quarta-feira, 30 de novembro de 2022

Até os Ossos: amor e sangue

 


Na temporada 2022, onde o canibalismo já surgiu forte na série campeã de audiência sobre o serial killer Jeffrey Dahmer na Netflix, o cinema nos brinda com uma ousada, impactante e surpreendente história de amor que também tem como pano de fundo o canibalismo. Porém, diferente daquele produto do streaming, onde o tema aparece como um ritual escatológico de caráter criminoso, no drama de horror Até os Ossos (Bones and All), de Luca Guadagnino (Suspiria, 2018), o canibalismo recebe um tratamento mais metafórico e metafísico, como uma maldição mesmo, ainda que seja extremamente mais explícito na exibição do ato canibal em si.

Reconheçamos, de antemão, que este não é um tema fácil a ser explorado nas obras audiovisuais. É recorrente que o apelo sensacionalista venha sempre em primeiro lugar. Mas não é o caso aqui, ainda que, fosse apenas por este aspecto, Até os Ossos já mereceria nosso olhar mais atento. Mas o filme de Guadagnino vai muito além e não deixa de surpreender o espectador a todo o momento.


Baseado em livro de Camille DeAngelis, premiado em 2016, a adaptação cinematográfica traz a história de um casal de jovens, Maren (Taylor Russell) e Lee (Timothée Chalamet). Eles se encontram ao acaso em uma viagem pelo interior dos Estados Unidos. Ambos marginalizados, em fuga de seus traumas interiores. Uma particularidade os une em um misto de paixão, cumplicidade e sobrevivência: são canibais. O caráter da viagem – literal e simbólica – é um elemento muito presente nos livros da romancista DeAngelis, além de questões feministas e solidão. O filme de Guadagnino respeita estes conceitos e conduz sua narrativa como uma longa jornada de autoconhecimento, o combustível que conduz Maren e Lee até um destino incerto.

Até os Ossos é um road movie de horror e paixão. O guia onipresente da viagem/fuga é o pai de Maren, que deixa de legado uma extensa mensagem gravada em áudio, que a jovem vai ouvindo ao longo da estrada, como fossem capítulos de uma longa história de revelação de suas origens. Ela, assim como nós, é apresentada à verdadeira realidade da sua condição de “devoradora”, ou seja, consumidora de carne humana. Ainda assim, a história se revela incompleta. Falta a figura da mãe, que torna-se então o objeto de busca.


Nesta Via Crucis espiritual Maren encontra, além do parceiro de jornada, Lee (igualmente em processo de entendimento e aceitação da sua condição), outros personagens enigmáticos, que também compartilham o desejo pela carne humana. Em cada etapa da jornada, a cada parada, a cada cidade, o casal recebe novos aprendizados que dão pistas e informações vitais de sobrevivência para aqueles que vivem à margem da sociedade, amaldiçoados pelo desejo da carne.


Luca Guadagnino propõe uma experiência de realidade paralela ao espectador. Ao nos mergulhar no submundo dos chamados “seres devoradores”, somos imersos em um universo de regras próprias. São raras e pontuais as interações do mundo, digamos, corriqueiro e real. A quase totalidade da narrativa se dá em um registro alternativo. Até os Ossos é um relato de personagens marginais. Uma fábula de horror com devoradores de carne humana por necessidade, pois há uma ética e uma moral a ser respeitada. Neste arco narrativo tanto Maren quanto Lee confrontam seus fantasmas e a irreversibilidade de suas existências. Até os Ossos é um filme que permanece ecoando em nossas mentes após a sessão e já nasce predestinado a ser cultuado.


A escolha de Timothée Chalamet por Luca Guadagnino não deixa de revelar uma certa ironia do destino. Ambos já trabalharam juntos em Me Chame Pelo Seu Nome (2017), com Armie Hammer, o ator que teve a carreira destruída por acusações de cometer atos de... canibalismo! Outro destaque do elenco é a canadense Taylor Russell, que ganhou grande visibilidade ao participar da nova versão de Perdidos no Espaço (3 temporadas) da Netflix, no papel de Judy Robinson. Sua presença é o grande destaque e o melhor da série. Está aí uma atriz à beira do estrelato no primeiro time.

