quarta-feira, 30 de novembro de 2022

Até os Ossos: amor e sangue

 


Na temporada 2022, onde o canibalismo já surgiu forte na série campeã de audiência sobre o serial killer Jeffrey Dahmer na Netflix, o cinema nos brinda com uma ousada, impactante e surpreendente história de amor que também tem como pano de fundo o canibalismo. Porém, diferente daquele produto do streaming, onde o tema aparece como um ritual escatológico de caráter criminoso, no drama de horror Até os Ossos (Bones and All), de Luca Guadagnino (Suspiria, 2018), o canibalismo recebe um tratamento mais metafórico e metafísico, como uma maldição mesmo, ainda que seja extremamente mais explícito na exibição do ato canibal em si.

Reconheçamos, de antemão, que este não é um tema fácil a ser explorado nas obras audiovisuais. É recorrente que o apelo sensacionalista venha sempre em primeiro lugar. Mas não é o caso aqui, ainda que, fosse apenas por este aspecto, Até os Ossos já mereceria nosso olhar mais atento. Mas o filme de Guadagnino vai muito além e não deixa de surpreender o espectador a todo o momento.


Baseado em livro de Camille DeAngelis, premiado em 2016, a adaptação cinematográfica traz a história de um casal de jovens, Maren (Taylor Russell) e Lee (Timothée Chalamet). Eles se encontram ao acaso em uma viagem pelo interior dos Estados Unidos. Ambos marginalizados, em fuga de seus traumas interiores. Uma particularidade os une em um misto de paixão, cumplicidade e sobrevivência: são canibais. O caráter da viagem – literal e simbólica – é um elemento muito presente nos livros da romancista DeAngelis, além de questões feministas e solidão. O filme de Guadagnino respeita estes conceitos e conduz sua narrativa como uma longa jornada de autoconhecimento, o combustível que conduz Maren e Lee até um destino incerto.

Até os Ossos é um road movie de horror e paixão. O guia onipresente da viagem/fuga é o pai de Maren, que deixa de legado uma extensa mensagem gravada em áudio, que a jovem vai ouvindo ao longo da estrada, como fossem capítulos de uma longa história de revelação de suas origens. Ela, assim como nós, é apresentada à verdadeira realidade da sua condição de “devoradora”, ou seja, consumidora de carne humana. Ainda assim, a história se revela incompleta. Falta a figura da mãe, que torna-se então o objeto de busca.


Nesta Via Crucis espiritual Maren encontra, além do parceiro de jornada, Lee (igualmente em processo de entendimento e aceitação da sua condição), outros personagens enigmáticos, que também compartilham o desejo pela carne humana. Em cada etapa da jornada, a cada parada, a cada cidade, o casal recebe novos aprendizados que dão pistas e informações vitais de sobrevivência para aqueles que vivem à margem da sociedade, amaldiçoados pelo desejo da carne.


Luca Guadagnino propõe uma experiência de realidade paralela ao espectador. Ao nos mergulhar no submundo dos chamados “seres devoradores”, somos imersos em um universo de regras próprias. São raras e pontuais as interações do mundo, digamos, corriqueiro e real. A quase totalidade da narrativa se dá em um registro alternativo. Até os Ossos é um relato de personagens marginais. Uma fábula de horror com devoradores de carne humana por necessidade, pois há uma ética e uma moral a ser respeitada. Neste arco narrativo tanto Maren quanto Lee confrontam seus fantasmas e a irreversibilidade de suas existências. Até os Ossos é um filme que permanece ecoando em nossas mentes após a sessão e já nasce predestinado a ser cultuado.


A escolha de Timothée Chalamet por Luca Guadagnino não deixa de revelar uma certa ironia do destino. Ambos já trabalharam juntos em Me Chame Pelo Seu Nome (2017), com Armie Hammer, o ator que teve a carreira destruída por acusações de cometer atos de... canibalismo! Outro destaque do elenco é a canadense Taylor Russell, que ganhou grande visibilidade ao participar da nova versão de Perdidos no Espaço (3 temporadas) da Netflix, no papel de Judy Robinson. Sua presença é o grande destaque e o melhor da série. Está aí uma atriz à beira do estrelato no primeiro time.

Assista ao trailer: Até os Ossos


Jorge Ghiorzi / Membro da ACCIRS

janeladatela@gmail.com


terça-feira, 15 de novembro de 2022

Força Bruta: vai encarar?

 


Nem só de Parasita vive o cinema sul-coreano. Além de uma produção autoral de prestígio, premiada em todo o mundo, a indústria cinematográfica da nação asiática mostra uma diversidade de produções de entretenimento direcionadas aos mais diferentes públicos. Atual sucesso de público e bilheteria da temporada, este Força Bruta (The Roundup) só confirma a força dos sul-coreanos também no cinema de gênero. No caso específico, a força citada é mais do que uma simples metáfora, mas um fato objetivo, considerando-se o festival de pancadaria que vemos neste violento filme de ação policial.

A grande estrela do atual campeão de bilheteria sul-coreano é o ator Ma Dong-seok, que ganhou visibilidade e projeção mundial com participações na série Sense8 (2015) e filmes como Invasão Zumbi (2016) e Eternos (2021), utilizando o nome artístico americano de Don Lee.


Em Força Bruta ele interpreta o policial Ma Seok-do, integrante da Unidade Policial de Crimes de um dos distritos da capital Seul. Reconhecido pela forma exagerada que utiliza para executar suas missões, Ma resolve tudo na base da “força bruta”, com as próprias mãos. Enviado ao Vietnã para repratriar um criminoso fugitivo que pede asilo na embaixada sul-coreana, Ma fica desconfiado com a atitude do criminoso, que se entrega com facilidade. Fora de sua jurisdição, em país estrangeiro, Ma decide investigar um pouco mais, por conta própria, e acaba por descobrir uma sangrenta e violenta gangue envolvida com sequestros.


