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quarta-feira, 9 de março de 2022

“Belfast”: crônica irlandesa


A utilização das cores, ou sua ausência, é uma decisão estética que prenuncia a proposta memorialista de Belfast (Belfast, 2022) de Kenneth Branagh. O exercício de estilo se evidencia já na abertura com os planos aéreos da colorida capital da Irlanda do Norte nos dias atuais. Na sequência ocorre uma transição, as cores desbotam e retornam ao básico preto e branco. Num passe de mágica da edição somos transportados para o passado. Mais precisamente a Belfast de 1969, quando o realizador tinha apenas nove anos. A cidade passa a ser então apenas cenário, pois o protagonismo será do seu pequeno alter ego, Buddy (Jude Hill). Será sob seus olhos que seremos testemunhas de um doce e singelo acerto de contas com as memórias afetivas de Branagh. E que maneira melhor para um artista do audiovisual fazer isto senão através de um filme de recorte nostálgico?

À sua maneira Kenneth Branagh faz de Belfast um Amarcord (Fellini), um Roma (Cuarón), um Os Esquecidos (Truffaut) para chamar de seu. A referência não é gratuita, pois o cinema, de modo geral, está muito presente na crônica por meio das memórias dos filmes que Buddy assiste na TV (sempre em preto e branco) ou nas salas de exibição (sempre coloridos). Naquela época Belfast – e a Irlanda de modo geral – vivia tempos de guerra civil com os constantes embates entre protestantes e católicos.



No meio deste conflito encontramos pela primeira vez o pequeno Buddy. No caso específico, literalmente. Enquanto brincava na até então tranquila rua na frente de casa, em um bairro proletário dos subúrbios da cidade, o garoto vê, para seu espanto genuíno, uma guerra ser deflagrada bem na frente dos seus olhos. Em um elegante giro de 360º (tipo Cidade de Deus) a câmera identifica todo o entorno do personagem até assumirmos seu ponto de vista. Um bando de ativistas protestantes invade a rua e barbariza geral com bombas e tiros a quietude daquela gente, exigindo a retirada imediata de todos os católicos da região. Este episódio de violência vai afetar e determinar os destinos de Buddy e sua família a partir de então.


Para o garoto o conflito é apenas um acontecimento chato, que atrapalha as brincadeiras de rua devido às barricadas que os vizinhos do bairro montam nas esquinas para não serem novamente surpreendidos pelos ataques. Parcialmente alheio, ou ao menos sem a compreensão total do que está ocorrendo, Buddy na verdade está mais interessado nos filmes, no despertar do olhar para as garotas, nos chocolates surrupiados do armazém da esquina e nos papos com seus amorosos avós (Ciarán Hinds e Judi Dench, espetaculares). Em casa vive num lar com pais separados – não pelo casamento - mas pelas condições de trabalho. O pai (Jamie Dornan) trabalha em outra cidade e passa longas temporadas longe de casa. A mãe (Caitriona Balfe) assume a gestão da família, dos filhos, da sobrevivência em meio aos conflitos e das dívidas com o banco. Tudo isto leva a um ponto de inflexão que exigirá uma difícil decisão para a família: mudar de cidade para buscar melhores condições de vida, deixando para trás suas raízes culturais e afetivas, ou ficar lutando para tentar mudar uma realidade que ameaça o futuro dos filhos.


Tudo é narrado por Branagh de forma sincera, honesta e afetuosa, sem revelar dor excessiva. A guerra, o desemprego e as lutas religiosas são meros panos de fundo quando vistos pelos olhos inocentes de uma criança. O roteiro (do próprio diretor) opta por captar apenas o lado alegre da vida, apesar da realidade circundante eventualmente não ser um mar de rosas. Não é exatamente uma fuga da realidade, mas uma forma humanizada de resgatar o passado, como a nos dizer que, apesar de tudo, “éramos felizes e não sabíamos”.


