quarta-feira, 17 de novembro de 2021

“Noite Passada em Soho”: sonhos e desejos em Londres


A multicolorida Londres dos anos 60 – conhecida como Swinging London - é o cenário elegante e charmoso onde transcorre grande parte do suspense psicológico Noite Passada em Soho (Last night in Soho, 2021) dirigido por Edgar Wright, o mesmo de Todo Mundo Quase Morto (2004), Scott Pilgrim Contra o Mundo (2010) e Em Ritmo de Fuga (2017). Naquele período específico a capital inglesa era a capital cultural do mundo e ditava a moda mais transgressora nos costumes, na música e no figurino dos moderninhos da época.

A protagonista Eloise Turner (a neozelandesa Thomasin Harcourt McKenzie, vista recentemente em Tempo do Shyamalan) representa muito bem o espírito daqueles tempos, ainda que a narrativa transcorra nos dias atuais. Estudante de Moda, fortemente inspirada pela estética e o estilo da sessentista, Eloise vai morar no descolado bairro do Soho, em Londres, para finalizar os estudos e iniciar carreira como estilista. Sozinha em seu quarto ela passa a ter sonhos e visões onde conhece a aspirante a cantora Sandie (Anya Taylor-Joy) com a qual se identifica de forma idealizada a ponto de torna-se quase um duplo aspiracional. Ela é tudo que Eloise desejava ser na intimidade: forte, livre, independente, voluntariosa e sexualmente liberada.


O que se segue é uma história que transita entre gêneros distintos. Inicialmente o que parece ser um pequeno drama juvenil sobre escolhas profissionais, lá pelas tantas vira a chave e se transforma em um thriller que flerta com o horror. São dois lados de uma mesma moeda. A Londres alegre e descontraída também possui suas áreas escuras e violentas. O mesmo ocorrendo em relação às personagens protagonistas, a real e a “ficcional”. Por trás dos sonhos mais inocentes por vezes se escondem os pesadelos mais terríveis. E é justamente esta dura realidade que Eloise tem que lidar em sua jornada pela cidade grande.

Personagens anacrônicos, que invariavelmente destoam do tempo e espaço onde estão inseridos, não são exatamente uma novidade nos filmes de Edgar Wright. Foi assim, por exemplo, em Scott Pilgrim e Em Ritmo de Fuga. Mais uma vez esta abordagem se faz presente em Noite Passada em Soho. A jovem Eloise Turner, uma personagem deslocada em busca de seu lugar no mundo, se refugia no terreno da fantasia, recriando um mundo particular que mistura sonhos e desejos, o real e o imaginário.


Esteticamente belo, com cenografia e fotografia elaborada, Noite Passada em Soho enche os olhos pela recriação de uma época particularmente marcada pelo estimulante apelo visual, que, convenhamos, soa nostálgico – mas fascinante - na maior parte das vezes. A trilha sonora, recheada com canções de sucesso da mais genuína brit music dos anos 60, faz a apropriada contextualização e transporta o espectador pelo túnel do tempo.

Em sua segunda metade o thriller se aproxima de um autêntico “giallo italiano”, com sotaque inglês, que ecoa o mestre Mario Bava, não apenas pela temática de crime, mas particularmente pelo uso massivo de cores vibrantes, especialmente o vermelho e azul, sempre ostensivos e contrastados.


Noite Passada em Soho é um filme dividido, sob diversos aspectos: na temática, na ambientação, nos gêneros, nas protagonistas. O que poderia ser sua fortaleza na verdade configura sua grande fragilidade como narrativa. A fruição estética proposta por Edgar Wright não passa de um deleite visual sem o devido suporte de um roteiro que realmente convença o espectador. Longe (muito longe) de fazer feio, o fato é que ao longo dos anos, com o devido distanciamento do seu tempo de realização, Noite Passada em Soho talvez venha a ser relembrado como um filme cult, ou como um estimado guilty pleasure.

Anya Taylor-Joy (já vista em A Bruxa e na série da Netflix O Gambito da Rainha) é o grande destaque do elenco e confirma seu potencial como a mais promissora jovem atriz candidata a estrela de primeira grandeza. Vale lembrar que o filme de Edgar Wright marcou o ocaso da grande estrela britânica Diana Rigg, falecida logo após as filmagens.


