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quarta-feira, 2 de março de 2022

“Batman”: mais herói, menos super


O Halloween, o Carnaval dos países anglo-saxônicos, é aquela celebração pública onde somos autorizados a vestir uma fantasia e colocar uma máscara para interpretar um papel diferente daquele que vivemos no cotidiano. Não é a toa que o novo Batman (The Batman), recriado por Matt Reeves (Cloverfield – Monstro, Deixe-me Entrar e Planeta dos Macacos – O Confronto), inicie justamente em um dia 31 de outubro, Dia das Bruxas. Os mascarados, heróis e vilões, saem das sombras e barbarizam numa soturna Gotham City. Os primeiros minutos da nova aventura do cavaleiro das trevas já dão a senha: esqueça tudo que você já viu do Batman. Inicia aqui uma Nova Era para as adaptações cinematográficas do personagem.

Após uma dezena de encarnações em diferentes filmes, com diversas interpretações e distintas estéticas, tudo leva a crer que o Batman de 2022 tenha enfim chegado ao tão desejado estado da arte almejado pela Warner / DC. Com direito a bônus. O filme ainda possui potencial para disputar as estatuetas do Oscar no ano que vem, ainda que tenha sido lançado cedo demais, pois as indicações só começam a esquentar e definir-se a partir de outubro. Portanto, a Warner terá que manter o hype por vários meses.


Quando o novo projeto de uma adaptação de Batman foi anunciado há poucos anos, houve forte manifestação contrária dos fãs mais radicais, essencialmente preconceituosa, que criticaram a escolha de Robert Pattinson para substituir Christian Bale no papel de Bruce Wayne / Batman. O receio era que o forte recall de Pattinson como o frágil e insosso vampiro da franquia Crepúsculo poderia comprometer a credibilidade do personagem. Mas, com o filme na tela, a desconfiança evaporou, como se nunca tivesse existido. Pattinson encontrou o tom adequado para interpretar o Batman fatalista e amargurado proposto por Matt Reeves.

Isto no leva a outro ponto de observação. Desta vez Batman é efetivamente o protagonista que conduz a história, acompanhamos essencialmente o ponto de vista do herói, e não dos vilões, como estava se tornando certa tendência nas encarnações anteriores. Mas do que se trata este novo Batman sob o comando de Reeves? Basicamente o que temos é uma história de caça ao assassino, o mote elementar das histórias policiais de investigação. O que, convenhamos, faz total sentido com o cânone original do herói mascarado. Afinal, o homem-morcego surgiu no mundo dos quadrinhos em uma publicação chamada “Detective Comics” em 1939, e logo passou a ser conhecido como o “Melhor Detetive do Mundo” no universo das HQs. Portanto, estamos diante de um retorno à essência do personagem, um resgate de identidade.


Localizado no segundo ano após o surgimento de Batman como vigilante das ruas de Gotham City, o filme nos mostra um Bruce Wayne recluso, refugiado em sua gótica mansão. Seus poucos contatos são o ajudante de ordens, Alfred Pennyworth (Andy Serkis), e o Tenente James Gordon (Jeffrey Wright). Quando um sádico assassino serial tem como alvo a elite política da cidade, uma série de mensagens enigmáticas leva o “maior detetive do mundo” para o centro das investigações no submundo corrupto da cidade. Na jornada ele encontra personagens como Selina Kyle, também conhecida como Mulher-Gato (Zoë Kravitz), Oswald Cobblepot / Pinguim (Colin Farrell), Carmine Falcone (John Turturro) e Edward Nashton, conhecido como o Charada (Paul Dano). Batman precisa desmascarar o(s) culpado(s) e fazer justiça ao abuso de poder e à corrupção que há muito tempo assola Gotham.

Um fato flagrante que salta aos olhos neste novo Batman é a utilização comedida do CGI, o que resulta em um personagem e uma narrativa mais orgânica. O conceito de low tech também se manifesta nas bat-gadgets. O carro do Batman está mais para um Mustang tunado e a moto é praticamente convencional, bem distante da visão altamente tecnológica que Christopher Nolan mostrou na sua trilogia com naves sofisticadas, supercarros e motos com design inovador. Então, estamos diante de um Batman mais pé no chão. O contato com o chamado mundo real que vivemos é ainda espertamente reforçada com a utilização de uma canção do Nirvana que pontua o filme e cujas primeiras notas (rearranjadas pelo autor da trilha sonora, Michael Giacchino) são acordes que assinam a presença do herói mascarado. Por fim, um destaque para a maravilhosa paleta de cores do fotógrafo Greig Fraser (do recente Duna) que inclui o vermelho neon, sem comprometer o aspecto soturno e pesado da direção de arte, que por vezes nos remete a Seven de David Fincher, não por acaso um filme sobre um assassino serial.