Assista ao trailer: Até os Ossos


Jorge Ghiorzi / Membro da ACCIRS

janeladatela@gmail.com


terça-feira, 15 de novembro de 2022

Força Bruta: vai encarar?

 


Nem só de Parasita vive o cinema sul-coreano. Além de uma produção autoral de prestígio, premiada em todo o mundo, a indústria cinematográfica da nação asiática mostra uma diversidade de produções de entretenimento direcionadas aos mais diferentes públicos. Atual sucesso de público e bilheteria da temporada, este Força Bruta (The Roundup) só confirma a força dos sul-coreanos também no cinema de gênero. No caso específico, a força citada é mais do que uma simples metáfora, mas um fato objetivo, considerando-se o festival de pancadaria que vemos neste violento filme de ação policial.

A grande estrela do atual campeão de bilheteria sul-coreano é o ator Ma Dong-seok, que ganhou visibilidade e projeção mundial com participações na série Sense8 (2015) e filmes como Invasão Zumbi (2016) e Eternos (2021), utilizando o nome artístico americano de Don Lee.


Em Força Bruta ele interpreta o policial Ma Seok-do, integrante da Unidade Policial de Crimes de um dos distritos da capital Seul. Reconhecido pela forma exagerada que utiliza para executar suas missões, Ma resolve tudo na base da “força bruta”, com as próprias mãos. Enviado ao Vietnã para repratriar um criminoso fugitivo que pede asilo na embaixada sul-coreana, Ma fica desconfiado com a atitude do criminoso, que se entrega com facilidade. Fora de sua jurisdição, em país estrangeiro, Ma decide investigar um pouco mais, por conta própria, e acaba por descobrir uma sangrenta e violenta gangue envolvida com sequestros.


Constantemente flertando com a comédia – no entanto, sem nunca chegar lá - Força Bruta é um movimentado filme de investigação policial. As coreográficas sequências de lutas com primazia para as armas brancas (facas, adagas, cutelos), ao contrário aos tradicionais embates com armas de fogo, trazem um diferencial positivo para o espetáculo. Ainda que não estejamos assistindo nada exatamente inovador no gênero, que já não tenhamos visto com excelência maior, por exemplo, na saga John Wick com Keanu Reeves, Don Lee dá conta do recado com eficiência e carisma. A trama, um tanto lugar comum, é apenas pretexto para reapresentar, em grande escala, um personagem que aparentemente terá vida longa nas telas.

Sim, isto mesmo, esta não é a primeira aventura do policial Ma Seok-do, que surgiu em Cidade do Crime (The Outlaws) dirigido por Yoon-Seong Kang em 2017. A partir deste Força Bruta assume a direção o realizador Sang-young Lee, que também será responsável pela sequência The Rountrup: No Way Out, atualmente em filmagem.


Força Bruta é uma versão 2.0, revisada e anabolizada, das fitas de ação e pancadaria que Stallone, Schwarzenegger e congêneres protagonizaram nos anos 80, fazendo a alegria das locadoras de vídeo e das sessões da tarde na TV. Garantia de diversão e entretenimento escapista, sem culpa, se é isto que você procura.

Assista ao trailer: Força Bruta


Jorge Ghiorzi / Membro da ACCIRS

janeladatela@gmail.com


quarta-feira, 9 de novembro de 2022

Armageddon Time: estranhos em terra estranha


O tema da imigração não é novo na filmografia do cineasta nova-iorquino James Gray. Já esteve presente, de maneira explícita, em Era Uma Vez em Nova York (2013), que mostra duas irmãs polonesas que chegam à América no início do século XX em busca de uma vida melhor. De certa maneira, o tema, em um conceito expandido e metafórico, entendido como um deslocamento do ponto de origem para um destino desconhecido, também está presente em outras obras como Z, A Cidade Perdida (2016) e Ad Astra: Rumo às Estrelas (2019).