Constantemente flertando com a comédia – no entanto, sem nunca chegar lá - Força Bruta é um movimentado filme de investigação policial. As coreográficas sequências de lutas com primazia para as armas brancas (facas, adagas, cutelos), ao contrário aos tradicionais embates com armas de fogo, trazem um diferencial positivo para o espetáculo. Ainda que não estejamos assistindo nada exatamente inovador no gênero, que já não tenhamos visto com excelência maior, por exemplo, na saga John Wick com Keanu Reeves, Don Lee dá conta do recado com eficiência e carisma. A trama, um tanto lugar comum, é apenas pretexto para reapresentar, em grande escala, um personagem que aparentemente terá vida longa nas telas.

Sim, isto mesmo, esta não é a primeira aventura do policial Ma Seok-do, que surgiu em Cidade do Crime (The Outlaws) dirigido por Yoon-Seong Kang em 2017. A partir deste Força Bruta assume a direção o realizador Sang-young Lee, que também será responsável pela sequência The Rountrup: No Way Out, atualmente em filmagem.


Força Bruta é uma versão 2.0, revisada e anabolizada, das fitas de ação e pancadaria que Stallone, Schwarzenegger e congêneres protagonizaram nos anos 80, fazendo a alegria das locadoras de vídeo e das sessões da tarde na TV. Garantia de diversão e entretenimento escapista, sem culpa, se é isto que você procura.

Assista ao trailer: Força Bruta


Jorge Ghiorzi / Membro da ACCIRS

janeladatela@gmail.com


quarta-feira, 9 de novembro de 2022

Armageddon Time: estranhos em terra estranha


O tema da imigração não é novo na filmografia do cineasta nova-iorquino James Gray. Já esteve presente, de maneira explícita, em Era Uma Vez em Nova York (2013), que mostra duas irmãs polonesas que chegam à América no início do século XX em busca de uma vida melhor. De certa maneira, o tema, em um conceito expandido e metafórico, entendido como um deslocamento do ponto de origem para um destino desconhecido, também está presente em outras obras como Z, A Cidade Perdida (2016) e Ad Astra: Rumo às Estrelas (2019).

No drama Armageddon Time a saga de imigrantes em solo norte-americano volta a ser inspiração. Porém, desta vez com uma visão bem pessoal do diretor. A história que conta tem inspiração em memórias autobiográficas. Gray é, portanto, testemunha e cronista de um tempo e de um cenário que viveu bem de perto. O filme não é exatamente uma autobiografia convencional, mas evoca sentimentos e experiências pessoais de um momento bem específico dos Estados Unidos. Tudo transcorre no ano de 1980, no período que precede o início da Era Ronald Reagan, que tomaria posse como presidente eleito no ano seguinte. Nascido em 1969, Gray, portanto, teria 11 anos de idade nesta época, aparentemente a mesma do garoto protagonista.


Em Nova Iorque a família Graff, descendente de judeus ucranianos, vive no bairro do Queens a utopia que seduz as correntes migratórias dos primeiros anos do século passado: o sonho americano. As atenções da família – pais e avós - estão voltadas ao sucesso social e profissional dos dois filhos menores. Mas as maiores expectativas estão na verdade direcionadas ao caçula da família, o pré-adolescente Michael (Banks Repeta, um achado). Na escola pública onde estuda, Michael faz amizade com Johnny (Jaylin Webb), um jovem negro, filho de família humilde. Apesar das profundas diferenças de origem, ambos desenvolvem uma forte relação de parceria e compartilham sonhos. Michael deseja seguir a carreira de pintor e artista plástico. Johnny quer ser astronauta. Um revelador episódio dramático, porém, coloca em choque a amizade dos garotos e define o futuro de ambos.

A narrativa de Armageddon Time é conduzida pelo ponto de vista do pequeno Michael. É através do seu olhar – ora inocente, ora questionador - que mergulhamos nos conflitos éticos, morais e raciais que marcam sua jornada de amadurecimento. Família, escola e sociedade são forças conflitantes que agem e modelam a personalidade do garoto. Pai e mãe (Jeremy Strong e Anne Hathaway) representam a tradição; o avô (Anthony Hopkins) é o coração, a sabedoria e a sensibilidade; a escola faz o papel da doutrinação, simultaneamente origem do conhecimento formal e da repressão que oprime. Por fim, o meio social, que separa, segrega, pune e destrói sonhos.

O filme de James Gray é uma fábula moral que explora os valores da amizade e questiona os limites da lealdade. A ética está no centro da discussão, que se estabelece a partir do episódio revelador entre os garotos, que traz à superfície o que se esconde debaixo do tapete. Michael e Johnny, em lados opostos da história, representam o microcosmo de uma conjuntura discriminatória que se reproduz desde a origem das sociedades organizadas ocidentais.


As fugas da escola, as contestações aos professores e os pequenos delitos dos garotos protagonistas trazem ecos de François Truffaut, em Os Incompreendidos. A abordagem do cineasta francês foi poética, suave e, em certo nível, até mesmo condescendente. Em Armageddon Time o furo é mais embaixo. O olhar traz nuances e problematiza com mais ênfase as dificuldades das relações sociais na América, à beira da já citada Era Reagan que marcaria fortemente a década seguinte. Porém, a base sob a qual se sustentam Truffaut e Gray é essencialmente a mesma: o sistema educacional não passa de uma “fábrica de salsichas”. Armageddon Time não traz respostas fáceis, e certamente sequer deseja tê-las. É o retrato de uma época, um “ovo da serpente”.


Um pouco da chave para a compreensão do alcance do trabalho de James Gray pode estar na letra da música do The Clash, chamada justamente “Armageddon Time”, presente na trilha sonora. Diz algo mais ou menos assim: Fique por perto não brinque por perto / Esta cidade velha e todos / Parece que eu tenho de viajar / Muita gente não vai conseguir jantar à noite / Muita gente não vai conseguir Justiça esta noite / A batalha está ficando mais quente / Nessa vibração, tempo de Armagedom.

