quinta-feira, 23 de novembro de 2023

Ferrolho

 


por Leila Silveira

Neste momento onde todos filmes parecem prontos para serem mastigáveis, assisto Ferrolho. Um filme para assistir com atenção, qualquer piscada pode deixar passar a percepção, que não é dada de pronto.

O diretor, Alexandre Derlam, mergulhou nos sentidos do personagem, mostrando que é possível extravasar sem palavras e arrepiar no vazio, nas distâncias, no âmago do debate interior.

Para quê palavras se tem o olhar, beirando o pedido de socorro de quem assiste?

Cinema arte, quase poético, com boa atuação do ator Ângelo Sérgio, que parece arrancar da gente, as palavras que não são pronunciadas. A temática do filme é sobre ausências? Ou demência? Ou seriam todas as modernas questões do ser humano, que descobre ser absolutamente solitário, em seus temas mais fundamentais, como pensar, lembrar e a eterna necessidade de ser amado.

A trilha, bem conduzida do Marcelo Corsetti somado com a atuação de Ângelo Sérgio, (ele que já tinha despertado nossa atenção em Railander - outro curta de Derlam de 2018), enfim o conjunto da obra, nos mostra que o diretor está buscando outros desafios na sua carreira.

É preciso destacar as locações, escolhidas com apuro e a fotografia, que dá o distanciamento na medida. O filme é bem sucedido, fazendo a junção, na trama, do exterior com o interior do personagem.

Propositalmente quero evidenciar preciosa contribuição: Bebeto Alves. Um universo inteiro de emoção e parceria com Alexandre Derlam e equipe, amigos desde muito, trocas desde sempre. Ressaltar sua obra imensa, é chover no molhado, falar que a sua participação nos vocais foi justamente em um dos seus últimos trabalhos, remete ao eterno do cinema. Sempre descobrindo, sempre misturando as artes, (no presente, porque Bebeto se faz presente). Afinal seu legado musical segue, instigando e inspirando.

A história de Ferrolho é introspectiva e enigmática, despertando o imaginário de quem assiste. Mas pensando bem, quem consegue decifrar o ser humano?

Leila Silveira

Produtora Cultural, atriz, diretora de teatro, roteirista, pesquisadora do audiovisual


quarta-feira, 27 de setembro de 2023

Resistência: épico futurista e político

 


Nos primeiros 100 anos de existência do gênero Ficção Científica no cinema muitos ciclos temáticos se sucederam. Nos primeiros anos a base eram as adaptações de novelas de escritores visionários, como Jules Verne e H. G. Wells. Depois, nos anos 50, chegou a vez de explorar os medos do perigo atômico. Nos anos 60 o foco era a exploração espacial. Nos anos 70, as grandes utopias ganham as telas. Nos anos 80, as fantasias espaciais. Nos anos 90 veio a ressaca, com as distopias. Por fim, no novo milênio a bola da vez nos filmes de Ficção Científica é a onipresente Inteligência Artificial.

Resistência (The Creator, 2023), de Gareth Edwards (de Rogue One e Godzilla, de 2014) é mais uma produção que tem a IA como tema principal. No caso, não pelo o que ela possibilita de benefícios quase ilimitados, mas sim por seus efeitos negativos e danosos a longo prazo. O filme explora, de maneira dramática, as perigosas consequências que a utilização massiva desta tecnologia pode causar nos destinos da civilização.


Após explosão nuclear, que devasta Los Angeles, deliberadamente provocada por Inteligência Artificial, a tecnologia é banida e restrita no Ocidente. Apenas os países asiáticos ainda permitem a utilização da IA. Em meio a este mundo de opõe Ocidente x Oriente (algo tipo Guerra Fria), um ex-agente das forças especiais, Joshua (John David Washington), é recrutado para caçar e eliminar o Criador, responsável pelo desenvolvimento de uma poderosa arma que teria a capacidade de eliminar os humanos e conquistar o planeta. Joshua e sua equipe de agentes de elite atravessam as linhas inimigas e entram no coração sombrio do território ocupado pela IA para cumprir a missão. Lá descobrem que a poderosa arma secreta é uma criança, tecnologicamente construída, cujo destino pode alterar o rumo da guerra.


Resistência é um deslumbrante e original épico de ficção científica, apesar do tema central não ser exatamente uma novidade. O fato é que o filme apresenta várias camadas, o que já o coloca, de antemão, em um local de destaque na atual produção do gênero. Em sua face mais superficial se apresenta como uma movimentada aventura futurista. Há, porém, em seu subtexto, um interessante comentário político que aborda questões de xenofobia, colonialismo e expansionismo em países do terceiro mundo asiático. Isto sem falar no arco dramático do protagonista Joshua, que apresenta uma transição do homem belicista e violento até o humanismo e a empatia.


Visualmente o filme de Gareth Edwards é impactante, seja pelo desenho de produção criativo e original, seja pela fascinante cenografia. Contribuiu decisivamente para isto o fato de o filme ter sido realizado em grande parte em locações reais em países asiáticos, em substituição ao frio cenário verde de estúdio, utilizado na quase totalidade das produções do gênero. A pós-produção apenas adicionou elementos de computação gráfica sobre uma imagem captada em cenários reais. Isto faz total diferença para a verossimilhança e o resultado diferencial é visível.