Diferente da imensa maioria dos filmes inspirados em quadrinhos o Batman de Reeves não sucumbe à urgência de uma narrativa de caráter pop, pois tem sempre algo um tanto mais consistente a nos contar. O andamento é ritmado, pausado, expandido. Dá o tempo necessário de reflexão ao expectador e assegura robustez à construção do protagonista, com suas motivações, seus vacilos, sua ação cerebral e suas interações pessoais. Claro, sem abrir de das necessárias sequências pontuais de ação (sem excesso), afinal, trata-se de uma adaptação de quadrinhos para o cinema, e a base de fãs precisa ser contemplada com o espetáculo.


Estamos diante de um ponto de virada nas adaptações de quadrinhos? Difícil afirmar, mas a amostra é promissora. O que podemos sim reconhecer é que houve uma dose de ousadia da DC em explorar novas possibilidades e finalmente dar uma cara própria para seus filmes de (super) heróis. Com Batman (cujo título no Brasil não leva o artigo “O”) a DC ganha autoridade e personalidade com uma muito bem sucedida reinterpretação do morcego mascarado.

Assista ao trailer: Batman


Jorge Ghiorzi

Membro da ACCIRS


terça-feira, 25 de janeiro de 2022

“O Beco do Pesadelo”: quando o truque não dá certo

 

Vencedor do Oscar de Melhor Filme em 2018, com A Forma da Água, o cineasta mexicano Guillermo del Toro sempre transitou seu cinema de gênero no terreno do terror, do horror, do fantástico e da fantasia. Após quatro anos longe da direção ele retorna com O Beco do Pesadelo (Nightmare Alley), drama de suspense com toques de terror que se passa no universo circense dos shows de variedades dos anos 40 nos Estados Unidos, em plena Segunda Guerra Mundial. Baseado em um romance do escritor noir William Lindsay Gresham, o filme de del Toro na verdade é uma refilmagem de O Beco das Almas Perdidas de 1947, dirigido por Edmund Goulding, com Tyrone Power, Joan Blondell, Coleen Gray e Helen Walker no elenco.

Viajante sem rumo e passado nebuloso, Stanton Carlisle (Bradley Cooper) chega por acaso em um circo itinerante de variedades. Consegue emprego temporário como operário do show e acaba se envolvendo com a vidente Zeena e seu companheiro mentalista. Após aprender rapidamente os truques da “profissão” decide abandonar tudo para investir em carreira solo aplicando golpes por conta própria. Em um dos espetáculos conhece a misteriosa psiquiatra Lilith Ritter (Cate Blanchett), a parceira perfeita para aplicar um grande golpe contra poderoso magnata.


Personagens amorais como Stanton e Lilith se atraem como iguais. Agem como cobras num serpentário: lutam pela sobrevivência num mundo hostil enquanto buscam obsessivamente uma maneira de se dar bem. O perigo está sempre no horizonte, mas a cegueira da ambição e do golpe perfeito embaça a visão. Movidos por instintos primitivos, com desejos de poder e ganância, não encontram limites nem freios morais para alcançar seus objetivos. Nesta trilha pelo lado obscuro da vida há muito a perder. Quem deseja obstinadamente o todo, corre o risco (ou a sina) de ficar com nada, muito menos do que possuía no início da jornada. Este é o arco narrativo do trágico Stanton Carlisle, que del Toro conta com um excesso de minutagem que prejudica a coesão do resultado final.


Cate Blanchett, posando as vezes de femme fatale à la Veronica Lake, raras vezes esteve tão caricata e canastrona em cena (Indiana Jones 4 seria outro desempenho fora de tom da atriz, só para lembrar). Bradley Cooper, por sua vez, eventualmente acerta no tom farsesco do ambicioso prestidigitador, mas no geral parece um tanto contido, e o resultado geral fica aquém para o potencial de um personagem conflitado. Em papéis secundários, com poucos minutos em cena, ainda aparecem com destaque Toni Collete, como a vidente falcatrua, e Willem Dafoe defendendo com sua característica vilania dúbia a figura do responsável pelo circo.