Armageddon Time, mais uma produção da RT Features, do brasileiro Rodrigo Teixeira, é um pequeno grande filme, comovente e intimista, realizado com paixão e sensibilidade.

Assista ao trailer: Armageddon Time


Jorge Ghiorzi / Membro da ACCIRS

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segunda-feira, 31 de outubro de 2022

A Luz do Demônio: heroína das trevas

 


O ritual do exorcismo, popularizado com o filme de William Friedkin de 1973, é a prática litúrgica milenar da Igreja Católica que se destina a expulsar o demônio - em suas diversas formas - que se apossa do corpo dos seres humanos. A tradição diz que este ritual de orações só pode ser praticado por padres. Portanto, vetado às mulheres. Esta é a premissa que sustenta a trama de A Luz do Demônio (Prey for the Devil, 2022), dirigido pelo alemão Daniel Stamm, cineasta já escolado no tema dos demônios possessivos, pois também realizou no gênero O Último Exorcismo em 2010.

A freira Ann (Jacqueline Byers) trabalha em um hospital católico. Atuando como uma espécie de enfermeira, ela atende pacientes em distúrbio psiquiátrico, suspeitos de possessão demoníaca. Ou seja, pacientes que estão a um passo de se submeterem aos rituais do exorcismo. A abordagem de Ann foge dos padrões usuais da instituição. Ela busca uma conexão mais íntima e pessoal com os pacientes. O hospital, localizado em Boston (EUA), também sedia o que seria a primeira “escola de exorcismo” fora do Vaticano, onde os padres são educados e treinados na prática. Um dos professores, após perceber o dom especial de Ann, apoia sua presença nas aulas, ainda que o acesso aos conhecimentos ritualísticos do exorcismo seja um privilégio apenas aos homens. Então, chega o dia de colocar os conhecimentos à prova. Ann encara de frente um caso de possessão por uma força demoníaca que tem ligações com seu passado.


A quantidade de filmes que tratam de possessões é tamanha que na prática constituem um subgênero em si. Mas, para azar dos fãs do terror, a expectativa de algo minimamente original se esvai a cada novo lançamento. O mais do mesmo tem sido a rotina. E aqui não é muito diferente do padrão usual. Há, no entanto, uma pequena luz no fim do túnel. A questão feminina na trama é uma evidência flagrante e um elemento que traz um olhar além da bolha do terror pelo terror. Sim, A Luz do Demônio é um terror com pauta.

Mas não fique muito empolgado com esta possibilidade. O tema está colocado, porém distante do foco principal. O olhar feminino serve apenas para captar a empatia do espectador para a apresentação da protagonista feminina. O potencial do discurso feminista fica um tanto sufocado pelos clichês em série e situações corriqueiras, bastante previsíveis. Como todo terror convencional, A Luz do Demônio investe apenas nos sustos fáceis.


A jornada da freira Ann equivale à jornada do surgimento de uma heroína. Isto fica muito claro no terceiro ato. Aí está ponto a favor de A Luz do Demônio, que abre boas possibilidades de criação de uma franquia, seja nos cinemas, ou mesmo como futura série nos canais de assinatura.

Assista ao trailer: A Luz do Demônio


Jorge Ghiorzi / Membro da ACCIRS

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segunda-feira, 10 de outubro de 2022

À Procura de Mr. Goodbar: perdida na noite


A chamada Era Disco gerou pelo menos dois grandes filmes, ambos lançados no mesmo ano de 1977. O primeiro deles é um paradigma do gênero: Os Embalos de Sábado à Noite, de John Badham. O outro é À Procura de Mr. Goodbar (Looking for Mr. Goodbar), dirigido pelo, já à época, veterano Richard Brooks (Sementes da Violência; Gata em Teto de Zinco Quente; Lord Jim e A Sangue Frio). A febre das discotecas, que pregava alegria e liberdade nas pistas de dança, é a face superficial exibida pelos dois filmes setentistas. Ambos, no entanto, mergulham em níveis mais profundos das inquietações de seus protagonistas. A exuberância da trilha sonora de Os Embalos de Sábado à Noite leva muita gente a pensar – erroneamente – apenas na mensagem hedonista transmitida pelo personagem Tony Manero, papel que revelou John Travolta. Na verdade há um submundo interior do personagem em constante conflito, que em dado momento se contrapõe àquele mundo superficial. Ao fim, estamos na verdade diante de um filme essencialmente amargo.

Em À Procura de Mr. Goodbar este mergulho interno também está presente, mas em nível infinitamente mais profundo e perturbador. O peso de realismo que o filme de Richard Brooks traz é decorrente do fato de que a história é baseada em fatos verídicos, relatados em romance best-seller da época (lançado no Brasil com o título “De Bar em Bar”), que recriou um caso real ocorrido nos anos 50. A personagem central seria - forçando um paralelo - uma espécie de versão hard, radical, de Tony Manero, que traz ainda, como carga adicional, toda a complexidade feminina no contexto da década de 70, em pleno auge do movimento Women’s Lib, que pregava a libertação das mulheres.


O nome dela é Theresa Dunn (magnificamente interpretada por uma surpreendente Diane Keaton), uma dedicada professora que durante o dia trabalha em uma escola para deficientes auditivos. À noite, ela assume o outro lado da sua personalidade, percorrendo bares, casas noturnas e discotecas de Nova Iorque em busca de insaciáveis e inconsequentes aventuras amorosas, como se não houvesse amanhã. Mas, no dia seguinte, às 7h30 o alarme do despertador sempre toca, avisando que a vida real está chamando. Dividida entre dois mundos ambivalentes, Theresa carrega uma barra pesada, construindo uma jornada decadente de autodestruição turbinada com muita bebida, drogas e sexo.

