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terça-feira, 12 de setembro de 2023

A Noite das Bruxas: mistério em Veneza


As duas primeiras adaptações de livros de Agatha Christie, capitaneadas por Kenneth Branagh, foram Assassinato no Expresso Oriente (2017) e Morte no Nilo (2022). Não eram exatamente novidades, pois tratavam-se de remakes de filmes já realizados anteriormente. Desta vez a escolha recaiu sobre um livro nunca antes adaptado. Portanto, tem-se aí uma novidade e uma aposta, que por si só já tem a capacidade de potencializar o interesse. Os dois primeiros títulos da franquia funcionaram como teste para estabelecer a estética e a nova abordagem nas adaptações de Agatha Christie no século 21. E, claro, apresentar ao mundo a nova face do investigador Hercule Poirot, no caso, o próprio Kenneth Branagh, que atua também como diretor. A boa receptividade mostrou que o caminho era correto, e comprovou que ainda há espaço para novas aventuras do famoso investigador de origem belga.


Assim, chegamos a este A Noite da Bruxas (A Haunting in Venice, 2023), baseado em um dos últimos livros escritos por Agatha Christie, lançado no final dos anos 60, apenas sete anos antes de sua morte. O detetive Hercule Poirot (Kenneth Branagh) está aposentado, vivendo as delícias do exílio na bela Veneza, distante da rotina de investigação de novos casos. Mas os casos misteriosos insistem em se aproximar de Poirot. A convite de sua amiga escritora de livros policiais, Ariadne Oliver (Tina Fey), ele vai a uma festa de Halloween em um palácio veneziano abandonado. Lá haveria uma sessão espírita, e a proposta é que Poirot desmascare a médium (Michelle Yeoh) se fazendo valer da sua capacidade de dedutiva e racional. Mas, nem tudo ocorre como o previsto. Naquela noite das bruxas ocorre um assassinato e Hercule Poirot não resiste ao chamado. Entra novamente em cena para elucidar o mistério em meio às gôndolas de Veneza e vários suspeitos.


Aqueles que leram o livro já percebem de imediato que algo de muito errado não está certo. A história original não se passa em Veneza, nem sequer há uma sessão espírita. O roteiro utilizou apenas alguns personagens da obra, ainda assim, em contextos bem diversos. Isto sem falar na trama central, totalmente recriada a ponto de tornar o plot original irreconhecível. Há ainda uma alteração substancial. No livro de 1969 muitos personagens vitais para a trama são crianças e jovens, algumas como vítimas, outras como suspeitas.


A opção pelo politicamente correto muito certamente vetou a possibilidade de uma grande produção de estúdio (com a presença da Disney na distribuição) mostrar crianças/jovens como potenciais delinquentes, criminosos e assassinos. A rainha do crime, Agatha Christie, foi bem menos puritana e realista quando escreveu a obra há mais de 50 anos.


Das três encarnações de Kenneth Branagh como Hercule Poirot, esta parece ser a mais comedida, com uma postura menos blasé, o que transforma o personagem, pouco a pouco, em uma figura cada vez mais pop e próxima do espírito dos tempos atuais. Conversar com as plateias mais jovens - não necessariamente formada por leitores dos livros - faz todo sentido para uma franquia que pretende se estender ainda para outros tantos títulos. No mais, o velho Poirot de guerra está presente: presunçoso, afetado, racional e brilhante.


Sem abandonar o mistério investigativo, A Noite das Bruxas introduz, um tanto forçosamente, um viés de terror (em contraposição ao ceticismo de Poirot) como recurso narrativo, com direito a fantasmas e assombrações. A trama, substancialmente alterada, busca uma coerência que dificilmente alcança ao longo dos 100 minutos. Kenneth Branagh e seu roteirista, Michael Green, apostaram alto com as alterações profundas que impuseram à história. O resultado carece de credibilidade, não inspira o terror psicológico pretendido e não entrega um mistério realmente sedutor, a chave do sucesso da obra de Agatha Christie. A Noite das Bruxas fica a meio caminho e naufraga nas águas de Veneza.