A primeira parte O Beco do Pesadelo lembra um pouco Água Para Elefantes. Tudo limpinho demais, muito estetizado para seduzir os sentidos pela beleza das tomadas. Artifícios visuais usualmente mais adequados para um romance - que essencialmente não é - do que para um drama de suspense com trama policial que retrata a sordidez humana. O Beco do Pesadelo apresenta uma série de possibilidades e promessas infelizmente não cumpridas. O filme de Guillermo del Toro não é nem noir, nem terror, como eventualmente chega a flertar.


Desnecessariamente longo, com um primeiro ato um tanto dispersivo e desfocado, quando finalmente entramos no entrecho principal da narrativa, a paciência do espectador já está um tanto esgotada pela expectativa frustrada que construiu. O mestre da manipulação e do engodo da ficção, Stanton Carlisle, não encontrou eco no trabalho de direção de del Toro, que não consegue manipular e conquistar a credulidade da plateia conforme seus desejos. Desta vez o truque não deu certo.

Assista ao trailer: O Beco do Pesadelo


Jorge Ghiorzi

Membro da ACCIRS

quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

“Matrix Resurrections”: déjà vu


Quando chegou aos cinemas na virada de século e de milênio Matrix imediatamente foi reconhecido como um ponto de virada nos filmes de ação. Nada mais seria igual, sua influência foi definitiva em tudo que se fez depois. Produto estimado da cultura pop, o longa foi inovador nos efeitos especiais, na coreografia das lutas, na criação de referências cult e na incorporação da filosofia em um produto de massa. Além de extasiar uma legião de fãs a trilogia Matrix antecipou em uma década a sociedade mega conectada, mergulhada no uso massivo da Internet. O legado deixado pelo filme, portanto, é gigantesco.


Passados pouco mais de 20 anos – quase o tempo de uma geração – chega o momento de retomar a saga, tantas vezes adiada e, a princípio, negada pelas irmãs Lana e Lilly Wachowski, criadoras da trilogia original. Então, é com o peso deste passado que chega às telas este Matrix Resurrections, desta vez dirigido apenas por Lana como um projeto solo, sem a participação de Lilly.

A nova aventura retoma a história a partir da linha temporal deixada pelo filme anterior (Revolutions, de 2003), ainda que vinte anos tenham se passado aqui, no nosso mundo. Neo (Keanu Reeves) agora vive uma vida aparentemente comum sob sua identidade original como Thomas Anderson, atuando como um famoso criador de um videogame de sucesso, chamado... “Matrix”. Para entender as estranhas visões e percepções que tem sentido, ele se trata com um terapeuta. Para complicar um pouco mais ainda sua cabeça ele também conhece uma mulher (Carrie Anne-Moss) que muito se parece com a personagem Trinity do videogame que criou. Tudo começa fazer algum sentido para o atordoado Thomas Anderson quando encontra uma nova versão de Morpheus, que oferece a pílula vermelha que reabre sua mente para o mundo da Matrix.


Os três primeiros filmes seguiram um caminho natural de expansão do universo original, mantendo a coerência da mitologia da série. Já neste volume quatro a proposta foi equivalente a uma versão atualizada de um programa clássico, com correções de segurança, adaptação de sistema, incorporação de novas atribuições e soluções de “bugs” funcionais. Matrix Resurrections praticamente abandona as referencias místicas, religiosas e metafísicas e centra atenção apenas nos conceitos tecnológicos, incorporando de uma vez por todas a condição de um videogame.

