do primeiro-ministro. Lá conhece a bela Yasmin Azir (Sophia Loren), que também parece interessada em resolver o mistério, que acaba se tornando sua aliada. Juntos precisam decifrar o enigma, escapar dos inimigos e evitar um atentado ao primeiro-ministro.


O professor Pollock encarna uma espécie de precursor do futuro professor especialista em simbologia Robert Langdon, criação do escritor Dan Brown (“Anjos e Demônios” e “O Código Da Vinci”). Com muito mais charme e bom humor, diga-se de passagem. E aqui está um dos destaques do filme de Stanley Donen. O encantador desempenho de Gregory Peck não deixa nada a desejar a um Gary Grant, por exemplo, especialista em papéis que exigem equilíbrio entre simpatia, elegância e descontração. E, claro, não podemos esquecer da parceira de Gregory Peck. A italiana Sophia Loren, esbanjando a beleza e sedução, também não deixa a desejar em seu papel de espiã / agente duplo dissimulada, digna das femmes fatales do cinema noir. A bela Yasmin Azir faz a cabeça e tira do prumo a fleuma britânica do professor Pollock, constantemente em dúvida sobre as verdadeiras intenções e objetivos de sua companheira de aventura. Em dado momento ele questiona: “Por que é sempre tão difícil acreditar em você?”.

A trama de Arabesque se movimenta a partir do clássico artifício de um “MacGuffin” (aquele objeto que todos desejam e deve ser encontrado a qualquer custo), que no caso é um pequeno pedaço de papel com a mensagem cifrada. Mas o que vale mesmo são as perseguições, fugas e ameaças que colocam em risco os heroicos protagonistas que agem apenas para que a justiça seja feita e os maus sejam punidos. A história, que inicia como uma clássica narrativa de suspense, tipo Hitchcock, logo muda de tom e se assume abertamente como uma comédia, que em alguns momentos chega a flertar com o gênero pastelão. A cereja do bolo são os diálogos elegantes, criativos, inteligentes e cheios de segundas intenções.


Arabesque foi realizado por Stanley Donen apenas três anos após Charada, também uma comédia de suspense e mistério, estrelada por outra charmosa dupla: Cary Grant e Audrey Hepburn. Donen acertou a mão nos dois filmes, títulos bastante representativos do cinema de entretenimento dos anos 60. Ambos são filmes que se assiste com prazer e deleite, não ofendendo a inteligência do espectador. Então, apague a luz e dê o play. E não esqueça do balde de pipocas.

Assista o trailer: Arabesque

(Texto originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em abril de 2017)

Jorge Ghiorzi