Outro ponto a se destacar é a ausência do fetichismo pelos aparatos tecnológicos. Tudo que vemos tem função utilitária, e não está lá apenas pelo impacto estético que possa causar. Algo semelhante já vimos em Distrito 9, com aquela tecnologia “suja”, bastante convincente. Resistência optou acertadamente por este caminho. O roteiro, escrito por Gareth Edwards e Chris Weitz (de Um Grande Garoto e Pinóquio), é 100% original, algo raro em grandes produções, que costumam estar ancoradas em grandes referências de outras mídias, tipo livros, histórias em quadrinhos, séries, etc.


O nem tão admirável mundo novo apresentado por Resistência propõe analogias políticas muito identificadas com os tempos que vivemos. Este é o tipo de filme que as salas de cinema devem agradecer, especialmente neste momento de reconquista de público. Resistência é um filme cuja grandiosidade cênica e estética só são devidamente apreciadas na telona do cinema.

Assista ao trailer: Resistência


Jorge Ghiorzi

Membro da ACCIRS – Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul

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quarta-feira, 20 de setembro de 2023

Som da Liberdade: resgate heroico

 

Desde o período de produção, passando pela divulgação até o lançamento, a polêmica está intimamente ligada ao filme Som da Liberdade (Sound of freedom). Finalizada em 2018, a produção seria lançada por uma subsidiária da 20th Century Fox. Mas os planos foram alterados quando a Disney adquiriu a Fox. A produção ficou arquivada por cinco anos. O filme só ganhou uma oportunidade de lançamento quando a pequena distribuidora Angel Studios adquiriu os direitos da obra. As acusações que sempre rondaram a produção é de que se trataria de um filme com perfil radicalmente direitista.

Elogios de Donald Trump, Elon Musk e Mel Gibson (envolvido na produção) colocaram mais lenha na fogueira. A tentativa de boicote e cancelamento só contribuíram para acender o interesse. O resultado, contrariando expectativas, é um inesperado sucesso de bilheteria no mercado norte-americano, com tendência a repetir o êxito no mercado latino-americano. Estabelecida esta premissa, vamos nos ater aqui exclusivamente à apreciação da obra em si como realização cinematográfica, abstendo este contexto externo.


Há, além de tudo isso, um ponto que parece inequívoco, acima de qualquer discussão: o tema central de Som da Liberdade é por demais importante para ser considerado algo secundário e irrelevante. O sequestro de crianças para serem utilizadas como escravas sexuais por pedófilos do submundo, que se escondem nas sombras da deep web, é o pano de fundo onde se desenrola este misto de drama, ação e biografia dirigido pelo mexicano Alejandro Monteverde.

O aspecto biográfico fica por conta da recriação da jornada real de Tim Ballard (interpretado com convicção religiosa por Jim Caviezel), um agente federal dos Estados Unidos que atua na identificação e captura de pedófilos em território norte-americano. Insatisfeito com o sucesso relativo das suas ações, decide empreender uma missão solitária para combater o tráfico infantil. Desliga-se do governo e parte para em busca de uma criança sequestrada e levada por criminosos para a Colômbia. Sozinho, clandestino, sem apoio das forças policiais dos EUA e infiltrado em terra estranha, Tim parte para uma perigosa operação de resgate.


Baseado em fatos, Som da Liberdade claramente romantiza e ficcionaliza em demasia a história de Tim Ballard. A santificação do personagem glorifica seus atos, a ponto de transformá-lo em herói ungido por uma missão divina. A interpretação messiânica de Jim Caviezel, ainda e sempre marcado pelo recall de A Paixão de Cristo (2004), transforma um personagem real, de carne e osso, em uma entidade justiceira martirizada pela culpa.

Apesar da origem latina do realizador Alejandro Monteverde, o filme não supera os clichês latinos tão usuais em produções sob o olhar de Hollywood. O indefectível filtro amarelo, que solariza tudo, e as cores quentes estão presentes. Todos os personagens secundários, quando a ação se passa na Colômbia, são fortemente marcados pelos mais rasteiros estereótipos de caráter, estética e comportamento, tantas vezes associados às populações que vivem na Linha e abaixo da Linha do Equador.


Como já citado, a temática de Som da Liberdade é seu grande e inequívoco mérito, a ponto de suplantar as virtudes da realização cinematográfica. Um assunto por demais doloroso, mas que deve ganhar luzes para que haja um combate realmente efetivo. Infelizmente a realização pesa muito a mão no caráter emocional e faz uso excessivo de recursos de manipulação da emoção do espectador: música, frases de efeito, atos heroicos. Reconheça-se, no entanto, que se trata de uma produção de grande impacto, que dificilmente deixará a plateia indiferente. A sensação final de incomodo é real e palpável, ficando ainda mais evidente após o recado de Jim Caviezel (o ator, fora do personagem), ao término dos créditos finais.


Eliminando – como se fosse possível - o componente alegadamente verídico da trama e o discurso político/moral que imprime do início ao fim, Som da Liberdade poderia ser considerado apenas uma aventura de resgate convencional, na linha, por exemplo, de Lágrimas do Sol (2003), estrelado por Bruce Willis em missão humanitária clandestina na selva nigeriana.