Formalmente belo e sedutor, Belfast propõe uma visão humanizada – mas idealizada e romântica - de um momento decisivo da história da Irlanda. Não é assim que funcionam nossas reminiscências? Contamos as melhores partes e deixamos as dores para trás.  O longa representa também uma bem-vinda retomada de Kenneth Branagh aos filmes mais autorais. Nos últimos tempos ele vinha se especializando em ser um artesão de luxo de Hollywood realizando uma série de projetos grandiosos sob encomenda para os grandes estúdios, que procuram o verniz de um diretor de prestígio para comandar grandes filmes populares (Thor, Cinderela, Artemis Fowl). No início de carreira chegou a ser chamado de “novo Laurence Olivier” por dirigir e estrelar com grande sucesso uma versão de Henrique V em 1989. Que este reencontro de Branagh com o passado em Belfast sirva para reorientar sua carreira para novos rumos.

Assista ao trailer: Belfast

 

Jorge Ghiorzi

Membro da ACCIRS


quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

“Uncharted – Fora do Mapa”: corrida do ouro

A caça aos tesouros de ouro, base de muitas aventuras da literatura clássica e filmes de matinê da primeira metade do século XX, segue inspirando a imaginação dos roteiristas. Há, sem dúvida, um toque de nostalgia ao se resgatar este tipo de temática para o cinema do novo milênio. Um mundo onde o ouro, objeto cobiçado por 10 entre 10 exploradores de tesouros, já nem representa mais a melhor forma de conquistar fortunas no limite da ilegalidade. Um golpe com moedas criptografadas, ou saques virtuais de contas bancárias, por exemplo, seria bem mais fácil, rápido e “seguro”. Mas, reconheçamos, é um tanto sem graça. Onde ficaria a adrenalina da aventura?

Dito isto, chegamos a Uncharted – Fora do Mapa (Uncharted), dirigido por Ruben Fleischer (de Zumbilândia 1 e 2, Caça aos Gângsteres e Venom), uma aventura de ação que pretende reviver o clima dos antigos filmes de sessão da tarde, com a roupagem, a estética e o ritmo acelerado do cinema contemporâneo. A origem de Uncharted é bem menos nobre, pois não vem da literatura tradicional, mas sim do universo dos videogames. Trata-se de uma versão live action de uma série de muito êxito da Sony / PlayStation.


O esperto barman Nathan “Nate” Drake (Tom Holland), perito em pequenos golpes, é recrutado pelo caçador de tesouros Victor “Sully” Sullivan (Mark Wahlberg) para recuperar uma fortuna em ouro perdida há 500 anos, que valeria alguns bilhões de dólares. O que começa como um golpe, acaba se tornando uma aventura épica que se estende pela Europa e Ásia para alcançar o tesouro antes do implacável vilão espanhol, Santiago Moncada (Antonio Banderas), que acredita que é o herdeiro legítimo da fortuna. Se Nate e Sully forem capazes de decifrar as pistas para resolver um dos mistérios mais cobiçados do mundo, eles podem encontrar o tesouro e talvez até o paradeiro do irmão de Nathan, há muito tempo desaparecido.

A série Uncharted já conta com quatro volumes de jogos para as plataformas digitais. Para a adaptação a opção dos produtores foi não realizar um filme de origem, mas uma aventura que trouxesse elementos de vários dos jogos e expandisse seu contexto para a mídia cinematográfica. A preocupação era assegurar que o público não tivesse a necessidade de conhecer os jogos para acessar o universo do filme. Outra importante decisão do diretor Ruben Fleischer foi filmar preferencialmente (tanto quanto possível) em locações e sets construídos, ao invés de gerar tudo por computação gráfica, como é bastante comum. Cenários reais efetivamente trazem vida para a tela e tornam mais tangível o mundo da narrativa. Então, ponto para Uncharted neste quesito.


A dupla central Holland – Wahlberg funciona muito bem, deu liga como se diz. Já o mesmo não se pode dizer da coprotagonista Sophia Taylor Ali, que fica muitos pontos abaixo, destoa do clima geral e fica muito a desejar. Sua personagem, Chloe Frazer, é praticamente nula e irrelevante para o andamento da trama. No quesito participação de prestígio, Antonio Banderas tenta dar um ar de sofisticação ao vilão espanhol, mas parece estar em cena apenas para garantir um nome forte no pôster do filme, já que sua presença também pouco se justifica, não diz a que veio e pouco (ou nada) acrescenta à aventura de caça ao tesouro.