O filme é autorreferente e indulgente com a própria mitologia que construiu na trilogia original. Dá uma zoada geral e se limita a ser – sem dramas de consciência – um produto de massa a ser consumido por uma sociedade capitalista selvagem, que tanto criticava há 20 anos. Lana Wachowski parece querer nos dizer: “Relaxem. Desencanem. Este não é um filme-cabeça. Apenas aproveitem a experiência”. Isto se evidencia com a inclusão do humor em certas passagens, como aquela onde Anderson e um executivo da companhia discutem a possibilidade – e mesmo a necessidade - de criar uma nova versão do videogame. O papo ali era direto e reto, pois se referia nas entrelinhas à própria gestação da sequência de Matrix que sofreu a pressão da Warner para que o filme finalmente fosse produzido. Alguém tem lembrança de sequer ter esboçado minimamente um sorriso com alguma sequência dos três filmes originais? Pois em Matrix Resurrection isto ocorre, com um mal disfarçado ar de cinismo blasé que ecoa por todo o filme.


Neo ainda encarna o heroico personagem do “Escolhido” que surgiu para libertar a raça humana da submissão pelas máquinas. Vale destacar, porém, que o centro narrativo e mote da nova trama criada por Lana Wachowski desta vez é a personagem de Trinity, que assume um protagonismo mais evidente.

Matrix Resurrection é claramente um filme de passagem, de reformulação para uma nova saga revigorada que inevitavelmente virá (um reboot?). Nesta retomada da história é flagrante que algo de substancial se perdeu. Não fosse toda a bagagem e o legado que carrega, o novo Matrix por muito pouco não é apenas um filme de aventura genérico. Não somos apresentados a nenhuma sequência memorável, nenhuma das sequências de luta avança além do lugar comum e as trucagens e efeitos já não surpreendem (alguém lembra do espanto que o “bullet time” criou no final do século passado?). O filme, nesta perspectiva, é suficientemente inteligente para não se levar excessivamente a sério.


Para o arco da história, talvez no futuro fosse interessante uma prequel mostrando a história do Arquiteto (criador da Matrix) e da Oráculo, e seguindo a tradição de subtítulos com a letra R (Reload, Revolutions e Resurrections) o título bem que poderia ser Matrix Rises.


Assista ao trailer: Matrix Resurrections

 

Jorge Ghiorzi

Membro da ACCIRS

segunda-feira, 20 de dezembro de 2021

“A Última Noite”: o mal está lá fora

 


Os filmes de Natal são praticamente um gênero à parte. Feitos para divertir e despertar bons sentimentos, as produções natalinas invariavelmente apostam nas comédias leves, que cumprem seu principal propósito, que é o entretenimento. Porém, por vezes aparece uma “ovelha desgarrada” (rena seria mais apropriado?) que subverte as expectativas, oferecendo uma visão bem pouco otimista e reveladora dos verdadeiros sentimentos que ficam escondidos “debaixo do tapete”. A comédia de humor mórbido A Última Noite (Silent night) é a “rena pervertida” da temporada 2021.

O casal Nell (Keira Knightley) e Simon (Matthew Goode), juntamente com seus três filhos pequenos, dentre eles Art (Roman Griffin Davis de Jojo Rabbit), reúne um grupo de amigos para juntos celebrarem o Natal em sua propriedade no interior da Inglaterra. Aquela seria uma noite de muita alegria, presentes, taças de prosecco e... revelações. O que parecia ser o final de semana perfeito aos poucos se transforma em um encontro do mais puro terror quando uma inevitável tragédia mortal está chegando naquela que seria a última noite de todos.


O longa-metragem de estreia de Camille Griffin (também autora do roteiro) se equilibra naquela difícil tarefa de modular a comédia com o cinismo que contesta o socialmente correto nas convenções interpessoais e familiares. No primeiro ato somos apresentados a um divertido grupo de personagens de bem com a vida, bem humorados e descolados. Tudo leve e descontraído. Aos poucos surgem alguns sinais de que nem tudo é o mar de rosas que se apresenta ao primeiro olhar. Algo de tenebroso se esconde no subtexto, nas revelações e nas atitudes daquela gente.

Quem nos liga o alerta é o garoto Art, visivelmente desconfortável com o que está acontecendo além das paredes daquela casa/mansão. Ele – uma criança - é a única pessoa com os olhos realmente abertos para a trágica realidade que é passivamente aceita pelos adultos. Mais do que isso, ele é o único disposto a lutar e encontrar uma saída para o inevitável destino de todos. Assim, aos poucos, descobrimos que há algo mais além de uma alegre reunião de amigos. A verdadeira motivação para aquele encontro é o momento de virada na narrativa. E o riso, antes aberto e franco, fica amarelo e engasga na garganta.


