segunda-feira, 31 de outubro de 2022

A Luz do Demônio: heroína das trevas

 


O ritual do exorcismo, popularizado com o filme de William Friedkin de 1973, é a prática litúrgica milenar da Igreja Católica que se destina a expulsar o demônio - em suas diversas formas - que se apossa do corpo dos seres humanos. A tradição diz que este ritual de orações só pode ser praticado por padres. Portanto, vetado às mulheres. Esta é a premissa que sustenta a trama de A Luz do Demônio (Prey for the Devil, 2022), dirigido pelo alemão Daniel Stamm, cineasta já escolado no tema dos demônios possessivos, pois também realizou no gênero O Último Exorcismo em 2010.

A freira Ann (Jacqueline Byers) trabalha em um hospital católico. Atuando como uma espécie de enfermeira, ela atende pacientes em distúrbio psiquiátrico, suspeitos de possessão demoníaca. Ou seja, pacientes que estão a um passo de se submeterem aos rituais do exorcismo. A abordagem de Ann foge dos padrões usuais da instituição. Ela busca uma conexão mais íntima e pessoal com os pacientes. O hospital, localizado em Boston (EUA), também sedia o que seria a primeira “escola de exorcismo” fora do Vaticano, onde os padres são educados e treinados na prática. Um dos professores, após perceber o dom especial de Ann, apoia sua presença nas aulas, ainda que o acesso aos conhecimentos ritualísticos do exorcismo seja um privilégio apenas aos homens. Então, chega o dia de colocar os conhecimentos à prova. Ann encara de frente um caso de possessão por uma força demoníaca que tem ligações com seu passado.


A quantidade de filmes que tratam de possessões é tamanha que na prática constituem um subgênero em si. Mas, para azar dos fãs do terror, a expectativa de algo minimamente original se esvai a cada novo lançamento. O mais do mesmo tem sido a rotina. E aqui não é muito diferente do padrão usual. Há, no entanto, uma pequena luz no fim do túnel. A questão feminina na trama é uma evidência flagrante e um elemento que traz um olhar além da bolha do terror pelo terror. Sim, A Luz do Demônio é um terror com pauta.

Mas não fique muito empolgado com esta possibilidade. O tema está colocado, porém distante do foco principal. O olhar feminino serve apenas para captar a empatia do espectador para a apresentação da protagonista feminina. O potencial do discurso feminista fica um tanto sufocado pelos clichês em série e situações corriqueiras, bastante previsíveis. Como todo terror convencional, A Luz do Demônio investe apenas nos sustos fáceis.


A jornada da freira Ann equivale à jornada do surgimento de uma heroína. Isto fica muito claro no terceiro ato. Aí está ponto a favor de A Luz do Demônio, que abre boas possibilidades de criação de uma franquia, seja nos cinemas, ou mesmo como futura série nos canais de assinatura.

Assista ao trailer: A Luz do Demônio


Jorge Ghiorzi / Membro da ACCIRS

janeladatela@gmail.com

segunda-feira, 10 de outubro de 2022

À Procura de Mr. Goodbar: perdida na noite


A chamada Era Disco gerou pelo menos dois grandes filmes, ambos lançados no mesmo ano de 1977. O primeiro deles é um paradigma do gênero: Os Embalos de Sábado à Noite, de John Badham. O outro é À Procura de Mr. Goodbar (Looking for Mr. Goodbar), dirigido pelo, já à época, veterano Richard Brooks (Sementes da Violência; Gata em Teto de Zinco Quente; Lord Jim e A Sangue Frio). A febre das discotecas, que pregava alegria e liberdade nas pistas de dança, é a face superficial exibida pelos dois filmes setentistas. Ambos, no entanto, mergulham em níveis mais profundos das inquietações de seus protagonistas. A exuberância da trilha sonora de Os Embalos de Sábado à Noite leva muita gente a pensar – erroneamente – apenas na mensagem hedonista transmitida pelo personagem Tony Manero, papel que revelou John Travolta. Na verdade há um submundo interior do personagem em constante conflito, que em dado momento se contrapõe àquele mundo superficial. Ao fim, estamos na verdade diante de um filme essencialmente amargo.

Em À Procura de Mr. Goodbar este mergulho interno também está presente, mas em nível infinitamente mais profundo e perturbador. O peso de realismo que o filme de Richard Brooks traz é decorrente do fato de que a história é baseada em fatos verídicos, relatados em romance best-seller da época (lançado no Brasil com o título “De Bar em Bar”), que recriou um caso real ocorrido nos anos 50. A personagem central seria - forçando um paralelo - uma espécie de versão hard, radical, de Tony Manero, que traz ainda, como carga adicional, toda a complexidade feminina no contexto da década de 70, em pleno auge do movimento Women’s Lib, que pregava a libertação das mulheres.


