As
duas primeiras adaptações de livros de Agatha Christie, capitaneadas por Kenneth
Branagh, foram Assassinato no Expresso Oriente (2017) e Morte no Nilo
(2022). Não eram exatamente novidades, pois tratavam-se de remakes de filmes já
realizados anteriormente. Desta vez a escolha recaiu sobre um livro nunca antes
adaptado. Portanto, tem-se aí uma novidade e uma aposta, que por si só já tem a
capacidade de potencializar o interesse. Os dois primeiros títulos da franquia
funcionaram como teste para estabelecer a estética e a nova abordagem nas
adaptações de Agatha Christie no século 21. E, claro, apresentar ao mundo a
nova face do investigador Hercule Poirot, no caso, o próprio Kenneth Branagh, que
atua também como diretor. A boa receptividade mostrou que o caminho era
correto, e comprovou que ainda há espaço para novas aventuras do famoso
investigador de origem belga.
Assim,
chegamos a este A Noite da Bruxas (A Haunting in Venice, 2023),
baseado em um dos últimos livros escritos por Agatha Christie, lançado no final
dos anos 60, apenas sete anos antes de sua morte. O detetive Hercule Poirot (Kenneth
Branagh) está aposentado, vivendo as delícias do exílio na bela Veneza,
distante da rotina de investigação de novos casos. Mas os casos misteriosos
insistem em se aproximar de Poirot. A convite de sua amiga escritora de livros
policiais, Ariadne Oliver (Tina Fey), ele vai a uma festa de Halloween em um
palácio veneziano abandonado. Lá haveria uma sessão espírita, e a proposta é
que Poirot desmascare a médium (Michelle Yeoh) se fazendo valer da sua
capacidade de dedutiva e racional. Mas, nem tudo ocorre como o previsto.
Naquela noite das bruxas ocorre um assassinato e Hercule Poirot não resiste ao
chamado. Entra novamente em cena para elucidar o mistério em meio às gôndolas
de Veneza e vários suspeitos.
Aqueles
que leram o livro já percebem de imediato que algo de muito errado não está certo.
A história original não se passa em Veneza, nem sequer há uma sessão espírita.
O roteiro utilizou apenas alguns personagens da obra, ainda assim, em contextos
bem diversos. Isto sem falar na trama central, totalmente recriada a ponto de tornar
o plot original irreconhecível. Há ainda uma alteração substancial. No
livro de 1969 muitos personagens vitais para a trama são crianças e jovens, algumas
como vítimas, outras como suspeitas.
A
opção pelo politicamente correto muito certamente vetou a possibilidade de uma
grande produção de estúdio (com a presença da Disney na distribuição) mostrar
crianças/jovens como potenciais delinquentes, criminosos e assassinos. A rainha
do crime, Agatha Christie, foi bem menos puritana e realista quando escreveu a
obra há mais de 50 anos.
Das
três encarnações de Kenneth Branagh como Hercule Poirot, esta parece ser a mais
comedida, com uma postura menos blasé, o que transforma o personagem,
pouco a pouco, em uma figura cada vez mais pop e próxima do espírito dos tempos
atuais. Conversar com as plateias mais jovens - não necessariamente formada por
leitores dos livros - faz todo sentido para uma franquia que pretende se
estender ainda para outros tantos títulos. No mais, o velho Poirot de guerra
está presente: presunçoso, afetado, racional e brilhante.
Sem
abandonar o mistério investigativo, A Noite das Bruxas introduz, um
tanto forçosamente, um viés de terror (em contraposição ao ceticismo de Poirot) como recurso narrativo, com direito a fantasmas e
assombrações. A trama, substancialmente alterada, busca uma coerência que
dificilmente alcança ao longo dos 100 minutos. Kenneth Branagh e seu roteirista,
Michael Green, apostaram alto com as alterações profundas que impuseram à
história. O resultado carece de credibilidade, não inspira o terror psicológico
pretendido e não entrega um mistério realmente sedutor, a chave do sucesso da
obra de Agatha Christie. A Noite das Bruxas fica a meio caminho e
naufraga nas águas de Veneza.
Assista ao trailer: A Noite das Bruxas
Jorge Ghiorzi
Membro da ACCIRS – Associação de
Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul
Contato: janeladatela@gmail.com