quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

Argylle – O Superespião: da ficção para a realidade

 

A escritora de romances de espionagem, Elly Conway (Bryce Dallas Howard), conta, em uma série de livros de sucesso, as aventuras do agente secreto Argylle (Henry Cavill) em perigosas missões contra um sindicato global de espionagem chamado “Divisão”. As tramas criadas pela imaginativa autora começam a atrair a atenção de agências reais de espionagem, pois refletem e antecipam com muita precisão ações verídicas. Então, seu mundo vira de pernas pro ar quando a linha entre o real e a ficção começa a ficar bem confusa e sua vida passa a correr risco. 

A premissa não é original. Já vimos, com resultados distintos, algo semelhante em filmes como O Magnífico (1973) com Jean-Paul Belmondo, Tudo Por Uma Esmeralda (1984) com Kathleen Turner e o recente Cidade Perdida (2022) com Sandra Bullock. Usualmente, e em Argylle – O Superespião (Argylle) não é diferente, a figura da escritora é sempre uma personagem reclusa, fragilizada e emocionalmente carente que vira o jogo usando como chave as próprias aventuras que cria como ficção. Uma espécie de terapia radical que coloca à prova todos seus medos e receios diante da vida.


Quando os dois mundos se entrelaçam, o universo do livro invade o mundo real e pessoas do mundo real ganham versões ficcionalizadas. O vai-e-vem do enredo enreda a plateia e convida para uma movimentada aventura que opera em dois níveis. Aliás, recomenda-se a atenção do espectador, sob pena de perder o fio da meada lá pelas tantas. Quem diria, hein? A “Dama na Água” em pessoa, Bryce Dallas Howard, depois das correrias sem fim da franquia Jurassic World, pagando de heroína de filme de ação e espionagem. Entre caras, bocas e gritos, a verdade é que Bryce está muito bem e convence no papel. E, como bônus, garante lugar no pódio das scream queens (rainhas do grito) da atualidade.


Seu parceiro de aventura, o agente Aidan, é interpretado com muita graça por Sam Rockwell. Pois está aí um ator que merece melhor sorte no atual panorama das produções de Hollywood. Apesar de já ter ganho o Oscar de Ator coadjuvante por Três Anúncios para um Crime (2017), ele ainda não ganhou um papel de grande visibilidade como protagonista. Além da presença de Bryan Cranston, Catherine O’Hara e o onipresente Samuel L. Jackson, completam o elenco de Argylle duas participações luxuosas: a cantora Dua Lipa, em sua estreia como atriz, com um papel coadjuvante bem bacana, e Henry Cavill, exercendo o “modo on” de canastrice (no que se sai muito bem, a propósito). 

A direção é assinada por Matthew Vaughn, líder criativo por trás de duas franquias: Kingsman e, sim, Argylle (alguém dúvida que estamos diante de uma nova franquia?) Será que lá adiante estes dois universos – Kingsman e Argylle - haverão de se encontrar? Quem viver verá.


Como comédia de ação, Argylle – O Superespião é criativo, imaginativo e um delícia de assistir. Ainda que peque pela excessiva duração. Faria um bem danado para o ritmo se fosse mais enxuto. Um destaque de encher os olhos é a sequência do tiroteio slow motion em meio às nuvens de fumaça colorida. Um delírio policromático de fazer inveja às sequências alucinantes e exageradas dos filmes de ação de Bollywood.

Assista ao trailer: Argylle – O Superespião


Jorge Ghiorzi

Membro da ACCIRS – Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul

 

Contato: janeladatela@gmail.com


segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

Folhas de Outono: um encontro de solidões

 

O amor, como manifestação romântica exacerbada, é uma construção histórica e social. Assim como a literatura romântica, surgida no século XVIII, que valorizava as emoções e o sentimentalismo exagerado, o cinema, desde os primórdios, se apropriou desta narrativa idealizada. Gerações e gerações de espectadores foram expostas e moldadas em massa nas salas de exibição por este modelo padronizado disseminado pelos filmes. Particularmente por Hollywood, desde o período mudo.