Exploradores em busca de relíquias históricas remetem inevitavelmente à figura icônica de Indiana Jones, a quem Uncharted reverencia e bebe na fonte em algumas sequências. Inclusive com uma breve citação literal ao nome do clássico personagem criado pela dupla Spielberg – Lucas há 40 anos (!), criando um momento curioso onde a ficção invade a ficção. Outra referência que o filme traz à memória é a aventura estrela por Nicolas Cage em 2004, A Lenda do Tesouro Perdido.


Uncharted – Fora do Mapa sofre da sina que costuma assolar a imensa maioria dos filmes adaptados de videogames. A sensação imersiva de um jogo digital costuma se perder quando reproduzida na tela grande. E não foi diferente aqui. A solução encontrada pelos roteiristas (a já citada utilização de partes de histórias de jogos diferentes) fragmenta por demais a narrativa e compromete a coesão. Parece estarmos diante de um roteiro escrito por inteligência artificial através de algoritmos. Está tudo ali, os personagens, a trama, o conflito, mas, algo não funciona em plenitude nesta experiência de gamificação. O saldo, não mais que mediano, talvez assegure uma sequência. Uma cena pós-crédito sugere isto. Que tenha mais sorte, ou competência, na próxima vez. Caso contrário, game over.

Assista ao trailer: Uncharted – Fora do Mapa


Jorge Ghiorzi

Membro da ACCIRS

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

“Moonfall – Ameaça Lunar”: mais um fim do mundo

 

Existem os Cavaleiros do Apocalipse. E existe Roland Emmerich. Todos com a mesma missão: destruir a Terra e aniquilar a humanidade. Os primeiros utilizaram como ameaças a peste, a guerra e a fome. Já o cineasta alemão vem tentando das mais diferentes formas: invasão alienígena, monstros gigantescos, aquecimento e resfriamento global, abalos sísmicos colossais. Ainda não conseguiu seu intento. Mas segue perseverando. Para a mais recente tentativa ele conta com o auxílio luxuoso do nosso satélite natural. Sim, ela mesmo, a Lua.

Mais legítimo herdeiro dos filmes catástrofe dos anos 70, Roland Emmerich, dadas as devidas proporções, é o Irvin Allen dos dias atuais. Quem não está ligando o nome à pessoa, Allen é o “mestre do desastre”, a mente criativa que concebeu seriados de TV como Viagem ao Fundo do Mar; Perdidos no Espaço; O Túnel do Tempo; Terra de Gigantes, e também se aventurou no cinema produzindo arrasa quarteirões (expressão bem adequada, diga-se) como O Destino do Poseidon (1972); O Enxame (1978) e o melhor filme catástrofe da década, apogeu do gênero, Inferno na Torre (1974).

Após a mal sucedida sequência de Independence Day (2016) Roland Emmerich resolveu retornar às origens, ou seja, investir em uma história original (!) com total liberdade de criação. E assim, chegamos a este Moonfall – Ameaça Lunar. Tudo começa quando uma força misteriosa tira a Lua da sua órbita e a coloca em rota de colisão contra a Terra. Semanas antes do impacto, e com o mundo à beira de aniquilação, Jo Fowler (Halle Berry), executiva e ex-astronauta da NASA, está convencida que tem a solução para salvar o planeta do desastre absoluto. Para colocar seu projeto em ação ela precisa recorrer a outro ex-astronauta, que caiu em desgraça após ser desligado da agência espacial, Brian Harper (Patrick Wilson). Junta-se a eles um pesquisador autodidata e teórico conspiracionista, K. C. Houseman (John Bradley), que na verdade foi a primeira pessoa a descobrir o problema da órbita lunar. Estes heróis improváveis são os únicos tripulantes da última missão suicida no espaço, deixando para trás todos os que amam, apenas para descobrir que a Lua não é exatamente o que pensávamos que era.

Colocando tudo na balança, Roland Emmerich mais uma vez apresenta um bem bolado fazendo uso de seus temas recorrentes. A saber: ameaça global + ciência questionada + herói desacreditado + coprotagonista improvável + núcleo familiar em crise + militares linha dura. Mexe aqui, remexe ali, e temos uma versão requentada das fórmulas de O Dia Depois de Amanhã e 2012. O que temos de bom nisso? Bem, se você desligar o botão do bom senso, da lógica e suspender a descrença, até pode se divertir. É cinemão pipoca na veia.