Assista ao trailer: Noite Passada em Soho

por Jorge Ghiorzi

quarta-feira, 10 de novembro de 2021

“Querido Evan Hansen”: meu melhor super amigo

 


“Hoje vai ser um dia incrível, e eu vou dizer por quê.”

Adaptações de grandes e aclamados musicais da Broadway para o cinema não garantem necessariamente sucessos de crítica e público. A desastrosa recente versão de Cats está aí para provar que nem sempre tudo funciona como o esperado. A linguagem do palco por vezes não dialoga bem com a dramaturgia cênica que se deseja nos filmes. Portanto, há sempre um fator imponderável de adequação assombrando as adaptações de musicais para o cinema.

Em cartaz na Broadway desde 2016, o musical “Querido Evan Hansen” foi indicado a nove Tony Wards (venceu seis), incluindo Melhor Musical, Melhor Trilha Sonora, Melhor Libreto e Melhor Ator, e ainda venceu o Grammy de 2018 para Melhor Álbum de Musical. Foi com este prestígio que chegou aos cinemas a adaptação Querido Evan Hansen (Dear Evan Hansen) dirigida por Stephen Chbosky, realizador de As Vantagens de Ser Invisível (2012) e Extraordinário (2017).


"Hoje tudo o que você precisa fazer é ser você mesmo!"

Evan Hansen (Ben Platt, que também estrelou o musical na Broadway) é um adolescente sensível, retraído, solitário, com problemas de relacionamento e poucos amigos. Por sugestão de seu terapeuta ele escreve cartas para si próprio, onde expressa abertamente seus sentimentos. Por acaso uma destas cartas cai nas mãos de Connor (Colton Ryan), um garoto depressivo que acaba por cometer suicídio. Por uma série de mal-entendidos Evan passa a ser reconhecido como o “melhor amigo” do suicida. Para não decepcionar a família enlutada de Connor ele acaba assumindo a mentira, sem imaginar as terríveis consequências que teria que enfrentar em breve.

 

“Eu queria que tudo fosse diferente. Queria fazer parte de alguma coisa.”

O enredo deste drama musical trata essencialmente de problemas típicos dos jovens: inadequação social, saúde mental, relacionamentos, bullying, violência psicológica e a vida vivida no ambiente das redes sociais. Sem esquecer, claro, o grande gatilho emocional normalmente presente nas histórias que retratam o universo adolescente: o suicídio.

Querido Evan Hansen embala todos estes elementos com a leveza sentimental de um musical tradicional, onde os sentimentos dos personagens são manifestados através de canções emotivas e sensíveis. Em suas partes de encenação realista o filme de Chbosky se equilibra como um pequeno drama adolescente já visto inúmeras vezes. Já quando assume seu lado musical, com as canções “comentando” as ações, a realização encontra seus melhores momentos, ainda que por vezes cause um pequeno estranhamento no ritmo pela forma como faz esta passagem, por vezes com pouca sutileza.


Como história de superação Querido Evan Hansen dá conta do recado sem grandes sobressaltos e novidades, com direito até àquela esperada sequência catártica de discurso diante de uma plateia que explode em aplausos (já vimos isso em Extraordinário, não?).

O que talvez falte a Querido Evan Hansen seja a capacidade de nos conectar - e mesmo simpatizar - com os personagens. Há um frio distanciamento no trato com todos eles, o que não contribui para nos aproximar verdadeiramente de seus dilemas e conflitos. Parte desta falta de empatia se deve certamente aos equívocos de casting dos jovens. É flagrante que estamos diante de um elenco com faixa etária incompatível com os personagens adolescentes que deveriam representar, em especial no caso do protagonista Evan, interpretado por um competente Ben Platt, que certamente funciona muito bem no palco, mas inadequado para uma versão cinematográfica. Na parte adulta do filme vale ressaltar a presença de duas ótimas atrizes: Amy Adams (como mãe de Connor) e Julianne Moore (como mãe de Evan). 

“Atenciosamente, seu super melhor amigo: eu mesmo.”


Assista ao trailer: Querido Evan Hansen

por Jorge Ghiorzi