Ainda que em síntese seja fruto deste modelo, Folhas de Outono (Kuolleet lehfet / Fallen leaves) desde os primeiros minutos quebra expectativas quando subverte as regras de uma história romântica tradicional ao lapidar quaisquer resquícios de sentimentalismo excessivo que não façam sentido ao efeito minimalista pretendido pelo realizador finlandês Aki Kaurismaki. Folhas de Outono é poético no título, mas não se engane, é duro, sem concessões fáceis, mesmo que se proponha a ser uma comédia.


Dois solitários da classe trabalhadora. Ela, Ansa, estoquista de supermercado. Ele, Holappa, operário da construção civil. Duas engrenagens de uma máquina capitalista que impessoaliza e massacra sonhos. Dois seres invisíveis da grande Helsinki. Um encontro acidental em um bar de karaokê muda o destino de ambos. Nasce uma atração, que se transforma em paixão, até se estabelecer como necessidade. Um relacionamento improvável, mas indispensável. Um ato de sobrevivência que cura a solidão existencial.


O filme de Kaurismaki não paga tributo ao cinema clássico romântico. É mais ambicioso neste ponto. Paga tributo ao cinema como um todo. A relação de Ansa e Holappa é mediada pela sétima arte em diversos momentos. No primeiro encontro o programa escolhido é uma sessão de cinema. No escurinho da sala, no silêncio da sessão, suas sensibilidades encontram a conexão desejada. A fachada do prédio, repleto de cartazes de filmes, faz cenário para uma “história de cinema” da vida real. E o final, ah o final. O tributo definitivo ao gênio da comédia cinematográfica: Charlie Chaplin. Uma joia de sensibilidade em estado bruto.


O amor um tanto melancólico do casal é tratado com delicadeza, afeto e ternura. Com poucas palavras e muito sentimento. Há frescor e verdade em uma história de encontros e desencontros, que teima em apresentar obstáculos à plena realização passional de Ansa e Holappa. O destino parece conspirar contra a relação do casal, mas as dificuldades momentâneas são apenas um mero detalhe. A felicidade está logo ali, na próxima esquina. Basta seguir o caminho.

Assista ao trailer: Folhas de Outono


Jorge Ghiorzi

Membro da ACCIRS – Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul

 

Contato: janeladatela@gmail.com


quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

Mergulho Noturno: poder maligno das águas

 


Jogador profissional de beisebol, Ray (Wyatt Russell), prestes a se aposentar, por conta de uma lesão, muda-se com a esposa e filhos para uma nova casa com piscina no quintal. Local perfeito fazer suas sessões de fisioterapia com exercícios na água. Aos poucos percebe uma melhora significativa em seu estado físico. Será que a água da piscina tem algo a ver com isso? Que segredos sombrios se escondem nas profundezas daquela piscina?

O terror Mergulho Noturno (Night swim), dirigido por Bryce McGuire, se constrói a partir do medo ancestral da água, fonte de benesses para o ser humano na mesma medida oposta em que, eventualmente, é causador de tragédias climáticas. O medo provém não do que enxergarmos sobre sua superfície, mas do que poderia haver de oculto em águas profundas.


Desde Poltergeist (1982) e Dama da Água (2006) uma piscina não provocava arrepios nas plateias. Caso a pretensão de Mergulho Noturno tenha sido incutir nas pessoas o medo de mergulhar em uma piscina à noite, falhou miseravelmente. Guardadas as devidas (imensas) proporções que os distinguem, talvez a tentativa tenha sido repetir o efeito Tubarão que instaurou o pavor em algumas gerações com banhos em mar aberto. Medo, aliás, que perdura até hoje, quase meio século depois do lançamento. Mas em Mergulho Noturno o medo é rápido, indolor, descartável e nem um pouco memorável.