No drama Armageddon Time a saga de imigrantes em solo norte-americano volta a ser inspiração. Porém, desta vez com uma visão bem pessoal do diretor. A história que conta tem inspiração em memórias autobiográficas. Gray é, portanto, testemunha e cronista de um tempo e de um cenário que viveu bem de perto. O filme não é exatamente uma autobiografia convencional, mas evoca sentimentos e experiências pessoais de um momento bem específico dos Estados Unidos. Tudo transcorre no ano de 1980, no período que precede o início da Era Ronald Reagan, que tomaria posse como presidente eleito no ano seguinte. Nascido em 1969, Gray, portanto, teria 11 anos de idade nesta época, aparentemente a mesma do garoto protagonista.


Em Nova Iorque a família Graff, descendente de judeus ucranianos, vive no bairro do Queens a utopia que seduz as correntes migratórias dos primeiros anos do século passado: o sonho americano. As atenções da família – pais e avós - estão voltadas ao sucesso social e profissional dos dois filhos menores. Mas as maiores expectativas estão na verdade direcionadas ao caçula da família, o pré-adolescente Michael (Banks Repeta, um achado). Na escola pública onde estuda, Michael faz amizade com Johnny (Jaylin Webb), um jovem negro, filho de família humilde. Apesar das profundas diferenças de origem, ambos desenvolvem uma forte relação de parceria e compartilham sonhos. Michael deseja seguir a carreira de pintor e artista plástico. Johnny quer ser astronauta. Um revelador episódio dramático, porém, coloca em choque a amizade dos garotos e define o futuro de ambos.

A narrativa de Armageddon Time é conduzida pelo ponto de vista do pequeno Michael. É através do seu olhar – ora inocente, ora questionador - que mergulhamos nos conflitos éticos, morais e raciais que marcam sua jornada de amadurecimento. Família, escola e sociedade são forças conflitantes que agem e modelam a personalidade do garoto. Pai e mãe (Jeremy Strong e Anne Hathaway) representam a tradição; o avô (Anthony Hopkins) é o coração, a sabedoria e a sensibilidade; a escola faz o papel da doutrinação, simultaneamente origem do conhecimento formal e da repressão que oprime. Por fim, o meio social, que separa, segrega, pune e destrói sonhos.

O filme de James Gray é uma fábula moral que explora os valores da amizade e questiona os limites da lealdade. A ética está no centro da discussão, que se estabelece a partir do episódio revelador entre os garotos, que traz à superfície o que se esconde debaixo do tapete. Michael e Johnny, em lados opostos da história, representam o microcosmo de uma conjuntura discriminatória que se reproduz desde a origem das sociedades organizadas ocidentais.


As fugas da escola, as contestações aos professores e os pequenos delitos dos garotos protagonistas trazem ecos de François Truffaut, em Os Incompreendidos. A abordagem do cineasta francês foi poética, suave e, em certo nível, até mesmo condescendente. Em Armageddon Time o furo é mais embaixo. O olhar traz nuances e problematiza com mais ênfase as dificuldades das relações sociais na América, à beira da já citada Era Reagan que marcaria fortemente a década seguinte. Porém, a base sob a qual se sustentam Truffaut e Gray é essencialmente a mesma: o sistema educacional não passa de uma “fábrica de salsichas”. Armageddon Time não traz respostas fáceis, e certamente sequer deseja tê-las. É o retrato de uma época, um “ovo da serpente”.


Um pouco da chave para a compreensão do alcance do trabalho de James Gray pode estar na letra da música do The Clash, chamada justamente “Armageddon Time”, presente na trilha sonora. Diz algo mais ou menos assim: Fique por perto não brinque por perto / Esta cidade velha e todos / Parece que eu tenho de viajar / Muita gente não vai conseguir jantar à noite / Muita gente não vai conseguir Justiça esta noite / A batalha está ficando mais quente / Nessa vibração, tempo de Armagedom.

Armageddon Time, mais uma produção da RT Features, do brasileiro Rodrigo Teixeira, é um pequeno grande filme, comovente e intimista, realizado com paixão e sensibilidade.

Assista ao trailer: Armageddon Time


Jorge Ghiorzi / Membro da ACCIRS

janeladatela@gmail.com