O nome dela é Theresa Dunn (magnificamente interpretada por uma surpreendente Diane Keaton), uma dedicada professora que durante o dia trabalha em uma escola para deficientes auditivos. À noite, ela assume o outro lado da sua personalidade, percorrendo bares, casas noturnas e discotecas de Nova Iorque em busca de insaciáveis e inconsequentes aventuras amorosas, como se não houvesse amanhã. Mas, no dia seguinte, às 7h30 o alarme do despertador sempre toca, avisando que a vida real está chamando. Dividida entre dois mundos ambivalentes, Theresa carrega uma barra pesada, construindo uma jornada decadente de autodestruição turbinada com muita bebida, drogas e sexo.

Pérola um tanto esquecida dos anos 70, À Procura de Mr. Goodbar não foi exatamente um êxito em seu tempo e não encontrou aderência do grande público. Razões para isso são facilmente identificáveis. Apesar do ambiente descontraído das discotecas e da trilha sonora recheada de sucessos, o filme de Richard Brooks pega pesado e joga na cara do espectador uma história que tangencia a sordidez, cuja protagonista marcha rumo ao abismo a olhos vistos. A desilusão é um sentimento presente em todo o filme, expressando o momento particular do Zeitgeist – espírito do tempo – manifestado pela ressaca moral da sociedade norte-americana, pós Guerra do Vietnã.


A tortuosa personalidade de Theresa Dunn foi fruto de uma infância e adolescência marcada pela doença (ela sofria de escoliose severa), fato que resultou a dolorosos tratamentos e cirurgias que a deixaram imobilizada por longos períodos. Ou seja, a professora era uma pessoa marcada pela dor, que deixou marcas reais na pele (cicatrizes pelo corpo) e marcas metafóricas na psique (distúrbio de personalidade). Após uma adolescência confinada e reclusa, quando adulta busca uma espécie de compensação, vivendo com intensidade uma sexualidade tardia.

O vazio existencial de Theresa é preenchido por noites solitárias em bares mal frequentados lotados de fumaça, embalados por álcool e figuras insuspeitas, tão perdidas quanto ela própria. Um encontro de desesperançados na iminência de um destino trágico. Há uma afirmação feminina na atitude da professora, libertada do controle familiar e das convenções sociais. Após o término de um relacionamento tóxico e abusivo com seu professor, ela se descobre uma pessoa incapaz de construir relações sólidas e duradouras. Este foi o gatilho da nova vida paralela, onde a conquista da liberdade sexual é a única forma que encontra para aplacar a dores da alma.


À Procura de Mr. Goodbar é doloroso na descrição de uma personagem fragmentada. O olhar de Richard Brooks é simultaneamente íntimo (por vezes) e amoroso (quase sempre). Um olhar furtivo e voyeur que se alterna entre os inferninhos de Nova Iorque e o apartamento mal iluminado e depressivo de Theresa Dunn, onde recebe seus amantes de ocasião. Compartilhamos suas angústias e nos identificamos com sua dor, mas lamentamos a tragédia que se desenha, passo a passo.


Impossível falar deste filme sem destacar o desempenho visceral de Diane Keaton, que se entrega com intensidade a um papel ousado, sem rede de proteção. Recém saída das primeiras parcerias com Woody Allen, especialmente de Annie Hall (realizado no mesmo ano), pelo qual recebeu o Oscar de Atriz, nada fazia esperar que atriz fosse capaz deste mergulho em um tipo de papel totalmente inesperado para quem estava conquistando reconhecimento em filmes de comédia. Certamente este foi o fator que a fez aceitar o desafio de interpretar a personagem de Theresa Dunn: fugir do estereótipo. O resultado excepcional foi um atestado de seu talento como atriz, que a levaria para outros destinos na carreira.

No quesito elenco, o filme de Richard Brooks ainda apresenta um novato Richard Gere, em um de seus primeiros papéis no cinema, vivendo um dos parceiros da protagonista. Neste pequeno papel Gere já apresenta os trejeitos e maneirismos interpretativos que marcaram o início da sua carreira, particularmente em Gigolô Americano e A Força de um Amor (a refilmagem de Acossado de Godard).

À Procura de Mr. Goodbar é um filme a ser redescoberto.


Assista ao trailer: À Procura de Mr. Goodbar

 

Jorge Ghiorzi / Membro da ACCIRS

janeladatela@gmail.com