Em certa medida a trama de A Última Noite traz uma metáfora e faz uma analogia simbólica com a pandemia que assola o mundo há quase dois anos. Personagens confinados se protegem do mal que está lá fora. Difícil também não lembrar do pesado drama Melancolia, de Lars von Trier, que aprofundava os temas filosóficos da humanidade frente à possibilidade do extermínio. O filme de Camille Griffin não avança tanto na abordagem, mas não deixa de ter sua contundência, porém, sem perder a ternura. O trato do tema é mais suave – afinal, trata-se de uma comédia – onde a realizadora demonstra um afeto incontido por suas personagens, pelos quais evidencia um olhar carinhoso e compreensivo, sem julgamentos morais.

Pouco importa a origem, as razões e a história da ameaça que faz daquela noite de Natal a última noite de todos. O que o filme propõe é uma reflexão sobre nossas escolhas (pessoais e coletivas) e como agimos e reagimos em momentos extremos. A Última Noite traz leveza na abordagem de uma situação limite, conseguindo cativar a atenção e envolver a audiência.

Assista ao trailer: A Última Noite

 

Jorge Ghiorzi

Membro da ACCIRS

quarta-feira, 17 de novembro de 2021

“Noite Passada em Soho”: sonhos e desejos em Londres


A multicolorida Londres dos anos 60 – conhecida como Swinging London - é o cenário elegante e charmoso onde transcorre grande parte do suspense psicológico Noite Passada em Soho (Last night in Soho, 2021) dirigido por Edgar Wright, o mesmo de Todo Mundo Quase Morto (2004), Scott Pilgrim Contra o Mundo (2010) e Em Ritmo de Fuga (2017). Naquele período específico a capital inglesa era a capital cultural do mundo e ditava a moda mais transgressora nos costumes, na música e no figurino dos moderninhos da época.

A protagonista Eloise Turner (a neozelandesa Thomasin Harcourt McKenzie, vista recentemente em Tempo do Shyamalan) representa muito bem o espírito daqueles tempos, ainda que a narrativa transcorra nos dias atuais. Estudante de Moda, fortemente inspirada pela estética e o estilo da sessentista, Eloise vai morar no descolado bairro do Soho, em Londres, para finalizar os estudos e iniciar carreira como estilista. Sozinha em seu quarto ela passa a ter sonhos e visões onde conhece a aspirante a cantora Sandie (Anya Taylor-Joy) com a qual se identifica de forma idealizada a ponto de torna-se quase um duplo aspiracional. Ela é tudo que Eloise desejava ser na intimidade: forte, livre, independente, voluntariosa e sexualmente liberada.


O que se segue é uma história que transita entre gêneros distintos. Inicialmente o que parece ser um pequeno drama juvenil sobre escolhas profissionais, lá pelas tantas vira a chave e se transforma em um thriller que flerta com o horror. São dois lados de uma mesma moeda. A Londres alegre e descontraída também possui suas áreas escuras e violentas. O mesmo ocorrendo em relação às personagens protagonistas, a real e a “ficcional”. Por trás dos sonhos mais inocentes por vezes se escondem os pesadelos mais terríveis. E é justamente esta dura realidade que Eloise tem que lidar em sua jornada pela cidade grande.

Personagens anacrônicos, que invariavelmente destoam do tempo e espaço onde estão inseridos, não são exatamente uma novidade nos filmes de Edgar Wright. Foi assim, por exemplo, em Scott Pilgrim e Em Ritmo de Fuga. Mais uma vez esta abordagem se faz presente em Noite Passada em Soho. A jovem Eloise Turner, uma personagem deslocada em busca de seu lugar no mundo, se refugia no terreno da fantasia, recriando um mundo particular que mistura sonhos e desejos, o real e o imaginário.


Esteticamente belo, com cenografia e fotografia elaborada, Noite Passada em Soho enche os olhos pela recriação de uma época particularmente marcada pelo estimulante apelo visual, que, convenhamos, soa nostálgico – mas fascinante - na maior parte das vezes. A trilha sonora, recheada com canções de sucesso da mais genuína brit music dos anos 60, faz a apropriada contextualização e transporta o espectador pelo túnel do tempo.