Assista ao trailer: Som da Liberdade


Jorge Ghiorzi

Membro da ACCIRS – Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul

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quarta-feira, 13 de setembro de 2023

Sem Ar: tensão no fundo mar



Refilmagem do sucesso do cinema sueco, Além das Profundezas (Breaking surface, 2020), Sem Ar (The Dive, 2023) é rápido e objetivo. Vai direto ao ponto, sem protelar a entrega do que se propõe. No caso, um tenso suspense, de tirar o fôlego, com perdão do trocadilho involuntário.

De imediato somos apresentados às duas irmãs protagonistas, que decidem fazer mergulho recreativo em um lugar lindo e remoto. O que deveria ser um tranquilo reencontro anual das irmãs, rapidamente se transforma em uma tragédia. Durante o passeio uma delas fica presa em uma rocha, abaixo d’agua. Sem poder se mover, ela ficará totalmente dependente de sua irmã que terá que lutar por sua vida enquanto ela lida com um nível perigosamente baixo de oxigênio, ao mesmo tempo em que busca desesperadamente por ajuda na superfície.


Produção alemã, dirigida por Maximilian Erlenwein, Sem Ar teve suas locações no arquipélago de Malta, na região central do Mediterrâneo. Como é comum em filmes assemelhados, como A Queda, por exemplo, um fio de enredo sustenta a encenação dramática, a começar com a relação um tanto conflitada, mas nunca devidamente explicada, entre as irmãs. Uma questão mal resolvida no passado se manifesta justamente no momento mais crítico da vida de ambas. Mas nada tão significativo a ponto de suplantar o principal foco narrativo, que é a exploração do medo da morte, a tensão máxima, o efeito de confinamento e a solidão extrema.

Sem Ar é, antes de tudo, claustrofóbico ao explorar a sensação imersiva e sensorial que só um mergulho subaquático – e um passeio orbital – são capazes de proporcionar. Os gatilhos do medo, disparados pelo receio da morte e da solidão, são manipulados pelo filme, no mais das vezes, com bons resultados do início ao fim.


O artifício de incluir relógios, marcadores de tempo, e referências e informações que demarcam a passagem do tempo, reforçam a aflição das personagens, e também a nossa aflição, que compartilhamos em tempo real, pois a ação do filme transcorre em paralelo ao nosso tempo real.


As soluções de roteiro, casuísticas e por vezes um tanto forçadas, são suficientemente convincentes a ponto de não comprometer a integridade da narrativa. Sem Ar, ainda que em sua essência não saia do lugar comum e carregue demais nos clichês dos filmes de sobrevivência, é um thriller de suspense que dá conta do recado, se a expectativa não for muito alta. Uma experiência de entretenimento a qual assistimos com algum prazer e sem dor.

Assista ao trailer: Sem Ar


Jorge Ghiorzi

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terça-feira, 12 de setembro de 2023

A Noite das Bruxas: mistério em Veneza


As duas primeiras adaptações de livros de Agatha Christie, capitaneadas por Kenneth Branagh, foram Assassinato no Expresso Oriente (2017) e Morte no Nilo (2022). Não eram exatamente novidades, pois tratavam-se de remakes de filmes já realizados anteriormente. Desta vez a escolha recaiu sobre um livro nunca antes adaptado. Portanto, tem-se aí uma novidade e uma aposta, que por si só já tem a capacidade de potencializar o interesse. Os dois primeiros títulos da franquia funcionaram como teste para estabelecer a estética e a nova abordagem nas adaptações de Agatha Christie no século 21. E, claro, apresentar ao mundo a nova face do investigador Hercule Poirot, no caso, o próprio Kenneth Branagh, que atua também como diretor. A boa receptividade mostrou que o caminho era correto, e comprovou que ainda há espaço para novas aventuras do famoso investigador de origem belga.


Assim, chegamos a este A Noite da Bruxas (A Haunting in Venice, 2023), baseado em um dos últimos livros escritos por Agatha Christie, lançado no final dos anos 60, apenas sete anos antes de sua morte. O detetive Hercule Poirot (Kenneth Branagh) está aposentado, vivendo as delícias do exílio na bela Veneza, distante da rotina de investigação de novos casos. Mas os casos misteriosos insistem em se aproximar de Poirot. A convite de sua amiga escritora de livros policiais, Ariadne Oliver (Tina Fey), ele vai a uma festa de Halloween em um palácio veneziano abandonado. Lá haveria uma sessão espírita, e a proposta é que Poirot desmascare a médium (Michelle Yeoh) se fazendo valer da sua capacidade de dedutiva e racional. Mas, nem tudo ocorre como o previsto. Naquela noite das bruxas ocorre um assassinato e Hercule Poirot não resiste ao chamado. Entra novamente em cena para elucidar o mistério em meio às gôndolas de Veneza e vários suspeitos.


Aqueles que leram o livro já percebem de imediato que algo de muito errado não está certo. A história original não se passa em Veneza, nem sequer há uma sessão espírita. O roteiro utilizou apenas alguns personagens da obra, ainda assim, em contextos bem diversos. Isto sem falar na trama central, totalmente recriada a ponto de tornar o plot original irreconhecível. Há ainda uma alteração substancial. No livro de 1969 muitos personagens vitais para a trama são crianças e jovens, algumas como vítimas, outras como suspeitas.