Então, se você entrar na sala de cinema com este espírito, já sabe o que vai encontrar. Não exija muito mais do que isto. Moonfall não tem ambição maior que não seja divertir. E aí talvez esteja seu mérito, pela honestidade da proposta. Roland Emmerich tem a absoluta certeza dos limites do que tem a oferecer. Então, seu esforço criativo é direcionado ao máximo para entregar minimamente um filme que estimule sensorialmente sua plateia, porque o cérebro deve ficar guardado na gaveta.


A sensação é que o realizador, por estar refém do seu formulismo, já está pouco se importando com o excesso de clichês que seus filmes apresentam. Tudo fica muito previsível, sem nuances e surpresas. Saldo positivo da tragédia anunciada: o filme diverte (quem estiver disposto a entrar na onda) e a Terra (ufa!) se salvou mais uma vez. O que o alemão estará tramando para o próximo ataque?

Assista ao trailer: Moonfall – Ameaça Lunar


Jorge Ghiorzi

Membro da ACCIRS

terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

“Teorema”: tudo em família

 

Cineasta intelectualizado, com fortes posições políticas de embate contra o fascismo e o capitalismo, o italiano Pier Paolo Pasolini (1922 – 1975) fez da obra cinematográfica uma plataforma de divulgação de sua visão de mundo e dos mecanismos que movem a sociedade ocidental. A origem proletária, a formação marxista e a sensibilidade para a poesia e os livros sempre estiveram de alguma forma presentes em seus filmes, quase todos a serviço de um discurso político.

Lançado há mais de meio século, Teorema (Teorema, 1968) é um primoroso exemplo do cinema engajado e evangelizador de Pasolini. Este drama social foi construído sob uma perspectiva de classes sociais, a partir da crise de identidade de uma família burguesa, símbolo de um modelo de capitalismo que chegava ao esgotamento na segunda metade dos anos 60.


Acostumada a usufruir as benesses do conformo material, a família retratada em Teorema entra em colapso com a entrada de um elemento estranho na rotina da casa. Tal um vírus que corrompe a integridade do tecido social das relações familiares, um hóspede inesperado (Terence Stamp) chega à mansão e se incorpora naturalmente na rotina de todos. Nada sabemos sobre ele, nem as razões de sua chegada. Mas os efeitos da sua passagem são transformadores para o futuro de todos.

Em Milão a rica família burguesa formada pelo empresário Paolo (Massimo Girotti), a esposa Lucia (Silvana Mangano), os filhos Pietro (Andrés José Cruz Soublette) e Odetta (Anne Wiazemsky, na época musa e companheira de Jean-Luc Godard, cuja relação foi retratada no longa-metragem O Formidável) e ainda a empregada Emilia (Laura Betti), é totalmente alterada com a chegada de um misterioso visitante. Um a um todos são seduzidos pelo estranho, que desperta sentimentos reprimidos, particularmente os desejos de ordem sexual. Em seus contatos individuais com os membros da família todos se redescobrem e passam a encarar a vida sob uma nova perspectiva, distantes do tédio existencial no qual estavam mergulhados.


Poucos dias depois, tão inesperadamente como chegou, o estranho visitante parte e deixa a família. E nunca mais eles serão os mesmos. Suas existências foram irremediavelmente alteradas. O que antes era apenas um tédio existencial, se transforma então em desconforto existencial. Ninguém mais cabe na vida que vivia anteriormente. Cada um busca a solução de suas angústias trilhando seu próprio caminho de descoberta. O empresário entrega a fábrica aos empregados, se despe de todos os bens – literalmente a própria roupa inclusive - e vaga nu pelo deserto. A mãe sucumbe aos desejos da carne fazendo sexo aleatório com jovens que encontra pela rua. O filho surta e passa a pintar quadros abstratos com fezes e urina. A filha fica catatônica sobre a cama, sem falar nem se comunicar com ninguém. E a empregada doméstica, em delírio religioso, retorna para sua vila de origem assumindo a condição de santa milagreira.