Pérola um tanto esquecida dos anos 70, À Procura de Mr. Goodbar não foi exatamente um êxito em seu tempo e não encontrou aderência do grande público. Razões para isso são facilmente identificáveis. Apesar do ambiente descontraído das discotecas e da trilha sonora recheada de sucessos, o filme de Richard Brooks pega pesado e joga na cara do espectador uma história que tangencia a sordidez, cuja protagonista marcha rumo ao abismo a olhos vistos. A desilusão é um sentimento presente em todo o filme, expressando o momento particular do Zeitgeist – espírito do tempo – manifestado pela ressaca moral da sociedade norte-americana, pós Guerra do Vietnã.


A tortuosa personalidade de Theresa Dunn foi fruto de uma infância e adolescência marcada pela doença (ela sofria de escoliose severa), fato que resultou a dolorosos tratamentos e cirurgias que a deixaram imobilizada por longos períodos. Ou seja, a professora era uma pessoa marcada pela dor, que deixou marcas reais na pele (cicatrizes pelo corpo) e marcas metafóricas na psique (distúrbio de personalidade). Após uma adolescência confinada e reclusa, quando adulta busca uma espécie de compensação, vivendo com intensidade uma sexualidade tardia.

O vazio existencial de Theresa é preenchido por noites solitárias em bares mal frequentados lotados de fumaça, embalados por álcool e figuras insuspeitas, tão perdidas quanto ela própria. Um encontro de desesperançados na iminência de um destino trágico. Há uma afirmação feminina na atitude da professora, libertada do controle familiar e das convenções sociais. Após o término de um relacionamento tóxico e abusivo com seu professor, ela se descobre uma pessoa incapaz de construir relações sólidas e duradouras. Este foi o gatilho da nova vida paralela, onde a conquista da liberdade sexual é a única forma que encontra para aplacar a dores da alma.


À Procura de Mr. Goodbar é doloroso na descrição de uma personagem fragmentada. O olhar de Richard Brooks é simultaneamente íntimo (por vezes) e amoroso (quase sempre). Um olhar furtivo e voyeur que se alterna entre os inferninhos de Nova Iorque e o apartamento mal iluminado e depressivo de Theresa Dunn, onde recebe seus amantes de ocasião. Compartilhamos suas angústias e nos identificamos com sua dor, mas lamentamos a tragédia que se desenha, passo a passo.


Impossível falar deste filme sem destacar o desempenho visceral de Diane Keaton, que se entrega com intensidade a um papel ousado, sem rede de proteção. Recém saída das primeiras parcerias com Woody Allen, especialmente de Annie Hall (realizado no mesmo ano), pelo qual recebeu o Oscar de Atriz, nada fazia esperar que atriz fosse capaz deste mergulho em um tipo de papel totalmente inesperado para quem estava conquistando reconhecimento em filmes de comédia. Certamente este foi o fator que a fez aceitar o desafio de interpretar a personagem de Theresa Dunn: fugir do estereótipo. O resultado excepcional foi um atestado de seu talento como atriz, que a levaria para outros destinos na carreira.

No quesito elenco, o filme de Richard Brooks ainda apresenta um novato Richard Gere, em um de seus primeiros papéis no cinema, vivendo um dos parceiros da protagonista. Neste pequeno papel Gere já apresenta os trejeitos e maneirismos interpretativos que marcaram o início da sua carreira, particularmente em Gigolô Americano e A Força de um Amor (a refilmagem de Acossado de Godard).

À Procura de Mr. Goodbar é um filme a ser redescoberto.


Assista ao trailer: À Procura de Mr. Goodbar

 

Jorge Ghiorzi / Membro da ACCIRS

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quarta-feira, 28 de setembro de 2022

A Queda: medo e terror nas alturas

 


Um dos clássicos irretocáveis do cinema, Um Corpo Que Cai (Vertigo), possui como tema de fundo a acrofobia (o medo de altura). Naquela trama de suspense de Alfred Hitchcock a fobia é do personagem de James Stewart. Nós, assistentes, ficamos sempre em segurança. O tema do medo das alturas não é exatamente o problema das protagonistas de A Queda (Fall). O caso é exatamente o oposto, na verdade. Para elas, as alturas são desafios estimulantes que enfrentam por aventura e prazer. Então, a sensação do medo de altura fica restrita apenas para o espectador.

Os desafios não ficam por aí para as protagonistas. Some-se a experiência do confinamento em espaço reduzido e a luta pela sobrevivência. Pronto, estes são os ingredientes quase minimalistas que integram a fórmula enxuta de A Queda. Escrito e dirigido por Scott Mann (Vingança Entre Assassinos e O Sequestro do Ônibus 657) o filme é excepcional na tarefa de provocar a percepção de vertigem na plateia, de preferência em uma sala de cinema.


As amigas Becky (Grace Caroline Currey, de Annabelle 2: A Criação do Mal e Shazam!) e Hunter (Virginia Gardner, de Projeto Almanaque e Halloween 2018) têm por hobby desafiar as alturas em escaladas por montanhas rochosas, em busca de superação de limites, de adrenalina e visualizações de suas aventuras divulgadas por canais e blogs de internet. Abalada e deprimida emocionalmente após uma tragédia – apresentada no prólogo - Becky fica reclusa por um ano. Mas tudo muda quando Hunter a convence voltar às escaladas, para enfrentar seus medos e superar o trauma do passado. O objetivo da escalada redentora: o topo de uma torre de TV abandonada, com 600 metros de altura, no meio do deserto de Mojave. Mas nem tudo sai como previsto. O que seria uma aventura radical se transforma em uma experiência limite de vida ou morte, quando ambas ficam presas no topo da torre.


