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quinta-feira, 23 de maio de 2024

A Cor Púrpura (1985): entre irmãs

 

Na metade dos anos 80 a carreira de Steven Spielberg como diretor chegava a um impasse. Após 10 anos de bem sucedidas obras voltadas para um cinema de fantasia e entretenimento, o realizador sentiu necessidade de experimentar novas histórias e abordagens mais realistas. A imposição não vinha do mercado, mas de sua motivação pessoal em busca da legitimidade da crítica e da Academia para um tardio reconhecimento para suas capacidades como um cineasta completo. O aval da indústria seria fundamental para colocá-lo no time dos maiores realizadores norte-americanos. A virada aconteceu em 1985 quando dirigiu A Cor Púrpura (The Color Purple), seu primeiro “filme adulto”, como se disse à época. A produção foi um sucesso e recebeu 11 indicações para o Oscar. Mas, incrivelmente o nome de Steven Spielberg ficou de fora da disputa. Ele não foi indicado ao Oscar de Melhor Diretor, num flagrante erro histórico da Academia. Mas, o mais surpreendente ainda estava por vir: o filme não recebeu nenhuma estatueta sequer.



Além de arriscada, a primeira experiência de Spielberg fora da zona de conforto trouxe um desafio adicional. A história de A Cor Púrpura trata essencialmente de discriminação racial contra os negros, violência doméstica contra as mulheres e repressão sexual. Como convencer o público de que um cineasta branco, judeu e conservador poderia dar conta de temas tão difíceis? A solução foi lançar mão de um artifício infalível para conquistar corações, que Spielberg utiliza com habilidade: a emoção. 

Baseado no romance epistolar de Alice Walker, lançado em 1982 e vencedor do prêmio Pulitzer, A Cor Púrpura se passa no meio rural do sul dos Estados Unidos. A história, que inicia em 1909, acompanha por quatro décadas a vida de duas irmãs, Celie (interpretada por Whoopi Goldberg, na fase adulta) e sua irmã mais nova, Nettie. Separadas à força na adolescência pelo pai alcoólatra, a sorte lhes reservou destinos completamente diferentes. Nettie aprende a ler e escrever, é adotada por pastores religiosos e vai morar na África, onde se casa e constitui família. Celie, por sua vez, é forçada pelo pai a casar-se com um viúvo, Mister / Albert (Danny Glover), que se mostra um homem violento e abusador que trata a própria esposa como escrava. A pouca instrução de Celie não a impede de encontrar consolo nos livros. Submetida às agressões físicas e morais do marido, Celie só encontra razões para continuar vivendo pela esperança de receber cartas com notícias da irmã. Cartas estas que serão decisivas para o desfecho da história e fator de redenção da sofrida trajetória de Celie.


O imenso arco dramático da história das irmãs dá contornos de épico para o filme de Spielberg, com suas mais de 2 horas e meia de duração. Misto de panorama social de uma época e drama intimista da luta de uma mulher em busca da identidade, A Cor Púrpura é um melodrama envolvente e inspirador. A trágica história da protagonista provoca empatia imediata da plateia, graças ao comovente desempenho da então iniciante Whoopi Goldberg (indicada ao Oscar). Igualmente contribui para este resultado a sensível direção de Spielberg, ainda que por vezes erre a mão no afã de arrebatar o público com sequências de forte impacto emocional.

Dois exemplos deste tropeço podem ser citados. Um pelo excesso, outro pela carência. O primeiro deles é a sequência da desesperada cena da separação das duas irmãs, executada de forma histriônica, teatral e exagerada, mas de grande carga de sentimentos, a que se reconhecer. Curiosamente a separação das irmãs, daquela forma, não existe no livro. Foi apenas um recurso cinematográfico proposto pelo roteiro. No outro episódio onde Spielberg erra a dosagem da emoção, o diretor peca pela timidez ao não aprofundar todo o potencial da cena. Na sequência onde a sexualidade da reprimida Celie é despertada por um momento de intimidade com a cantora Shug Avery, amante de seu marido, Spielberg apenas sugere, meio envergonhado, um momento de relação sexual lésbico, limitando-se apenas a um casto selinho das duas. Anos depois o próprio Spielberg declarou que se arrepende de não ter sido um pouco mais explícito e ousado naquele momento tão crucial para a protagonista.



Após a resolução das trajetórias das irmãs Celie e Nettie, o final de A Cor Púrpura ainda nos brinda com uma bela sequência que faz uma homenagem a dois gêneros musicais nascidos nas comunidades negras norte-americanas. Artistas, músicos e cantores do cabaré da região partem em procissão cantando blues rumo à igreja da cidade, onde corais religiosos entoam canções gospell, criando um momento magnífico de interação musical. A música também é um caminho para encontrar o sublime.


Uma das personagens mais carismáticas de A Cor Púrpura é a impetuosa e brava Sofia, que não leva desaforo para casa, interpretada por Oprah Winfrey, em sua estreia no cinema. Por este desempenho ela recebe uma indicação ao Oscar de Atriz Coadjuvante.