O visitante é o elemento desagregador que embaralha a “ordem natural das coisas”, como diz um personagem a dado momento. O processo de “revelação” que provoca nos integrantes da família os leva a revisar valores e dogmas aos quais estavam submetidos. O processo de conversão do visitante se dá tanto por estímulos intelectuais – uso da palavra – quanto por estímulos sexuais – a sedução despudorada do corpo, disponível igualmente para o prazer de homens e mulheres. Não são gratuitos, portanto, os enquadramentos da fotografia que sempre privilegiam a zona genital do visitante sedutor. A narrativa em essência explora os conceitos de Eros (pulsão de vida) e Thanatos (pulsão de morte), os instintos fundamentais do comportamento, segundo Sigmund Freud. Em Teorema Pasolini propõe a necessidade de uma volta à essência do ser humano, integralmente despido dos valores burgueses e religiosos acumulados ao longo dos tempos.

Assista o trailer: Teorema


(Texto originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em dezembro de 2017)


Jorge Ghiorzi

Membro ACCIRS

quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

“Belle”: vida dupla

 


Não é mais apenas uma tendência. É fato. A realidade virtual, rebatizada como Metaverso, já está presente e seus efeitos se manifestarão através das formas disruptivas como interagiremos com o mundo físico daqui pra frente. A influência, na verdade, será intercambiável, uma via de mão dupla. Este é o universo preconizado na animação nipo-francesa Belle, uma realização de Mamoru Hosoda, o mesmo do premiado Guerra de Verão (Summer Wars, 2009), que também tratava de mundos simulados de realidade virtual.

A protagonista da nova fantasia científica de Hosoda é uma estudante de 17 anos, chamada Suzu. A mãe morreu em um ato de bravura para salvar uma criança, quando Suzu ainda era bem pequena. A tragédia abalou sua vida. Ela torna-se uma adolescente calada, reprimida, com poucos amigos. Certo dia a jovem decide conhecer o mundo de “U”, um ambiente virtual de 5 bilhões de membros na internet. Lá Suzu se transforma no avatar chamado Belle, incorporando a personalidade de uma cantora de grande sucesso. Em suas viagens pelo metaverso Belle conhece uma criatura misteriosa com aparência de um dragão. Juntos eles embarcam em uma jornada de aventuras e desafios que vão revelar suas verdadeiras identidades e seus mais íntimos valores como seres humanos.


A história de Belle traz algumas referências simbólicas de “A Bela e a Fera”, mas vai além, pois expande os temas e faz uma releitura do famoso conto de fadas adaptando-o à realidade tecnológica que vivemos hoje. A essência da mensagem é mantida: não devemos julgar apenas pelas aparências, o verdadeiro valor está no caráter. Pois é justamente este “viver de aparências” o grande apelo do ambiente virtual. Podemos ser e parecer como desejamos, vivendo uma versão idealizada de nós mesmos, ainda que falsa. Estão aí as redes sociais para provar isso.

A personagem central de Belle inicialmente deixa-se seduzir por todas as possibilidades de realização pessoal que o mundo de “U” proporciona. Vive momentos de glória conquistando milhões de fãs, bem diferente da sua vida recatada no mundo físico, real. Mas algo de errado não está certo. Logo a jovem passa a sofrer a pressão social de ser o que em realidade não é, ainda que seja no mundo de faz de conta do ambiente digital. Afetada por aquela “realidade” a jovem entra em conflito interior por não mais encontrar propósito em uma vida fabricada. Tudo muda, no entanto, quando encontra a misteriosa “fera” que assombra a comunidade virtual. Assume então como missão saber mais sobre a estranha figura, descobrir sua origem, suas dores, seus medos interiores e as razões que fazem com que viva reclusa em sua casa/castelo.


Como animação Belle é um maravilhoso espetáculo de criatividade, concepção estética, cores e música que justificam os 14 minutos ininterruptos de aplausos que recebeu no Festival de Cannes de 2021. O filme de Mamoru Hosoda, na verdade, tem muito mais a oferecer além do deleite visual e sensorial. O roteiro percorre todas as angústias da protagonista, transitando do humor ao deslumbramento, sem perder o foco ao narrar uma trama envolvente que conquista a cumplicidade do espectador.


Há ainda um subtexto que critica a era tecnológica e os perigos inerentes que o uso massivo do metaverso pode causar nos jovens, que correm o risco de desconectar da realidade física no momento mais decisivo da formação de suas personalidades. Por vezes o perigo está logo ali, dentro de nossas casas, representado pelo abuso e alienação parental. Belle é um ótimo conto de fadas tecnológico, que não abre mão de oportunas discussões de aceitação e representação social.