Novamente citando Hitchcock, vale lembrar que o mestre fez dois filmes inteiramente restritos e limitados a um espaço / cenário único: Festim Diabólico (um apartamento) e Um Barco e Nove Destinos (um bote salva-vidas). Este tipo de narrativa impõe necessariamente um clima de suspense e acrescenta uma camada extra de tensão que perpassa por todo o enredo. O êxito de narrativas deste tipo se sustenta na engenhosidade do encadeamento dos fatos que mantenham a atenção e garantam o interesse do espectador. Neste ponto A Queda se sai bem, desenvolvendo situações criativas, que se equilibram entre o surpreendente e o exagero, mas suficientemente coerentes para garantir a suspensão de descrença.

O roteiro ainda encontra espaço para desenvolver (ainda que minimamente) a trajetória das personagens, pelo menos no que se refere à ligação que une as duas, revelada lá pelas tantas. Para contar sua história o diretor Scott Mann não utiliza sequer o recurso do flashback, tão comum para preencher lacunas e vazios narrativos. O que vemos é o real do tempo dramático ou, no máximo, o registro de pequenos fragmentos do passado, visualizados pela tela de um celular. A Queda é confinado não apenas no espaço, mas também na dramatização. Para tanto contribuem enormemente para o resultado a edição, os efeitos sonoros e os efeitos de CGI, estes combinados com filmagens reais em uma torre verdadeira, de apenas 30 metros.


O thriller de suspense e terror A Queda é particularmente feliz em desencadear nossos gatilhos emocionais atávicos: medo da morte, abandono, fome, dentre outros. Produção restrita de recursos, mas eficiente na construção de emoções genuínas na plateia, o filme de Scott Mann é um bom motivo para o grande público voltar a vivenciar – em grande escala - a experiência sensorial de um filme exibido na telona de uma sala de cinema.

Assista ao trailer: A Queda


Jorge Ghiorzi / Membro da ACCIRS

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terça-feira, 6 de setembro de 2022

Treze Vidas – O Resgate: história real

 


A tragédia e o resgate dramático de um time adolescente de futebol preso em uma caverna inundada na Tailândia, ocorrido em 2018, atraiu a atenção da mídia internacional e comoveu o mundo inteiro. O episódio durou nove dias e apresentou lances emocionantes, quase inacreditáveis, como se fosse um filme transcorrendo na vida real em tempo real, sob os olhos atentos do planeta. Passados quatro anos, aquela incrível história ganha uma versão para o cinema, pois essencialmente o caso continha todos os elementos de uma narrativa ficcional com final feliz. Além, é claro, de fazer um devido reconhecimento ao trabalho heroico das equipes de resgate.

O caso é bastante conhecido e recente, mas não custa relembrar brevemente. Um time de futebol (os “Javalis Selvagens”) formado por 12 meninos (de 11 a 17 anos) e seu treinador (de 25 anos) da província tailandesa de Chiang Rai faziam um passeio na caverna Tham Luang, para se proteger do mau tempo. Logo a chuva ficou mais intensa e a água subiu muito rápido, deixando o grupo preso no local. As fortes chuvas inundaram a caverna e o grupo foi dado como desaparecido. As operações de busca começaram no mesmo dia, mas o nível da água dificultava o acesso das equipes de resgate.


Grandes tragédias costumam ser matéria prima para tratamentos ficcionais pelo cinema. Como exemplos podemos citar o caso dos sobreviventes dos Andes (Vivos) e dos mineiros chilenos soterrados (33). À frente desta adaptação cinematográfica da história dos garotos tailandeses está o diretor Ron Howard, um artesão clássico de Hollywood, já escolado por levar às telas outras histórias reais como Apollo 13, Uma Mente Brilhante (vencedor do Oscar de Melhor Filme), A Luta Pela Esperança, Frost / Nixon, Rush e Era Uma Vez Um Sonho.

Realizado com investimentos e coprodução tailandesa, Treze Vidas – O Resgate (Thirteen Lives) foi filmado em locações reais e é parcialmente falado em tailandês, o que, em termos de produções norte-americanas, representa uma concessão pouco usual. A decisão de filmar em espaços e cavernas reais – um pesadelo logístico pelas dificuldades que impõe – foi decisiva para a construção do clima claustrofóbico essencial para representar a tensão constante que permeia a ação dramática.


Esta decisão, acertada no que refere à ambientação do filme, que assegura um realismo dificilmente alcançado em estúdio, ganha ainda mais força pela forma como Ron Howard e o roteiro abordaram a história. A narrativa de Treze Vidas basicamente tem apenas o ponto de vista externo da tragédia na caverna, envolvendo mergulhadores, socorristas, familiares e políticos, em uma pouco sutil disputa por protagonismo. O outro lado da história, os garotos sobrevivendo ao medo, à fome, ao frio, pouco é mostrado. Esta face da história é sonegada a nós, espectadores. No entanto isto só reforça o senso de urgência e potencializa a angústia de uma situação extrema.


A direção de Ron Howard é sóbria e reverente ao sofrimento das crianças e suas famílias, verdadeiros protagonistas. E aqui vale uma palavra para os desempenhos contidos e respeitosos de Viggo Mortensen e Colin Farrell que interpretam mergulhadores britânicos voluntários que se juntam aos grupos de resgate criados pelo governo da Tailândia. Os atos heroicos dos dois mergulhadores – dentre eles a elaboração do incrível plano de resgate – são mostrados com um realismo quase documental e sustentam o interesse por mais de duas horas de filme.

Treze Vidas é um resgate de uma história de superação e celebração do espírito humano, realizado com correção e inspiração.

Assista ao trailer: Treze Vidas – O Resgate


Jorge Ghiorzi / Membro da ACCIRS


quarta-feira, 31 de agosto de 2022

Era Uma Vez um Gênio: muita fantasia e pouca imaginação

 

O conto fantástico que apresenta um gênio da lâmpada que concede três desejos faz parte da compilação árabe “Mil e Uma Noites”. Graças às inúmeras versões cinematográficas a história ganhou popularidade e se incorporou também na tradição ocidental. A mais nova versão deste conto, que chega às telas pelas mãos de George Miller, traz uma nova abordagem. O gênio, sempre tratado como um personagem secundário, desta fez é alçado à condição de coprotagonista e narrador da história.