A opção pelo politicamente correto muito certamente vetou a possibilidade de uma grande produção de estúdio (com a presença da Disney na distribuição) mostrar crianças/jovens como potenciais delinquentes, criminosos e assassinos. A rainha do crime, Agatha Christie, foi bem menos puritana e realista quando escreveu a obra há mais de 50 anos.


Das três encarnações de Kenneth Branagh como Hercule Poirot, esta parece ser a mais comedida, com uma postura menos blasé, o que transforma o personagem, pouco a pouco, em uma figura cada vez mais pop e próxima do espírito dos tempos atuais. Conversar com as plateias mais jovens - não necessariamente formada por leitores dos livros - faz todo sentido para uma franquia que pretende se estender ainda para outros tantos títulos. No mais, o velho Poirot de guerra está presente: presunçoso, afetado, racional e brilhante.


Sem abandonar o mistério investigativo, A Noite das Bruxas introduz, um tanto forçosamente, um viés de terror (em contraposição ao ceticismo de Poirot) como recurso narrativo, com direito a fantasmas e assombrações. A trama, substancialmente alterada, busca uma coerência que dificilmente alcança ao longo dos 100 minutos. Kenneth Branagh e seu roteirista, Michael Green, apostaram alto com as alterações profundas que impuseram à história. O resultado carece de credibilidade, não inspira o terror psicológico pretendido e não entrega um mistério realmente sedutor, a chave do sucesso da obra de Agatha Christie. A Noite das Bruxas fica a meio caminho e naufraga nas águas de Veneza.

Assista ao trailer: A Noite das Bruxas


Jorge Ghiorzi

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quarta-feira, 30 de agosto de 2023

Toc Toc Toc – Ecos do Além: por trás das paredes

 


A obra de Edgar Allan Poe é fonte inesgotável de inspiração para o cinema. Material criado pela imaginativa mente literária de Poe já foi utilizado de forma literal em inúmeras adaptações cinematográficas fiéis ao original. Há também outras tantas versões apenas parcialmente inspiradas nas tramas criadas pelo escritor. Este é o caso de Toc Toc Toc – Ecos do Além (Cobweb, 2023), que tem como base o conto “The Tell-Tale Heart”, escrito em 1843.

A primeira – mas não única – grande alteração do conto original foi a transposição da ação do século XIX para os dias contemporâneos. Afora isso, o roteiro incorporou ainda temas atuais como bullying, abuso infantil, maus-tratos e abandono parental.


Na história, que transcorre nos dias que antecedem o Halloween, Peter, um menino de oito anos, é atormentado por um misterioso e constante barulho que vem de dentro da parede de seu quarto. Seus pais insistem que os ruídos e vozes estão apenas em sua imaginação. À medida que o medo de Peter se intensifica, ele acredita que seus pais podem estar escondendo um segredo perigoso e questiona a confiança deles. Quando descobre que os sons são realmente reais, Peter tem a certeza que os pais ocultam um terrível segredo e inicia uma busca para descobrir a verdade.

A produção é de Seth Rogen, que tem se mostrado um produtor bastante ativo. Esta é sua terceira produção a entrar em cartaz em 2023, após Loucas em Apuros e As Tartarugas Ninja: Caos Mutante, além da série de animação Invencível, no Prime Video, o serviço de streaming da Amazon. A direção de Toc Toc Toc – Ecos do Além é de Samuel Bodin, da série Marianne, da Netflix.


Um dos grandes acertos do roteiro, assinado por Chris Thomas Devlin, de O Massacre da Serra Elétrica (2022), foi estabelecer a perspectiva da narrativa a partir do ponto de vista do garoto, em quase sua totalidade. Eventualmente, em poucos momentos, nosso entendimento da história passa pela percepção da personagem da professora. No mais das vezes, tudo o que se refere aos pais de Peter nos é sonegado, causando no espectador a mesma sensação de desorientação vivenciada pelo garoto. Desta decisão decorre um dos principais destaques da produção. Como filme de terror Toc Toc Toc sai do lugar comum do gênero, que tende a reprisar indefinidamente fórmulas recorrentes, ao reverter expectativas apostando em provocar menos sustos gratuitos e investir mais em uma narrativa climática solidamente ancorada no suspense. Foi bem sucedido na acertada escolha.


Contribui decisivamente para o bom resultado do suspense o fato de que a entidade que vive por trás das paredes não é exatamente um ser metafísico ou sobrenatural. Pelo contrário, é uma criatura física - de carne e osso, digamos -, pois sequer consegue superar a barreira física de uma simples parede ou mesmo de uma mera porta. Portanto, o pavor torna-se mais real e palpável. Afinal, o que aconteceu com Peter? O final aberto, livre para interpretações, é apenas mais um ingrediente que captura nosso interesse e potencializa a experiência.


Toc Toc Toc – Ecos do Além é uma agradável surpresa positiva. Um thriller de terror que não prometia nada e entregou tudo.