Assista ao trailer: Belle


Jorge Ghiorzi

Membro da ACCIRS

quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

“Eduardo & Mônica”: eclipse total do coração


Ele gosta de Bonnie Tyler. Ela gosta de David Bowie. Preferências e diferenças irreconciliáveis, só que não, como mostra Eduardo & Mônica. O drama romântico, dirigido por René Sampaio, é baseado na conhecida canção de sucesso do Legião Urbana, composta por Renato Russo. Realizada pela mesma equipe e diretor de Faroeste Caboclo de 2013 (também inspirado por uma canção do Legião Urbana), a produção enfrentou problemas para ser lançada. A pandemia e o fechamento das salas de cinema adiaram por duas vezes a estreia, inicialmente prevista para o primeiro semestre de 2020.

Frequentemente se diz que algumas composições de Renato Russo são praticamente roteiros prontos de filme, pois contemplam características de um bom storytelling ao narrar histórias envolventes e cativantes. Então, o caminho naturalmente esperado era esse mesmo, acabar nas telas de cinema. A boa receptividade com Faroeste Caboclo estimulou a repetição da fórmula. E, sim, deu muito certo, superando até mesmo a primeira experiência.


O filme (assim como a canção) conta uma história de amor que acompanha o relacionamento do estudante Eduardo (Gabriel Leone) e da artista plástica Mônica (Alice Braga), que precisam superar suas muitas diferenças, de idade, de personalidade, de criação familiar, de cultura, de perspectivas de vida, de gostos musicais e literários. O cenário dessa história de conquistas, descobertas e aprendizados é a Brasília dos anos 80, marcada pelo fim do regime militar em contraste com a ebulição do rock brasileiro.

Um tema ostensivamente presente em Eduardo & Mônica é a possibilidade da convivência e aceitação dos diferentes e opostos. Olhar condescendente e delicado do diretor René Sampaio torna perfeitamente aceitável e crível a construção de um relacionamento, seja amoroso ou apenas de amizade, baseado na compreensão e no respeito a quem pensa muito diferente.


A manutenção do tempo (anos 80) e espaço (capital federal), onde transcorre a “história” original da canção de Renato Russo, foi fundamental para preservar sua essência, um tanto ingênua e romântica, diga-se de passagem, o que garante que a narrativa fique de pé e flua com naturalidade. Seria praticamente uma impossibilidade adaptar a história para os tempos contemporâneos. Eduardo & Mônica se apresenta como um belo e nostálgico retrato de um tempo que já passou. Uma pequena joia arqueológica da cultura pop brasileira. Destaque-se, aliás, o roteiro enxuto e muito bem amarradinho escrito por Matheus Souza com a colaboração final de outros três roteiristas (Cláudia Souto, Jéssica Candal e Michele Frantz).

A dupla de protagonistas, Gabriel Leone e Alice Braga, funciona muito bem em cena. A interação entre eles é um dos pontos altos do filme e garantem momentos de grande sensibilidade e entrega emocional. A primeira declaração de amor de Eduardo para Mônica, por exemplo, é um daqueles momentos que capturam a plateia, que se deixa levar definitivamente por aquela improvável história de amor. Eduardo & Mônica demorou para chegar às telas dos cinemas, mas certamente vai ficar por muito tempo na memória do público que vai sair da sessão cantarolando: “Quem um dia irá dizer que não existe razão nas coisas feitas pelo coração...”. 

Assista ao trailer: Eduardo & Mônica


Jorge Ghiorzi / Membro da ACCIRS

quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

“Amor, Sublime Amor”: recriação de um clássico

 


Em 1961 o musical Amor Sublime Amor, adaptado de um bem-sucedido espetáculo da Broadway, caiu como uma bomba na envelhecida Hollywood. Foi um sopro de renovação em vários aspectos do gênero, da encenação à cenografia realista, da interpretação às coreografias inovadoras que incorporavam movimentos livres, distantes da dança clássica. É até hoje o musical mais premiado da história com suas 10 estatuetas do Oscar, três Globos de Ouro, dois Grammys e outras tantas premiações.