A filmografia do australiano George Miller é um caso à parte pela diversidade de temas, abordagens e gêneros. Aos 77 anos o diretor segue filmando com a energia de diretor estreante, sem medo de se aventurar por terrenos inexplorados, desafiando riscos. O cineasta que criou Mad Max nos anos 70, já filmou porquinhos e pinguins digitais e recentemente nos entregou o vigoroso Mad Max: Estrada da Fúria, não para de nos surpreender. Seu mais recente trabalho, Era Uma Vez um Gênio (Three Thousand Years of Longing), é um misto de drama, romance e comédia que se insere na mesma linha de, por exemplo, As Bruxas de Eastwick - que Miller realizou em 1987 – no que se refere à inserção de elementos de fantasia na narrativa.


Enquanto participava de uma conferência em Istambul (Turquia) a intelectualizada e solitária Drª Alithea Binnie (Tilda Swinton), especialista em narrativas históricas, adquire um pequeno jarro de vidro em uma loja de souvenir. Ao lavar a peça acaba libertando um djinn (Idris Elba), uma entidade sobrenatural da mitologia árabe que no ocidente conhecemos como “Gênio". A criatura lhe oferece três desejos em troca de sua liberdade. A Drª se recusa a fazer os pedidos, pois sua racionalidade coloca em dúvida a veracidade do mito que está à sua frente. O djinn, então, tenta convencê-la contando histórias fantásticas de seu passado. Por fim, ela acaba fazendo um surpreendente pedido que expressa seus mais profundos desejos com consequências inesperadas para os dois.

O filme em grande medida resgata a tradição das histórias orais colocando em cena um narrador (no caso o próprio djinn) como uma espécie de menestrel que supervaloriza sua própria biografia. O objetivo era seduzir sua interlocutora com suas incríveis aventuras por reinos e reinados ao longo da história. Mas, para azar do gênio sedutor, Alithea é uma pessoa racional demais para embarcar naquelas narrativas. É neste ponto que se revela o tema central do filme: o conflito entre Mito e Ciência.


As discussões filosóficas dos dois personagens num quarto de hotel revelam inicialmente duas posições antagônicas, que ao fim encontram um ponto comum de convivência. O gênio encontra razões para aceitar uma vida mais “humana” e a doutora, por sua vez, rompe (parcialmente) suas sólidas convicções racionais e cede para uma vida mais leve, com fantasia e imaginação.

A estrutura de uma história, dentro de uma história, dentro de uma história de Era Uma Vez um Gênio nos leva inevitavelmente a uma narrativa episódica, que raramente conquista a atenção da plateia, e aqui, particularmente, é maçante por vários momentos. O todo e suas partes tende a ser um pouco dispersivo, pois o ritmo dramatúrgico é sacrificado em favor de uma narrativa que parece se encantar demasiadamente com os encantos da própria história que está encenando. Onde tudo isso nos leva?


O ponto de chegada não é exatamente recompensador em termos de espetáculo de entretenimento. O terceiro ato do filme de George Miller é uma reversão de expectativa. Os três mil anos que o enredo do filme abrange se concluem de maneira trivial e decepcionante. Muito barulho por nada, diria Shakespeare. Difícil acreditar que Era Uma Vez um Gênio faça carreira e encontre público nos cinemas. O destino parece ser mesmo o streaming, onde eventualmente até possa ser uma boa opção para uma sessão sem compromisso.

Então, só nos resta dizer: “Senhor Miller, por favor, volte logo para a estrada furiosa”.

Assista ao trailer: Era Uma Vez um Gênio


Jorge Ghiorzi / Membro da ACCIRS


quarta-feira, 24 de agosto de 2022

“Não! Não Olhe!”: verdades ocultas

 


O que os olhos não veem o coração não sente, diz o provérbio popular. Portanto, “corra”, “não, não olhe”. Este é o melhor conselho que “nós” podemos lhe dar, pois a ameaça do novo filme de Jordan Peele vem do espaço e pouco podemos fazer para escapar ileso. Com o lançamento de Não! Não Olhe! (Nope) o cineasta conclui seu tríptico revisionista das narrativas hollywoodianas, inserindo definitivamente seu nome na galeria dos mais destacados realizadores contemporâneos de gênero.

Localizado no Vale de Santa Clarita, nos arredores de Los Angeles, o Rancho Haywood dos irmãos OJ (Daniel Kaluuya) e Emerald Haywood (Keke Palmer) é uma herança do falecido pai, criador e domador de cavalos utilizados pela indústria cinematográfica em filmes e séries. Os negócios já não prosperam como nos velhos tempos. A economia mudou, Hollywood mudou. O passado é só uma lembrança nostálgica.


Enquanto lutam para manter o funcionamento do rancho, OJ e Emerald começam a perceber a ocorrência de fenômenos e acontecimentos inexplicáveis que parecem ter origem bem acima deles, nos céus sobre o árido deserto. Obcecados para desvendar o mistério – e se possível ganhar algum dinheiro com isso – os irmãos decidem criar uma forma de filmar e registrar aqueles fenômenos de origem desconhecida.

O protagonismo de elencos predominantemente negros é uma constante nos trabalhos de Jordan Peele, e aqui não é diferente. O contexto racial também está presente, ainda que mais atenuando do que em Corra, por exemplo. Protagonismo este que desta vez extrapola os limites do filme e se expande para o próprio Cinema como um todo. Isto se manifesta já nos primeiros minutos quando somos apresentados à história por trás dos pioneiros experimentos do fotógrafo Eadweard Muybridge. No final do século 19 ele registrou pela primeira vez um simulacro de movimento através das imagens – o que seria o protocinema – quando apresentou ao mundo uma série de fotografias de um cavalo montado por cavaleiro. Jordan Peele nos conta então, através da personagem Emerald, uma versão cheia de liberdades (que atende aos propósitos do diretor) de que aquele cavaleiro era um homem negro. Portanto, a primeira imagem em movimento de um ser humano foi protagonizada por um negro, porém, o apagamento histórico não permitiu o devido reconhecimento daquele personagem.