Assista ao trailer: Toc Toc Toc – Ecos do Além

 

Jorge Ghiorzi

Membro da ACCIRS – Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul

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quarta-feira, 23 de agosto de 2023

A Chamada: motorista sem limites

 

A advertência já foi dada outras tantas vezes: não mexa com a família de Liam Neeson. Mas a turma dos vilões não aprende por bem a lição. Então, vai aprender por mal. Mais uma vez. A lição agora vem com A Chamada (Retribution, 2023), refilmagem do filme espanhol El Desconocido. No período de pré-divulgação do filme no Brasil o novo filme de Liam Neeson chegou a receber provisoriamente o título de Retaliação, que seria uma boa opção, por ser menos genérico.

Filmado e situado em Berlim, o thriller A Chamada conta a história de um assessor financeiro, Matt Turner (Liam Neeson), responsável por investimentos de clientes milionários e empresas poderosas. Em uma manhã normal de trabalho está levando de carro seus filhos para a escola, antes de ir para o escritório, quando recebe uma ligação pelo celular. Do outro lado da linha uma voz modulada e ameaçadora informa que Matt está sentado sobre uma bomba, instalada embaixo do banco do carro. Caso saia do carro, a bomba será acionada e explodirá. Situação semelhante àquela vivida por Danny Glover, sentado em um vaso sanitário em Máquina Mortífera. Em pânico, Matt passa a transitar pelas ruas de Berlim, seguindo as orientações que recebe pelo celular enquanto descobre, pouco a pouco, as verdadeiras razões da armadilha. Enquanto isso, em seu encalço está a polícia, que o considera um terrorista, e não uma vítima do verdadeiro terrorista que atua incógnito.


A direção de A Chamada ficou por conta de Nimród Antal, cineasta de origem húngara, realizador de Temos Vagas, Assalto ao Carro Blindado, Predadores e dois episódios da série Stranger Things. Produção de ação sem qualquer traço de criatividade, até mesmo porque já é decorrente de material anterior, A Chamada não consegue, momento algum, sair do lugar comum. Segue, passo a passo, os clichês mais corriqueiros e repetidos à exaustão em tantos outros exemplares do gênero.


Reconfigurado como herói sênior de ação em 2011, com Desconhecido, desde então, em certo sentido, Liam Nesson vem reprisando o mesmo papel, com nuances mínimas. Portanto, não há muito mesmo o que esperar de novidade com A Chamada. A zona de conforto fala mais alto. A louvar-se, a bem da verdade, a entrega de Neeson aos papéis, distanciando-se da tentação do pastiche ou da autoparódia, com zero humor. Bastante comum quando uma fórmula se mostra esgotada. Mas não, Neeson, o herói da terceira idade, imprime uma convicção digna. Mas, convenhamos, não é suficiente frente ao amontoado de ação genérica e situações absurdas que o filme propõe.

Apesar da narrativa se concentrar basicamente no espaço confinado de um carro, o que poderia render momentos de genuíno suspense e tensão – o que não consegue momento algum -, o fato objetivo é que A Chamada é apenas mais um exemplar irrelevante de thriller de ação, que vem se somar a tantos outros estrelados por Liam Neeson.

Assista ao trailer: A Chamada

 

Jorge Ghiorzi

Membro da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul

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quarta-feira, 9 de agosto de 2023

Asteroid City: bolha de sabão

 

É bastante improvável que haja alguém que entre em uma sala de cinema passa assistir a um filme de Wes Anderson que não tenha em mente um mínimo de expectativa sobre o que vai encontrar. Não há surpresas, absolutamente. O cineasta é fiel a seu estilo, que parece esgarçar e radicalizar a cada novo trabalho. Este é o peso que Asteroid City (Asteroid city, 2023) carrega. É Wes Anderson em sua potencia máxima, para o bem ou para o mal.

Meados dos anos 50. Uma cidadezinha minúscula, no meio do deserto americano, com população de apenas 87 pessoas, famosa por ter sido, no passado distante, alvo de um meteoro que caiu na Terra. A imensa cratera formada no local, um ponto turístico, será utilizada como cenário para uma Convenção de Observadores Cósmicos Juniores que reúne estudantes pesquisadores e suas famílias. Um inesperado acontecimento cósmico muda os rumos daquele encontro.


Wes Anderson mostra esta história como um exercício de metalinguagem. Tudo começa como um programa de TV em preto & branco que mostra o processo de criação de um dramaturgo que escreve uma peça de teatro com esta história, mesclando com a encenação da própria peça como uma adaptação cinematográfica multicolorida.

A narrativa de Asteroid City é totalmente fragmentada e descontinuada, o que dificulta nossa adesão incondicional. A frieza e distanciamento das situações e personagens não facilitam nem um pouco o mergulho na história. Aliás, pelo contrário, nos afasta do envolvimento. Um dos pontos cruciais que contribuem para este afastamento é a ausência de um protagonista consistente. Em Grande Hotel Budapeste (2014), por exemplo, que apresentava uma estrutura dramática semelhante, tínhamos a figura do Monsieur Gustave, interpretado por Ralph Fiennes, que acompanhávamos com interesse, pois fazia a costura em todas as subtramas.


O isolamento da cidadezinha, que em dado momento é submetida a um processo de quarentena, nos remete a uma analogia ao período pandêmico a que fomos submetidos recentemente. Uma outra referência de Asteroid City, com seu misto de paranoia militarista, ameaças do exterior e uma bem-humorada homenagem aos filmes de ficção científica da década de 50, traz ecos de Marte Ataca, de Tim Burton.