Este estimado clássico do cinema norte-americano, exatos 60 anos depois, ganha uma refilmagem pelas mãos de um dos mais estimados e premiados diretores do cinema norte-americano. Por definição, potencialmente uma temeridade, um risco demasiado para resultados que poderiam ser devastadores para os envolvidos. Coube a Steven Spielberg esta, digamos, ousadia de mexer em um ícone. Justamente ele, que em sua extensa e destacada filmografia, com mais de trinta longas-metragens, apenas uma única vez apostou em uma refilmagem (Guerra dos Mundos) e nunca havia dirigido um musical.


O conhecido entrecho da paixão proibida dos amantes de famílias rivais de Romeu e Julieta, tragédia escrita por William Shakespeare, é o cerne da narrativa do libreto escrito nos anos 50 por Arthur Laurent, que viria a se transformar no famoso espetáculo da Broadway. Em Amor, Sublime Amor (West side story) a medieval Verona é substituída pelo Upper West Side, no subúrbio de Nova Iorque, e as famílias antagonistas dos Montéquio e Capuleto são transformadas nas gangues adversárias dos Jets (“polacos” estadunidenses nativos brancos) e Sharks (latinos imigrantes e/ou descendentes de porto-riquenhos). As duas gangues estão em constante conflito pela liderança territorial de um bairro que está literalmente desabando, submetido a uma reconstrução urbana (espetacularmente fotografada nas cenas de abertura). Por trás de uma aparente disputa por liderança no local o que realmente se manifesta é um evidente processo de preconceito racial e supremacia branca. Alheios a esta disputa estão os protagonistas apaixonados, Maria (Rachel Zegler), irmã de Bernardo, líder dos Sharks, e Tony (Ansel Elgort), um dos criadores do Jets e braço direito do líder Riff.


A visão artística de Steven Spielberg, dentre vários acertos, foi particularmente feliz ao optar por não atualizar o remake para os tempos contemporâneos, como normalmente costuma ocorrer em refilmagens. A estética dos anos 60 está maravilhosamente preservada e contribui para a manutenção do espírito original do filme dirigido por Robert Wise e Jerome Robbins (coreografia). Outro acerto gigante de Spielberg é a escalação do elenco. Diferentemente do filme de 1961, desta vez os “latinos” protagonistas são interpretados por atores / atrizes representativos da latinidade, conforme exigia os personagens. A Maria, que na primeira versão foi Natalie Wood (norte-americana, filha de imigrantes russos), encontrou na descendente de colombianos Rachel Zegler uma ótima intérprete. Já o líder de gangue Bernardo é interpretado pelo canadense de origem cubana David Alvarez. Infinitamente mais adequado que o norte-americano filho de imigrantes gregos George Chakiris, debaixo de pesada maquiagem para garantir a pele bronzeada (blackface?).


A extensa filmografia de Steven Spielberg revela sua afinidade com espetáculos de grande escala com forte presença da fantasia, da tecnologia e dos efeitos especiais. Pois não é exatamente o que se vê em Amor, Sublime Amor. Pelo contrário, está relativamente contido, não se deixando levar por grandes tomadas e movimentos de câmera que pudessem se sobrepor à emoção das personagens e, de modo particular, às exuberantes coreografias. Por si só um espetáculo à parte. Spielberg se apresenta extremamente reverente ao material original, sem no entanto renunciar a um olhar um pouco mais apurado e incisivo na temática do preconceito. Neste aspecto a nova versão avança algumas casinhas e torna mais explícita uma discussão que em 1961 ficou na superfície do tema. Aqui vale ressaltar a atriz Rita Moreno, presente nos dois filmes. No original interpretou Anita, a melhor amiga de Maria. Agora, na nova versão, ganhou um novo papel, que sequer existia no filme anterior. Como a latina Valentina, a dona da farmácia onde Tony trabalha, ela tem a voz ativa do discurso de igualdade, transitando entre os dois mundos antagônicos: os Jets e Sharks. Detalhe: Rita Moreno é uma das produtoras executivas do longa-metragem.

Amor, Sublime Amor é um musical cheio de energia e emoção, que respeita o original. Um trabalho artístico de primeira linha do qual Steven Spielberg triunfa em seu intento de recriar um clássico para apresentá-lo às novas gerações.

Assista ao trailer: Amor, Sublime Amor


Jorge Ghiorzi                                                                              

Membro da ACCIRS