Em sua segunda metade o thriller se aproxima de um autêntico “giallo italiano”, com sotaque inglês, que ecoa o mestre Mario Bava, não apenas pela temática de crime, mas particularmente pelo uso massivo de cores vibrantes, especialmente o vermelho e azul, sempre ostensivos e contrastados.


Noite Passada em Soho é um filme dividido, sob diversos aspectos: na temática, na ambientação, nos gêneros, nas protagonistas. O que poderia ser sua fortaleza na verdade configura sua grande fragilidade como narrativa. A fruição estética proposta por Edgar Wright não passa de um deleite visual sem o devido suporte de um roteiro que realmente convença o espectador. Longe (muito longe) de fazer feio, o fato é que ao longo dos anos, com o devido distanciamento do seu tempo de realização, Noite Passada em Soho talvez venha a ser relembrado como um filme cult, ou como um estimado guilty pleasure.

Anya Taylor-Joy (já vista em A Bruxa e na série da Netflix O Gambito da Rainha) é o grande destaque do elenco e confirma seu potencial como a mais promissora jovem atriz candidata a estrela de primeira grandeza. Vale lembrar que o filme de Edgar Wright marcou o ocaso da grande estrela britânica Diana Rigg, falecida logo após as filmagens.


Assista ao trailer: Noite Passada em Soho

por Jorge Ghiorzi

quarta-feira, 10 de novembro de 2021

“Querido Evan Hansen”: meu melhor super amigo

 


“Hoje vai ser um dia incrível, e eu vou dizer por quê.”

Adaptações de grandes e aclamados musicais da Broadway para o cinema não garantem necessariamente sucessos de crítica e público. A desastrosa recente versão de Cats está aí para provar que nem sempre tudo funciona como o esperado. A linguagem do palco por vezes não dialoga bem com a dramaturgia cênica que se deseja nos filmes. Portanto, há sempre um fator imponderável de adequação assombrando as adaptações de musicais para o cinema.

Em cartaz na Broadway desde 2016, o musical “Querido Evan Hansen” foi indicado a nove Tony Wards (venceu seis), incluindo Melhor Musical, Melhor Trilha Sonora, Melhor Libreto e Melhor Ator, e ainda venceu o Grammy de 2018 para Melhor Álbum de Musical. Foi com este prestígio que chegou aos cinemas a adaptação Querido Evan Hansen (Dear Evan Hansen) dirigida por Stephen Chbosky, realizador de As Vantagens de Ser Invisível (2012) e Extraordinário (2017).


"Hoje tudo o que você precisa fazer é ser você mesmo!"

Evan Hansen (Ben Platt, que também estrelou o musical na Broadway) é um adolescente sensível, retraído, solitário, com problemas de relacionamento e poucos amigos. Por sugestão de seu terapeuta ele escreve cartas para si próprio, onde expressa abertamente seus sentimentos. Por acaso uma destas cartas cai nas mãos de Connor (Colton Ryan), um garoto depressivo que acaba por cometer suicídio. Por uma série de mal-entendidos Evan passa a ser reconhecido como o “melhor amigo” do suicida. Para não decepcionar a família enlutada de Connor ele acaba assumindo a mentira, sem imaginar as terríveis consequências que teria que enfrentar em breve.

 

“Eu queria que tudo fosse diferente. Queria fazer parte de alguma coisa.”

O enredo deste drama musical trata essencialmente de problemas típicos dos jovens: inadequação social, saúde mental, relacionamentos, bullying, violência psicológica e a vida vivida no ambiente das redes sociais. Sem esquecer, claro, o grande gatilho emocional normalmente presente nas histórias que retratam o universo adolescente: o suicídio.

Querido Evan Hansen embala todos estes elementos com a leveza sentimental de um musical tradicional, onde os sentimentos dos personagens são manifestados através de canções emotivas e sensíveis. Em suas partes de encenação realista o filme de Chbosky se equilibra como um pequeno drama adolescente já visto inúmeras vezes. Já quando assume seu lado musical, com as canções “comentando” as ações, a realização encontra seus melhores momentos, ainda que por vezes cause um pequeno estranhamento no ritmo pela forma como faz esta passagem, por vezes com pouca sutileza.


Como história de superação Querido Evan Hansen dá conta do recado sem grandes sobressaltos e novidades, com direito até àquela esperada sequência catártica de discurso diante de uma plateia que explode em aplausos (já vimos isso em Extraordinário, não?).