Misto de terror e suspense, o longa foi inspirado em um curta-metragem de quatro minutos realizado em 2014 pelo mesmo realizador Bryce McGuire em parceria com Rod Blackhurst (que no longa assina apenas como coroteirista). Portanto, estamos diante de uma trama estendida, que preserva o conceito original da existência de uma “piscina assassina”, mas agrega sem muita convicção uma mitologia maligna que tenta minimamente dar sentido a um enredo que se sustenta precariamente.


Mergulho Noturno, uma produção da Blumhouse, repete o enredo da casa assombrada e da família sob ataque de forças malignas. Já vimos este filme dezenas de vezes, com resultados imensamente superiores. O elenco fraco carece de carisma, fato que contribui decisivamente para a completa ausência de empatia com os espectadores. Pouco nos importamos com os destinos dos personagens com os quais não nos identificamos e pelos quais não torcemos em momento algum.

A trama de Mergulho Noturno segue passo a passo o formulismo dos filmes de terror mais recentes. A evolução dos recursos de computação digital resolveu muitos problemas práticos das produções. Virtualmente qualquer solução estética e visual é possível. Essa é a parte boa do processo. A face negativa é a acomodação criativa dos realizadores que costumeiramente tornam-se explícitos demais deixando pouco espaço para a imaginação dos espectadores completarem as lacunas. Tudo é entregue pronto e mastigado. A dificuldade impõe soluções criativas e artísticas, em oposição, recursos ilimitados conduzem a um impasse criativo. Este sim é o verdadeiro “Mal” dos filmes de terror das últimas duas décadas.


Ainda que Mergulho Noturno não peque exatamente por esta questão de uso massivo de recursos de computação digital (é até modesto nesta questão), ele é raso por sua concepção como um todo, particularmente por não cumprir a contento uma premissa interessante. No gênero terror e assemelhados, raramente há um sopro de novidade. E Mergulho Noturno certamente não é um destes momentos. O filme, que prometeu mergulhar fundo na experiência do terror doméstico, ficou na verdade boiando no rasinho da piscina.

Assista ao trailer: Mergulho Noturno 

 

Jorge Ghiorzi

Membro da ACCIRS – Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul

Contato: janeladatela@gmail.com

domingo, 14 de janeiro de 2024

Priscilla e Leonard: do rei ao maestro

 


O final da temporada cinematográfica de 2023 e o início da temporada 2024 foi marcado pelo lançamento de duas cinebiografias de figuras ilustres da música norte-americana. O maestro e compositor Leonard Bernstein, autor das composições do musical West Side Story (adaptada para o cinema com o título de Amor Sublime Amor, no Brasil), e Priscilla Presley, ex-esposa de Elvis, chegaram aos cinemas em longas-metragens onde o único ponto comum é o universo da música. Pois as abordagens e resultados não poderiam ser mais distintos.

Maestro se apresenta como um filme de flagrantes pretensões autorais, um verdadeiro tour de force de Bradley Cooper, aqui fazendo dupla jornada como ator e diretor, em sua segunda obra como realizador. Já Priscilla, que traz na direção a assinatura de Sofia Coppola, mostra episódios do atribulado relacionamento de Priscilla e Elvis Presley, desde o primeiro encontro até o rompimento.

Há, por definição, uma sensível diferença entre os dois filmes. Maestro se apresenta menos como uma cinebiografia e mais como um perfil distanciado e interpretativo do artista, onde o papel de sua esposa ganha um genuíno papel de protagonismo (interpretado magnificamente por Carey Mulligan). Por sua vez, o filme de Sofia Coppola tem uma proposta mais, digamos, convencional, pois desenvolve a trajetória da protagonista de forma mais efetivamente biográfica, quase episódica, mas sempre com um olhar comprometido, afetuoso e compreensivo, revelador da identificação feminina e feminista.

Curiosamente, as duas obras, oriundas do universo da música, prescindem absolutamente da música para narrar suas histórias. As composições clássicas de Leonard Bernstein e os rocks irresistíveis de Elvis Presley são praticamente sonegados ao público, pois não passam de coadjuvantes com pouco tempo de tela. Em poucas e pontuais sequências marcam presença, mas longe, muito longe, de saciar a expectativa da audiência. O que, convenhamos, dado o tamanho dos artistas, é uma frustração inicial. Faz falta? Faz. Compromete a experiência? Absolutamente não.