Assista ao trailer: A Noite das Bruxas


Jorge Ghiorzi

Membro da ACCIRS – Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul

 

Contato: janeladatela@gmail.com


quarta-feira, 9 de março de 2022

“Belfast”: crônica irlandesa


A utilização das cores, ou sua ausência, é uma decisão estética que prenuncia a proposta memorialista de Belfast (Belfast, 2022) de Kenneth Branagh. O exercício de estilo se evidencia já na abertura com os planos aéreos da colorida capital da Irlanda do Norte nos dias atuais. Na sequência ocorre uma transição, as cores desbotam e retornam ao básico preto e branco. Num passe de mágica da edição somos transportados para o passado. Mais precisamente a Belfast de 1969, quando o realizador tinha apenas nove anos. A cidade passa a ser então apenas cenário, pois o protagonismo será do seu pequeno alter ego, Buddy (Jude Hill). Será sob seus olhos que seremos testemunhas de um doce e singelo acerto de contas com as memórias afetivas de Branagh. E que maneira melhor para um artista do audiovisual fazer isto senão através de um filme de recorte nostálgico?

À sua maneira Kenneth Branagh faz de Belfast um Amarcord (Fellini), um Roma (Cuarón), um Os Esquecidos (Truffaut) para chamar de seu. A referência não é gratuita, pois o cinema, de modo geral, está muito presente na crônica por meio das memórias dos filmes que Buddy assiste na TV (sempre em preto e branco) ou nas salas de exibição (sempre coloridos). Naquela época Belfast – e a Irlanda de modo geral – vivia tempos de guerra civil com os constantes embates entre protestantes e católicos.



No meio deste conflito encontramos pela primeira vez o pequeno Buddy. No caso específico, literalmente. Enquanto brincava na até então tranquila rua na frente de casa, em um bairro proletário dos subúrbios da cidade, o garoto vê, para seu espanto genuíno, uma guerra ser deflagrada bem na frente dos seus olhos. Em um elegante giro de 360º (tipo Cidade de Deus) a câmera identifica todo o entorno do personagem até assumirmos seu ponto de vista. Um bando de ativistas protestantes invade a rua e barbariza geral com bombas e tiros a quietude daquela gente, exigindo a retirada imediata de todos os católicos da região. Este episódio de violência vai afetar e determinar os destinos de Buddy e sua família a partir de então.


Para o garoto o conflito é apenas um acontecimento chato, que atrapalha as brincadeiras de rua devido às barricadas que os vizinhos do bairro montam nas esquinas para não serem novamente surpreendidos pelos ataques. Parcialmente alheio, ou ao menos sem a compreensão total do que está ocorrendo, Buddy na verdade está mais interessado nos filmes, no despertar do olhar para as garotas, nos chocolates surrupiados do armazém da esquina e nos papos com seus amorosos avós (Ciarán Hinds e Judi Dench, espetaculares). Em casa vive num lar com pais separados – não pelo casamento - mas pelas condições de trabalho. O pai (Jamie Dornan) trabalha em outra cidade e passa longas temporadas longe de casa. A mãe (Caitriona Balfe) assume a gestão da família, dos filhos, da sobrevivência em meio aos conflitos e das dívidas com o banco. Tudo isto leva a um ponto de inflexão que exigirá uma difícil decisão para a família: mudar de cidade para buscar melhores condições de vida, deixando para trás suas raízes culturais e afetivas, ou ficar lutando para tentar mudar uma realidade que ameaça o futuro dos filhos.


Tudo é narrado por Branagh de forma sincera, honesta e afetuosa, sem revelar dor excessiva. A guerra, o desemprego e as lutas religiosas são meros panos de fundo quando vistos pelos olhos inocentes de uma criança. O roteiro (do próprio diretor) opta por captar apenas o lado alegre da vida, apesar da realidade circundante eventualmente não ser um mar de rosas. Não é exatamente uma fuga da realidade, mas uma forma humanizada de resgatar o passado, como a nos dizer que, apesar de tudo, “éramos felizes e não sabíamos”.


Formalmente belo e sedutor, Belfast propõe uma visão humanizada – mas idealizada e romântica - de um momento decisivo da história da Irlanda. Não é assim que funcionam nossas reminiscências? Contamos as melhores partes e deixamos as dores para trás.  O longa representa também uma bem-vinda retomada de Kenneth Branagh aos filmes mais autorais. Nos últimos tempos ele vinha se especializando em ser um artesão de luxo de Hollywood realizando uma série de projetos grandiosos sob encomenda para os grandes estúdios, que procuram o verniz de um diretor de prestígio para comandar grandes filmes populares (Thor, Cinderela, Artemis Fowl). No início de carreira chegou a ser chamado de “novo Laurence Olivier” por dirigir e estrelar com grande sucesso uma versão de Henrique V em 1989. Que este reencontro de Branagh com o passado em Belfast sirva para reorientar sua carreira para novos rumos.

Assista ao trailer: Belfast

 

Jorge Ghiorzi

Membro da ACCIRS