A temporada de 2024 assinala duas produções dirigidas pelo
prolífico diretor italiano Luca Guadagnino. Acredite, ele está com outros 6 (!)
projetos em andamento. No primeiro semestre tivemos a estreia do ótimo Rivais,
um drama esportivo de poliamor com um trisal de tenistas liderado por Zendaya.
Agora, no fechamento do ano, é lançado Queer, estrelado por
Daniel Craig, em sua fase pós-007, abandonando definitivamente a persona de
James Bond que encarnou por 15 anos. Um ponto comum aproxima estas duas obras
de Guadagnino: o sexo utilizado como artifício de sedução, manipulação e poder.
Inspirado no livro homônimo de William S.
Burroughs, Queer é um drama histórico, parcialmente biográfico, com alta
carga erótica, protagonizado pelo personagem alter ego William Lee, presente em
outras obras do autor. Em Mistérios e Paixões (Naked Lunch, 1991), de
David Cronenberg, o mesmo personagem William (Bill) Lee foi interpretado por
Peter Weller. Em Queer o alter ego de Burroughs ganha o corpo e a alma
de um provocativo Daniel Craig, que entrega uma atuação ousada e desprendida como você nunca
viu em nenhum de seus trabalhos anteriores.
A história se passa no México dos anos 50. É
lá que vive o expatriado americano William Lee. O filme passa ao largo de uma
explicação mais clara da verdadeira razão que o levou a sair dos Estados
Unidos. No livro este passado é esclarecido: ele foi dispensado da Marinha,
dentre outras razões, por ser usuário de drogas. A trama de Queer segue
a vida de Lee que percorre, de bar em bar, os ambientes da comunidade
homossexual masculina da cidade, sempre em busca de novas aventuras e parceiros
para uma noitada. A vida boêmia de Lee ganha novos contornos quando conhece o
jovem Eugene Allerton (Drew Starkey), de orientação sexual inicialmente
ambígua, porém abertamente aberto para outras possibilidades. Juntos vivem uma
intensa paixão que os levará para uma reveladora viagem pelas florestas
equatorianas em busca de experiências sensoriais com drogas alucinógenas.
A origem literária do material de Queer
fica explicitado logo nas sequências iniciais com a exibição de páginas de
manuscrito datilografado com trechos da obra. A referência de origem nas letras
fica ainda mais explícita quando o roteiro é construído como capítulos
intitulados de um livro, recurso utilizado com frequência em muitas produções,
a propósito. Esta divisão em capítulos contribui para a construção da trama em
dois grandes blocos narrativos, como volumes separados da mesma obra, distintos
entre si pela alteração de cenário, cores e significados. O primeiro deles,
marcado pela descoberta do corpo, mostra o cotidiano de William Lee em suas
interações com a cidade e seus personagens. Aqui a perspectiva é absolutamente
hedonista, com uma busca incessante pelo prazer acima de qualquer outro
estímulo vital. No segundo bloco, com a viagem de experiências místicas e
transcendentais sob os efeitos de erva alucinógena (que não faz parte do livro
de Burroughs), Queer assume uma perspectiva existencial. A busca passa a
ser a liberação da mente. O arco da jornada de William Lee percorre então os
dois princípios básicos e opostos da existência humana, os arquétipos de Eros e
Thanatos, as pulsões de Vida e Morte.
Sob o comando de um inspirado Guadagnino,
claramente interessado no universo que retrata, um insuspeito Daniel Craig
passeia em cena com seu indefectível terno de linho branco, chapéu e óculos de
sol em busca de aventuras amorosas. Completando a construção de um personagem
descontruído, Lee carrega no coldre junto ao corpo uma pistola onipresente, um
objeto de conotação fálica, que não passa de símbolo aleatório de
representatividade de poder, reminiscência de um passado do qual não se liberta
na totalidade. Em um diálogo confessional e revelador conta que, de alguma
maneira, é portador de uma “maldição” hereditária que predestinou sua
orientação.
A viagem por terras estranhas na América do
Sul profunda assume contornos bizarros pelos reais propósitos. Os alegados
poderes telepáticos do “yage”, ou ayahuasca, é a verdadeira motivação de Lee
que deseja ardentemente penetrar na mente de Eugene para descobrir o que ele
realmente pensa e sente, pois suspeita que seu amor profundo não é
correspondido. A “viagem” proporcionada pelo chá da erva conduz às inquietantes
sequências de alucinação, uma experiência psicodélica de transformação que
unificam, fundem e distorcem os limites de seus corpos. Tempo e espaço voltam a
ser subvertidos no desfecho de Queer. A imagem de William Lee na velhice
nos remete ao astronauta solitário de Stanley Kubrick no final de 2001,
que mira a si mesmo e sua história derradeira enquanto encara a morte
inelutável. O destino dos protagonistas parece comprovar que o mesmo amor que
salva pode ser o amor que condena.
Com sua usual ousadia estilística Luca
Guadagnino explora com sensibilidade temas fundamentais do ser humano como
amor-próprio, solidão e identidade. Estranho e incomum, Queer é um filme
inquietante com uma pungente história de amor e luxúria, embriagada de tequila
em terras tropicais.
Assista ao trailer: Queer
Jorge Ghiorzi
Membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de
Críticos de Cinema) e ACCIRS (Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do
Sul)
Contato: janeladatela@gmail.com /
jghiorzi@gmail.com
@janeladatela
Nenhum comentário:
Postar um comentário