Após a bem sucedida versão século 21 de Nasce Uma Estrela (2018) o ator Bradley Cooper encontrou sua nova persona cinematográfica e se impôs uma tarefa difícil: achar um lugar ao sol como realizador de prestígio. Maestro é sua aposta para conquistar este lugar. Que virada de mesa. Da comédia Se Beber, Não Case! Bradley chega, com Maestro, ao drama (dilema?) de “se casar, não beba”. Tudo em seu filme gira em torno do seu casamento, da paixão arrebatadora com a amiga / amante / esposa Felicia até o ato final da história do casal. Por tratar-se de um melodrama, com toques biográficos, Maestro é, em essência, um filme sobre sua mulher, e não do artista como criador. É desta perspectiva que vem a força do protagonismo de Felicia como contraponto e eventualmente musa inspiradora de Leonard Bernstein.


Neste aspecto há que se louvar o desprendimento de Bradley Cooper que generosamente abre espaço para sua parceira de elenco brilhar. Ainda que, nos momentos onde o foco narrativo é exclusivamente o artista, a interpretação do ator exija para si muitos holofotes (metafóricos e literais). O resultado, no mais das vezes, é um desempenho elogiável, mesmo que aqui e ali demonstre um que de overacting e histrionismo. Um exemplo: a longa sequência do concerto na catedral, com Bradley reproduzindo com excelência os gestos exagerados e eloquentes de Bernstein com a batuta à frente da orquestra. O melhor momento do ator/diretor representando o maestro é justamente este. Pura entrega, sem falas, apenas expressão corporal.


O casamento também é o centro das atenções de Priscilla. Um casamento imperfeito que iniciou de maneira um tanto bizarra quando Elvis prestava serviço militar em uma base norte-americana na Alemanha. A bizarrice não está no cenário, mas na pouca idade de Priscilla quando começaram a namorar (sem sexo, segundo Elvis). Priscilla tinha 14 anos e Elvis 24. Algo impensável para um artista de sucesso nos dias de hoje. Além da pouca idade, Priscilla enfrentou ainda outro desafio. Naquela época (final dos anos 50) Elvis era o ídolo da música mais desejado pelas mulheres, de todas as idades. Então, a solução foi “escondê-la” dos olhos do público, segundo orientação do empresário Coronel Tom Parker que comandava a carreira de Elvis com mão de ferro. Priscilla ficou oculta da vida pública do rei do rock nos primeiros anos de relacionamento, vivendo na mansão de Graceland em Memphis (Tennessee) como uma princesa aprisionada numa gaiola dourada.


Esta ocultação da mulher de Elvis da vida pública é o objeto de interesse de Sofia Coppola, que adaptou a autobiografia de Priscilla Presley, lançada em 1985. Seu filme mostra o dilema de uma jovem inexperiente que aceita abrir mão de sua individualidade em nome do amor por Elvis. O arco narrativo de Priscilla percorre a jornada da protagonista, da perda da inocência até a tomada de consciência e o amadurecimento. De quebra mostra um lado B de Elvis raramente exposto: um homem inseguro, infantil e autoritário (com a esposa). Ou seja, o casamento de Elvis e Priscilla estava longe de ser um conto de fadas.


Já quanto ao filme, Priscilla está bem distante de ser um trabalho memorável na filmografia de Sofia Coppola. O filme se ressente de sua estrutura absolutamente acadêmica e episódica (conforme já citado) que enfraquece a força narrativa do longa ao buscar o realismo. Nos identificamos com o contexto histórico, compactuamos com a tragédia pessoal de Priscilla, mas falta paixão. Desta vez a escolha de Sofia deixou a desejar.

Assista ao trailer: Maestro e Priscilla


Jorge Ghiorzi

Membro da ACCIRS – Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul

 

Contato: janeladatela@gmail.com