Há constantemente no subtexto do filme uma relação direta com o cinema e o contexto do olhar do expectador. O universo da indústria cinematográfica está presente na atividade dos protagonistas – fornecedores de cavalos para o cinema – e também de um personagem secundário, o ex-astro mirim de uma série de sucesso da TV, marcado por uma tragédia ocorrida nos estúdios de gravação. O mistério que sobrevoa o Rancho Haywood não deve ser desafiado pelo olhar. Não devemos olhar para “ele”, sob pena de ser eliminado. Mas, nada consta que não possa ser registrado pelo “olhar eletrônico” de uma câmera de vídeo. Ou seja, o fato só torna-se real, objetivo, quando captado por vídeo. A imagem só é legitimada quando devidamente registrada. Uma subversão do real que só o cinema pode reivindicar.

Nem seria necessário um olhar mais atento para percebermos que desta vez Jordan Peele está vivendo seu momento Shyamalan. No caso, é real e intencional a semelhança, reconhecida pelo próprio realizador que cita o cineasta de origem indiana como uma referência na concepção do filme, cujo roteiro é do próprio Peele.


Não! Não Olhe! é simultaneamente complexo, misterioso e desafiador, sem, no entanto, deixar de ser também divertido com plena consciência da noção de espetáculo para grandes públicos. Muito longo para ser um episódio de Twilight Zone (cuja nova versão tem o comando de Peele) e muito curto para ser uma minissérie, o filme se ressente das consequências do excesso de ambição do realizador. Jordan Peele parece não ter dado conta plenamente de todas as potencialidades que são construídas ao longo da narrativa, reduzindo a essência do seu filme ao que ele realmente é: um exercício de terror e suspense com ecos de Filme B. Um entretenimento puro sangue.

Assista ao trailer: Não! Não Olhe!


Jorge Ghiorzi

Membro da ACCIRS

sábado, 7 de maio de 2022

De Olhos Abertos


 

por Alexandre Derlam


De Olhos Abertos

“Quando os integrantes do Boca se reúnem, eles formam uma roda. Ninguém fica na frente ou atrás de ninguém. Todos podem se olhar nos olhos da mesma distância. Em 18 anos de vida, passamos por muita coisa juntos. JUNTOS, essa é a palavra que nos define...”.

Este texto é apresentado na abertura do documentário De Olhos Abertos. A cena em questão é uma reunião das pessoas em situação de rua que produzem e vendem o seu próprio jornal, o “Boca de Rua”, único no mundo. Os participantes formam uma roda e a jornalista Rosina Duarte, uma das criadoras do Boca de Rua, compartilha o texto em voz alta. Rosina exerce um papel como figura central na história. Em suas conversas com o grupo vamos conhecendo os moradores de rua integrantes do Boca. Um misto formado por relatos, registros da vida e até da rotina destes moradores e suas representações. Manifestações contundentes e reveladoras. Com potencial para nos fazer pensar: Como a gente os vê? De onde a gente olha? Quais relações criamos e como reagimos?


A narrativa se apoia nos depoimentos e olhares dos integrantes do Boca de Rua. Suas impressões sobre a cidade, o cotidiano e o valor do trabalho realizado com o jornal. Junto aos depoimentos e conversas, está a constante observação da câmera. Acompanhando os moradores pelas ruas. Enquanto oferecem o jornal, dormem, brincam e se alimentam. Vemos repetitivamente calçadas e seus buracos. Lages quebradas numa demonstração de abandono. Durante as reuniões todos são participantes ativos. Discutem e debatem os temas definindo as escolhas de pautas, matérias e fotos. Conferem e aprovam capas e edições. De forma democrática e participativa, cabendo sempre a Rosina mediar as conversas e desavenças.  Há espaço para contestação e indignação. Mas as regras estabelecidas são cumpridas. Alguns dos personagens ganham mais evidência. Seja na eloquência de seus relatos e pensamentos (caso específico de Anderson). Ele se inscreveu no vestibular da UFRGS e foi aprovado. Inteligente e questionador, Anderson se destaca entre os depoimentos ao longo dos 112 min de projeção.

Há também um simpático e diplomático candidato a vereador. O camarada é um sonhador como ele mesmo diz. Seus recursos de oratória e visual caprichado (o tempo todo vestindo blaser e gravata) conferem uma certa nobreza, espontaneidade e bom humor. A propósito o alto astral está presente em boa parte do filme. Uma empatia natural que emana da tela. E este é apenas um entre outros pontos positivos da produção. Capaz de dar voz a todos e todas com sensibilidade, carinho e respeito (sem apelar a vitimismo ou fazer uso de dados assistenciais ou sentimentais) e sim dialogando com o espectador. Permitindo suas reações e reflexões.


Em uma dinâmica com fluência de imagens e som. De Olhos Abertos possui dois fundamentos muito importantes e que podem ser identificados com uma observação mais próxima. A montagem é assinada pela diretora Charlotte Dafol e por Alfredo Barros. Sendo coerente e precisa. Alfredo é um nome conhecido e atuante no meio cinematográfico. Um montador experiente que também atua como professor de cinema. Uma outra atração a parte é a trilha sonora a cargo do trio de compositores Rafael Sarmento, Marcelo Cougo e Paulo Bettanzos. Além de funcionar organicamente, fornece ritmo e contagia a plateia, colaborando nas passagens e transições ao longo da projeção. Sem esquecer a contribuição do trabalho de desenho de som realizado por Juan Quintáns.