Um fato cada vez mais evidente é que Wes Anderson está excessivamente refém de uma estética, que tem lá seu charme como estilo, como assinatura autoral, mas não avança e inibe novos olhares. Quando a construção estética é prioritária, em desfavor do ritmo, há algo de errado acontecendo. Em Asteroid City esta fragilidade do cinema de Anderson fica escancarada. A pegada retrô está lá. Assim como a criativa paleta de cores, as composições cênicas de encher os olhos, o humor nonsense, tipos bizarros, elenco recheado de estrelas. Mas o conjunto definitivamente não funciona na plenitude desta vez.

Asteroid City é lindo como uma bolha de sabão. Mas é igualmente vazio e fugaz.

Assista ao trailer: Asteroid City


Jorge Ghiorzi / Membro da ACCIRS

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A Era de Ouro: a música não pode parar

 

O que Donna Summer, Kiss, Gladys Knight e Village People têm em comum? A resposta é: Neil Bogart. Quem é Neil Bogart? Ele foi um executivo do mercado fonográfico, criador da Casablanca Records, apontada como a maior gravadora independente de todos os tempos, e descobridor de talentos musicais com potencial de sucesso comercial, como essa turma aí já citada e outros tantos.

Neil Bogart era um sonhador e um gênio em sua área de atuação. Ele foi um dos primeiros empresários e empreendedores do mundo do chamado show biz a entender a música popular moderna (a partir dos anos 60) como uma experiência para o público. O valor não estava apenas na música em si ou na venda de LPs. Em sua visão tratava-se de um pacote completo: discos, shows, merchandising, excursões, execução em rádios, etc. Parece óbvio hoje, mas era inovador e ousado no início dos anos 70, quando Neil Bogart “descobriu” e contratou seu primeiro nome na música: o grupo Kiss.


Falecido há 41 anos, Neil Bogart ganha uma cinebiografia em A Era de Ouro (Spinning gold, 2023), que retrata os bastidores e a trajetória da criação da gravadora Casablanca, da quase falência até o sucesso estrondoso na segunda metade dos anos 70. O legado de Bogart foi levado às telas por seu filho, Timothy Scott Bogart, roteirista e diretor do longa-metragem. Isto já dá a senha do que assistiremos nas pouco mais de duas horas de filme. A cinebiografia é 100% oficialista, chapa branca mesmo, ao apresentar os fatos, sejam eles verídicos na totalidade ou parcialmente reinterpretados, mas sempre favoráveis a seu protagonista. Ainda que este fato possa eventualmente macular o contexto histórico e a realidade dos fatos, vale ressaltar que a narrativa é muito envolvente e a trilha sonora não deixa ninguém indiferente.


A Era de Ouro é nostálgico e memorialista, com efeitos distintos na plateia, ao revelar um contraste geracional. Aqueles contemporâneos da Era Disco, quando a rainha Donna Summer comandava as pistas de dança, mergulham fundo no momento. No entanto, para os milênios da Geração Z tudo pode soar um tanto cafona e desinteressante.

O filme é uma elegia ao nome e à obra de Neil Bogart, uma espécie de aventureiro romântico em seu embate contra as gigantes que dominavam o mercado fonográfico. Neste aspecto a produção capta nossa empatia, ainda que Bogart, em certa medida possa ter sido apenas uma espécie de herói-bandido muito bem sucedido.


O passado do empresário é repleto de histórias um tanto farsescas, que só reforçam o mito. Ele foi divulgador de gravadora, dançarino, vocalista de um grupo de rock (com um único sucesso) e ator pornô (segundo consta, uma única vez). O grande John Ford já disse que quando a lenda é mais interessante que a realidade - ou maior que o fato, segundo algumas versões -, imprima-se a lenda. Timothy Scott Bogart parece ter se inspirado muito neste princípio ao recriar a história de seu pai.

Alternando episódios marcantes da trajetória de Neil Bogart com recriação de apresentações musicais dos principais artistas do casting da Casablanca Records, A Era de Ouro tem pelo menos uma sequência marcante, definidora do momento de virada de chave que determinou o sucesso da gravadora: a sessão de regravação da música I Feel Love, de Donna Summer, o futuro sucesso global que salvou a Casablanca da falência.


Neil Bogart é interpretado pelo ator e cantor Jeremy Jordan. Em 2013 Justin Timberlake chegou a assinar contrato para estrelar a futura cinebiografia. Vale lembrar que A Era de Ouro não é exatamente a primeira vez que Neil Bogart é recriado no cinema. Em 1980 a comédia A Música Não Pode Parar, uma fake biografia da criação do grupo Village People (estrelada pelos próprios integrantes), apresentava um personagem parcialmente baseado em Bogart. O filme foi uma bomba monumental tão gigante que foi a inspiração para a criação dos prêmios Framboesa de Ouro. 

Assista ao trailer: A Era de Ouro


Jorge Ghiorzi / Membro da ACCIRS

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quarta-feira, 2 de agosto de 2023

Loucas em Apuros: da China com humor

 

Quatro amigas, descendentes de famílias de imigrantes asiáticos radicados nos EUA, embarcam em uma viagem para a China. O pretexto da viagem? Procurar a mãe biológica de uma delas, que foi adotada, ainda criança, por uma típica família americana. Ou seja, ela nunca conheceu sua terra natal, e muito menos ainda a cultura e tradições. O que temos então é uma tentativa de volta às origens, uma busca pelas raízes.