 

Assista o trailer: A Cor Púrpura

 

(Texto originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em janeiro de 2018)

 

Jorge Ghiorzi
Membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) ACCIRS (Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul)

Contato: janeladatela@gmail.com  /  jghiorzi@gmail.com

quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

“Amor, Sublime Amor”: recriação de um clássico

 


Em 1961 o musical Amor Sublime Amor, adaptado de um bem-sucedido espetáculo da Broadway, caiu como uma bomba na envelhecida Hollywood. Foi um sopro de renovação em vários aspectos do gênero, da encenação à cenografia realista, da interpretação às coreografias inovadoras que incorporavam movimentos livres, distantes da dança clássica. É até hoje o musical mais premiado da história com suas 10 estatuetas do Oscar, três Globos de Ouro, dois Grammys e outras tantas premiações.

Este estimado clássico do cinema norte-americano, exatos 60 anos depois, ganha uma refilmagem pelas mãos de um dos mais estimados e premiados diretores do cinema norte-americano. Por definição, potencialmente uma temeridade, um risco demasiado para resultados que poderiam ser devastadores para os envolvidos. Coube a Steven Spielberg esta, digamos, ousadia de mexer em um ícone. Justamente ele, que em sua extensa e destacada filmografia, com mais de trinta longas-metragens, apenas uma única vez apostou em uma refilmagem (Guerra dos Mundos) e nunca havia dirigido um musical.


O conhecido entrecho da paixão proibida dos amantes de famílias rivais de Romeu e Julieta, tragédia escrita por William Shakespeare, é o cerne da narrativa do libreto escrito nos anos 50 por Arthur Laurent, que viria a se transformar no famoso espetáculo da Broadway. Em Amor, Sublime Amor (West side story) a medieval Verona é substituída pelo Upper West Side, no subúrbio de Nova Iorque, e as famílias antagonistas dos Montéquio e Capuleto são transformadas nas gangues adversárias dos Jets (“polacos” estadunidenses nativos brancos) e Sharks (latinos imigrantes e/ou descendentes de porto-riquenhos). As duas gangues estão em constante conflito pela liderança territorial de um bairro que está literalmente desabando, submetido a uma reconstrução urbana (espetacularmente fotografada nas cenas de abertura). Por trás de uma aparente disputa por liderança no local o que realmente se manifesta é um evidente processo de preconceito racial e supremacia branca. Alheios a esta disputa estão os protagonistas apaixonados, Maria (Rachel Zegler), irmã de Bernardo, líder dos Sharks, e Tony (Ansel Elgort), um dos criadores do Jets e braço direito do líder Riff.


A visão artística de Steven Spielberg, dentre vários acertos, foi particularmente feliz ao optar por não atualizar o remake para os tempos contemporâneos, como normalmente costuma ocorrer em refilmagens. A estética dos anos 60 está maravilhosamente preservada e contribui para a manutenção do espírito original do filme dirigido por Robert Wise e Jerome Robbins (coreografia). Outro acerto gigante de Spielberg é a escalação do elenco. Diferentemente do filme de 1961, desta vez os “latinos” protagonistas são interpretados por atores / atrizes representativos da latinidade, conforme exigia os personagens. A Maria, que na primeira versão foi Natalie Wood (norte-americana, filha de imigrantes russos), encontrou na descendente de colombianos Rachel Zegler uma ótima intérprete. Já o líder de gangue Bernardo é interpretado pelo canadense de origem cubana David Alvarez. Infinitamente mais adequado que o norte-americano filho de imigrantes gregos George Chakiris, debaixo de pesada maquiagem para garantir a pele bronzeada (blackface?).


A extensa filmografia de Steven Spielberg revela sua afinidade com espetáculos de grande escala com forte presença da fantasia, da tecnologia e dos efeitos especiais. Pois não é exatamente o que se vê em Amor, Sublime Amor. Pelo contrário, está relativamente contido, não se deixando levar por grandes tomadas e movimentos de câmera que pudessem se sobrepor à emoção das personagens e, de modo particular, às exuberantes coreografias. Por si só um espetáculo à parte. Spielberg se apresenta extremamente reverente ao material original, sem no entanto renunciar a um olhar um pouco mais apurado e incisivo na temática do preconceito. Neste aspecto a nova versão avança algumas casinhas e torna mais explícita uma discussão que em 1961 ficou na superfície do tema. Aqui vale ressaltar a atriz Rita Moreno, presente nos dois filmes. No original interpretou Anita, a melhor amiga de Maria. Agora, na nova versão, ganhou um novo papel, que sequer existia no filme anterior. Como a latina Valentina, a dona da farmácia onde Tony trabalha, ela tem a voz ativa do discurso de igualdade, transitando entre os dois mundos antagônicos: os Jets e Sharks. Detalhe: Rita Moreno é uma das produtoras executivas do longa-metragem.

Amor, Sublime Amor é um musical cheio de energia e emoção, que respeita o original. Um trabalho artístico de primeira linha do qual Steven Spielberg triunfa em seu intento de recriar um clássico para apresentá-lo às novas gerações.

Assista ao trailer: Amor, Sublime Amor


Jorge Ghiorzi                                                                              

Membro da ACCIRS