O filme vem construindo uma carreira significativa com sessões culturais, sociais e principalmente obtendo justa notoriedade e reconhecimento em premiações. Foi selecionado em diversos festivais nacionais e internacionais. Fruto da proximidade e entrosamento da diretora com os entrevistados. Da capacidade de demonstrar uma visão intima de classe. Se por um lado De Olhos Abertos não apresenta experimentação com a linguagem, suas boas escolhas são acessíveis e familiares ao público. Como resultado principal, o filme nos devolve um pouco da esperança e da crença em espaços sociais onde possamos coexistir. Com mais coletividade e sendo plurais.

quarta-feira, 23 de março de 2022

“Ambulância – Um Dia de Crime”: motorista sem limites

 


Abram caminho no trânsito. Lá vem a ambulância. A bordo, um policial ferido e uma socorrista. No volante, dois assaltantes em fuga. No comando, um cineasta movido à adrenalina aditivada: Michael Bay. Esta poderia ser uma sinopse minimalista de Ambulância – Um Dia de Crime (Ambulance), a eletrizante versão estadunidense de um filme de ação dinamarquês lançado em 2005. Porém, de minimalista não temos nada. Tudo é over e superlativo, afinal, estamos falando de Michael Bay.

E é justamente pela visão do realizador que se inicia a análise deste vertiginoso thriller de assalto a banco. Há ali, de maneira flagrante, uma assinatura, um estilo de filmar, um modo de injetar vertigem na narrativa, sem dar trégua ao espectador. Não se trata de uma forma esporádica de filmar. É uma tradição recorrente que se reafirma, filme após filme, desde Os Bad Boys, A Rocha e Armageddon, nos anos 90, até Transformers, Sem Dor, Sem Ganho e 13 Horas: Os Soldados Secretos de Benghazi, nos anos 2000. Então, sim, para Michael Bay a forma se impõe decisivamente sobre o conteúdo.


Posto isso, vamos ao que interessa. O “rei das explosões” está de volta, desta vez com uma veloz e furiosa Ambulância como uma das “personagens”, que entra por azar no centro de um malogrado assalto a banco. Os autores do roubo são dois irmãos (um deles adotivo). Danny (Jake Gyllenhaal) é um criminoso profissional, reconhecido pela ousadia e inteligência. Will Sharp (Yahya Abdul-Mateen, do recente Matrix Ressurectons), seu irmão, é um ex-combatente do Exército norte-americano, em dificuldades financeiras para bancar a cirurgia da esposa. Ao pedir ajuda ao irmão, Will é convencido por Danny a participar do grupo que vai assaltar um banco em busca de 32 milhões de dólares (isso, dinheiro físico, cédulas). O roubo, que parecia fácil, dá errado e a dupla escapa da cena do crime sequestrando uma ambulância que está no local para atender os feridos do intenso tiroteio.

Em se tratando de filme de Michael Bay, a formatação clássica dos três Atos sofre uma sensível distorção dos cânones hollywoodianos. Temos dez minutos expositivos no primeiro Ato, seguidos de frenéticos 90 minutos no segundo Ato, e por fim rápidos três minutos de desfecho no terceiro Ato. É papo reto.


Diferente de Velocidade Máxima (1994), com o qual guarda alguma semelhança pelo mote da perseguição implacável, com alguma surpresa podemos identificar que em Ambulância – Um Dia de Crime o diretor vai um pouquinho além (bem pouco, diga-se) demonstrando alguns sinais vitais em seus personagens principais. Isso mesmo, há vidas reais por trás daqueles personagens, mas nada que roube a cena a ponto de distrair a plateia para a essência da caçada motorizada pelos subúrbios da ensolarada Los Angeles. Neste aspecto se destaca a socorrista Cam Thompson, vivida pela mexicana Eiza Gonzáles (Em Ritmo de Fuga e Velozes & Furiosos: Hobbs & Shaw), que apresenta um arco de personagem que a transforma ao longo da narrativa. A Cam Thompson do inicio do filme não é a mesma do final, após o desfecho do episódio da perseguição. O coração do filme está em suas mãos, no sentido figurado e literal. O cinema da testosterona de Bay dá ainda sinais que se atualiza aos novos tempos de diversidade: um dos agentes do FBI tem um relacionamento homoafetivo.


A natureza nos impõe algumas leis irrevogáveis, mas não para Michael Bay. Para ele a Lei da Gravidade simplesmente não existe. Além disso, a energia cinética dos seus veículos em movimento parece desafiar a Física que se conhece. Tudo em nome do espetáculo, e que espetáculo! Algumas das sequências ensandecidas das perseguições (e dos tiroteios também) são no mais das vezes empolgantes. A utilização de drones nas tomadas está cada vez mais desenvolvida, e o diretor faz um excelente trabalho utilizando esta técnica de captação do movimento real.

A edição frenética e a câmera instável também estão presentes, um cacoete que Michael Bay trouxe dos diversos videoclipes musicais que dirigiu antes de entrar para a carreira de diretor de cinema. Nestes aspectos visuais Bay traz alguns traços de semelhança com o trabalho do precocemente morto Tony Scott, que tinha o hábito (amuleto?) de utilizar um surrado boné rosado durante as filmagens. Curioso que em Ambulância um dos personagens (líder da equipe do FBI) utiliza também um surrado boné com esta cor. Caso tenha sido uma homenagem intencional, foi bem-vinda.


Ambulância – Um Dia de Crime não reinventa a roda, mas dá fôlego para um gênero de filme de ação que parecia não empolgar mais as plateias pela repetição ad infinitum da fórmula (está aí a franquia Velozes & Furiosos, testando os limites da paciência do público). Aqui estão, lado a lado, o melhor e o pior de Michael Bay. Ao equilibrar-se entre a megalomania e a pieguice, ele até se permite a fazer piadinhas autorreferentes com dois de seus maiores sucessos, A Rocha e Os Bad Boys. Agora, vamos aguardar seu novo projeto, uma ficção científica chamada Robopocalypse.

Assista ao trailer: Ambulância – Um Dia de Crime


Jorge Ghiorzi

Membro da ACCIRS