Falando assim parece uma história séria, um drama pesado. Não é verdade? Pois então, Loucas em Apuros (Joy Ride, 2023) é tudo, menos isso. O tom comédia já dá as caras na primeira sequência – e prossegue até o final -, quando as duas principais amigas da trama se conhecem, ainda garotinhas. Daquele encontro, em uma pracinha do bairro, nasceu uma amizade para o resto da vida. Pelo menos até a citada viagem, que coloca em jogo uma série de questões pessoais, reprimidas após tantos anos de convivência.


O tour chinês das mulheres tinha a princípio um propósito bem definido. O que elas não contavam era a sequência de perrengues que se sucedem, sem parar. É justamente nestas situações que elas se deparam com as diferenças culturais, que logo se manifestam através de questões de racismo, xenofobia, preconceito. Não mais das vezes praticado de forma reversa, com muita graça. Ainda que descentes de asiáticos, as mulheres são tratadas como estranhas em terra estranha, em razão da cultura ocidental que carregam.

Esta problemática é apenas o pano de fundo. O que Loucas em Apuros busca mesmo é o humor, a crítica, as piadas politicamente incorretas e as situações moderadamente escatológicas. O filme, dirigido por Adele Lim (cineasta nascida na Malásia), força a mão em diversos momentos, em busca do riso da plateia a qualquer custo, ainda que o riso por vezes possa ser constrangido. Outro ponto a destacar é a ousadia em esticar a corda do humor até os limites do que o mainstream tolera. O nome de Seth Rogen assinando a produção certamente é benéfico para assegurar a circulação mais ampla do filme.

O filme Adele Lim, com as devidas ressalvas da comparação, pode ser visto como uma versão feminina de Se Beber, Não Case. Divertido, hilário, inteligente, com forte recado em favor da emancipação feminina, Loucas em Apuros tem no elenco Stephanie Hsu, indicada como atriz coadjuvante por Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo.

Assista ao trailer: Loucas em Apuros


Jorge Ghiorzi / Membro da ACCIRS

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quarta-feira, 19 de julho de 2023

Barbie: uma fábula feminista

 

Lançada pela Mattel em 1959, a Barbie foi a primeira boneca a representar uma mulher adulta. Até então a indústria só produzia bonecas representando bebês, estimulando nas meninas crianças a crença de que o papel de mãe seria o único destino possível para as mulheres na vida adulta – a propósito, esta ideia é brilhantemente mostrada na criativa sequência de abertura. A chegada da Barbie foi um sucesso absoluto, uma revolução que mudou o mercado para sempre. A grande sacada viria um pouco mais adiante, quando a Mattel lançou as diversas versões da Barbie, com seus respectivos acessórios: a médica, a executiva, a jogadora de tênis, a bailarina, a top model e outras tantas. Um universo próprio foi criado e fechado em torno das Barbies, inclusive com direito a um “namorado” de ocasião, o Ken.

É exatamente neste ponto da História que inicia a estória da versão cinematográfica live-action, Barbie (Barbie, 2023), dirigida pela cult e descolada Greta Gerwig (Francis Ha, Lady Bird e Adoráveis Mulheres), com roteiro escrito em parceria com o companheiro Noah Baumbach.


O dia amanhece na Barbilândia, o mundo perfeito onde vive a bela Barbie (Margot Robbie). O sol a pino é um convite para ir à praia, curtir, rir e dançar com as amigas, as outras “Barbies”. Enquanto elas se divertem pra valer, como se não houvesse amanhã, Ken (Ryan Gosling), e os demais “Kens”, ficam fazendo poses exibicionistas para atrair a atenção das meninas. Esse era um dia normal na Barbilândia, até que o inesperado acontece. Nossa heroína Barbie descobre, para seu espanto absoluto, que algo profundamente errado não está certo, quando surgem alguns pequenos probleminhas mundanos em seu corpinho irretocável. Aconselhada pela boneca “doida” do pedaço, Barbie decide sair de Barbilândia e partir para o nosso mundo real em busca da solução para seus problemas. À tiracolo, o vaidoso Ken embarca também nessa viagem. O que se imaginava acontece: os dois mundos, com suas realidades e regras muito diferentes, colidem e o caos se instala.


A Barbie apresentada por Greta Gerwig é uma Barbie pós-moderna, como pede os tempos revisionistas atuais. Ainda que em seus primeiros momentos a personagem reproduza modelos tradicionais de comportamento, a evolução da consciência da boneca é o grande arco dramático a que o filme se propõe. O mesmo ocorrendo com Ken, que inicialmente reforça o estereótipo machista e patriarcal, até a esperada desconstrução da figura masculina.


Sim, Barbie é uma produção essencialmente feminina e feminista, com uma pegada crítica mordaz, mas sem abrir mão da leveza e do humor, em favor de uma agenda que está longe de ser panfletária. Trata-se de um grande produto da indústria – com o ônus e o bônus desta condição - mas o recado está lá, explícito na tela, para quem quiser ver. A lamentar que o público infantil, que deverá lotar as salas de cinema, não tenha ainda o alcance necessário para a compreensão plena das referências e do posicionamento político e social proposto pelo filme.