O que talvez falte a Querido Evan Hansen seja a capacidade de nos conectar - e mesmo simpatizar - com os personagens. Há um frio distanciamento no trato com todos eles, o que não contribui para nos aproximar verdadeiramente de seus dilemas e conflitos. Parte desta falta de empatia se deve certamente aos equívocos de casting dos jovens. É flagrante que estamos diante de um elenco com faixa etária incompatível com os personagens adolescentes que deveriam representar, em especial no caso do protagonista Evan, interpretado por um competente Ben Platt, que certamente funciona muito bem no palco, mas inadequado para uma versão cinematográfica. Na parte adulta do filme vale ressaltar a presença de duas ótimas atrizes: Amy Adams (como mãe de Connor) e Julianne Moore (como mãe de Evan). 

“Atenciosamente, seu super melhor amigo: eu mesmo.”


Assista ao trailer: Querido Evan Hansen

por Jorge Ghiorzi

quarta-feira, 1 de setembro de 2021

“Uma Noite de Crime – A Fronteira”: anarquia sem fim

 


Doze horas, sem lei e sem ordem. Doze horas onde a regra geral é o “vale tudo”. Doze horas onde crimes são permitidos sem as penas da condenação legal. Esta é a premissa da franquia de filmes da série “Noite de Crime”, amparada na tese sócio/política, de fundo fascista, que propõe uma catarse coletiva como forma de dominação e controle da violência latente provocada pela tensão social, racial, étnica e econômica. Um experimento social, restrito a um território delimitado, destinado a expurgar todos os males reprimidos.

O universo do “Expurgo” (The Purge) é uma criação do roteirista e diretor James DeMonaco, realizador dos três primeiros filmes: Uma Noite de Crime (2013) Uma Noite de Crime 2: Anarquia (2014), Uma Noite de Crime 3 (também conhecido como 12 Horas para Sobreviver: O Ano da Eleição, de 2016). O quarto filme foi lançado em 2018, A Primeira Noite de Crime, dirigido por Gerard McMurray.


Agora chegamos ao quinto expurgo com Uma Noite de Crime – A Fronteira (The Forever Purge) que, bem como diz o título, expande a anarquia até os limites do território dos Estados Unidos. A mudança da ação para as fronteiras com o México traz novos elementos para explorar os efeitos da violência, do preconceito e da repressão contra os mexicanos emigrantes ilegais que arriscam a vida para “tentar a vida na América”. Além, claro, de fazer referência à era Trump e seu muro mexicano.

Adela (Ana de la Reguera) e seu marido Juan (Tenoch Huerta) vivem no Texas. Juan trabalha para a rica família Tucker em uma de suas fazendas. Ele impressiona o patriarca Tucker, Caleb (Will Patton), mas isso só alimenta o ciúme do filho do fazendeiro, Dylan (Josh Lucas), que não faz questão de esconder seu preconceito contra os “chicanos”. Na manhã seguinte ao Expurgo, que deveria durar apenas 12 horas, as gangues permanecem agindo livremente e atacam a família Tucker. Num gesto de lealdade Juan salva seus patrões da morte. Juntos tentam sobreviver empreendendo uma fuga para o México, escapando do Expurgo que fugiu do controle do Estado e ameaça devastar toda a nação norte-americana.


Com roteiro do criador James DeMonaco e direção de Everardo Valerio Gout, Uma Noite de Crime – A Fronteira sofre do mesmo problema dos demais filmes da série: a abordagem fica aquém do tema a que se propõe. A premissa é por demais promissora, mas nunca encontrou o tom adequado na abordagem. O tratamento é sempre raso e desleixado. A opção pelo entretenimento como filme de horror com ritmo de filme de ação está sempre em primeiro plano. Parece clamar ao público: “não perca tempo, não pense muito, apenas divirta-se”.


A falta de ambição fica evidente mais uma vez. E assim, com este formulismo calculado, a série esgota-se em si mesma, sem perspectiva de apresentar algo além de clichês, sequências de ação apenas “ok”, personagens nulos e uma boa ideia que se esvai, filme após filme.

Assista ao trailer: Uma Noite de Crime – A Fronteira

por Jorge Ghiorzi