Barbie acerta em cheio na concepção visual, na estética e na dinâmica das personagens, que transforma um “mundo de boneca” em uma divertida e multicolorida aventura live-action com gostinho de sessão da tarde.

Assista ao trailer: Barbie


Jorge Ghiorzi / Membro da ACCIRS

janeladatela@gmail.com


Oppenheimer: um exercício de imersão sensorial e estética

 

Uma certa tendência à grandeza e grandiloquência, marca registrada na quase totalidade da obra de Christopher Nolan, está ostensivamente presente nas três horas de duração do drama histórico Oppenheimer (Oppenheimer, 2023). A cinebiografia do físico J. Robert Oppenheimer, que passou à História como “pai da bomba atômica”, transita do universo quântico das partículas subatômicas até a vastidão do globo terrestre e além. Uma viagem que coloca o espírito humano à prova em sua eterna busca pela dominação das forças que regem a natureza. O que Albert Einstein teorizou, Oppenheimer colocou em prática, inaugurando uma nova Era para a humanidade.

Anos 40. Segunda Guerra Mundial. Os alemães nazistas avançam nas pesquisas para desenvolver uma arma nuclear. Caso fossem vitoriosos neste experimento bélico a Alemanha se tornaria incontestavelmente invencível, e a conquista global seria um fato inevitável. Este é o cenário que dá o ponto de partida do filme de Nolan. Os Estados Unidos, inicialmente neutros no conflito, após o ataque japonês à Pearl Harbor, foram induzidos a abandonar a isenção e mergulhar de cabeça na guerra que colocava em risco a liberdade na Europa, particularmente do aliado Reino Unido.


A risco da criação pelos alemães de uma bomba a partir da fissão nuclear acelerou a pesquisa científica dos norte-americanos. Assim surgiu o secretíssimo Projeto Manhattan, liderado pelo Oficial do Corpo de Engenheiros do Exército dos Estados Unidos, Leslie Groves (Matt Damon), e o físico teórico J. Robert Oppenheimer (Cillian Murphy). Os cientistas e físicos mais destacados dos EUA foram convocados para se dedicarem em tempo integral ao desenvolvimento daquela que seria a primeira bomba atômica do mundo. Para tanto ficaram isolados por três anos em uma cidade-laboratório especialmente construída em Los Álamos, no meio do deserto do Novo México. O final desta história sabemos todos: a bomba atômica foi desenvolvida, mas não a tempo de ser utilizada contra a Alemanha nazista, que assinou rendição antes, diante das Forças Aliadas que invadiram Berlim. Mas, a Segunda Guerra prosseguia no front asiático, especialmente com o Japão, que se recusava a depor armas. Após um bem sucedido teste no deserto (uma sequência primorosa), poucos dias depois as duas primeiras bombas atômicas foram lançadas sobre as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki, em agosto de 1945.

Uma das críticas contumazes atribuídas aos filmes de Christopher Nolan é que eles despendem muito esforço narrativo ao tentar explicar em demasia determinadas situações e/ou aspectos técnicos com diálogos por demais expositivos. Há em Oppenheimer uma reversão de expectativa neste sentido. Por mais que as questões da física quântica e nuclear sejam estranhas aos leigos – portanto, exigissem uma abordagem mais didática -, o fato é que desta vez o realizador mostra-se mais comedido. É inclusive econômico nas explicações científicas. Mantem-se na exposição dos conceitos básicos, suficientes para a compreensão essencial do espectador, que acaba conectando-se ao drama pelo o que ele tem de conflito moral, e não pelo o que oferece em termos de ciência. Esta decisão favorece nossa empatia com a batalha pessoal e os dramas de consciência do protagonista.


Oppenheimer opera em quatro abordagens distintas que se alternam ao longo das já citadas três horas de duração. Há em cena, simultaneamente, com pesos relativamente equilibrados e linhas temporais próprias (como em Dunkirk), uma empolgante narrativa de experimento científico, uma ágil trama de espionagem industrial, um emocionante drama político e um comovente drama pessoal com toques de tragédia. Embalando tudo, com muita criatividade estética, qualidade técnica e sensibilidade artística, uma irretocável percepção de espetáculo de entretenimento que Christopher Nolan já demonstrou em muitas oportunidades.


Isento de posicionamento moral, Oppenheimer, o filme, reflete em essência a incógnita que é Oppenheimer, o homem. O renomado físico era uma figura dúbia, controversa, com viés de vaidade mal disfarçada. Oppenheimer é um sedutor exercício de imersão sensorial e estética, que apresenta um belíssimo painel de um período histórico conturbado, cujas consequências abriram as portas para a Guerra Fria, que perdurou por cerca de quatro décadas.

Uma curiosidade: o Projeto Manhattan já havia sido tema de um filme em 1989, chamado O Início do Fim (Fat Man and Little Boy), dirigido por Roland Joffé (de Os Gritos do Silêncio e A Missão). O papel do Oficial militar Leslie Groves, vivido por Matt Damon no filme de Nolan, foi interpretado por Paul Newman no filme de Joffé.

Assista ao trailer: Oppenheimer

 

Jorge Ghiorzi / Membro da ACCIRS

janeladatela@gmail.com