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quarta-feira, 24 de agosto de 2022

“Não! Não Olhe!”: verdades ocultas

 


O que os olhos não veem o coração não sente, diz o provérbio popular. Portanto, “corra”, “não, não olhe”. Este é o melhor conselho que “nós” podemos lhe dar, pois a ameaça do novo filme de Jordan Peele vem do espaço e pouco podemos fazer para escapar ileso. Com o lançamento de Não! Não Olhe! (Nope) o cineasta conclui seu tríptico revisionista das narrativas hollywoodianas, inserindo definitivamente seu nome na galeria dos mais destacados realizadores contemporâneos de gênero.

Localizado no Vale de Santa Clarita, nos arredores de Los Angeles, o Rancho Haywood dos irmãos OJ (Daniel Kaluuya) e Emerald Haywood (Keke Palmer) é uma herança do falecido pai, criador e domador de cavalos utilizados pela indústria cinematográfica em filmes e séries. Os negócios já não prosperam como nos velhos tempos. A economia mudou, Hollywood mudou. O passado é só uma lembrança nostálgica.


Enquanto lutam para manter o funcionamento do rancho, OJ e Emerald começam a perceber a ocorrência de fenômenos e acontecimentos inexplicáveis que parecem ter origem bem acima deles, nos céus sobre o árido deserto. Obcecados para desvendar o mistério – e se possível ganhar algum dinheiro com isso – os irmãos decidem criar uma forma de filmar e registrar aqueles fenômenos de origem desconhecida.

O protagonismo de elencos predominantemente negros é uma constante nos trabalhos de Jordan Peele, e aqui não é diferente. O contexto racial também está presente, ainda que mais atenuando do que em Corra, por exemplo. Protagonismo este que desta vez extrapola os limites do filme e se expande para o próprio Cinema como um todo. Isto se manifesta já nos primeiros minutos quando somos apresentados à história por trás dos pioneiros experimentos do fotógrafo Eadweard Muybridge. No final do século 19 ele registrou pela primeira vez um simulacro de movimento através das imagens – o que seria o protocinema – quando apresentou ao mundo uma série de fotografias de um cavalo montado por cavaleiro. Jordan Peele nos conta então, através da personagem Emerald, uma versão cheia de liberdades (que atende aos propósitos do diretor) de que aquele cavaleiro era um homem negro. Portanto, a primeira imagem em movimento de um ser humano foi protagonizada por um negro, porém, o apagamento histórico não permitiu o devido reconhecimento daquele personagem.


Há constantemente no subtexto do filme uma relação direta com o cinema e o contexto do olhar do expectador. O universo da indústria cinematográfica está presente na atividade dos protagonistas – fornecedores de cavalos para o cinema – e também de um personagem secundário, o ex-astro mirim de uma série de sucesso da TV, marcado por uma tragédia ocorrida nos estúdios de gravação. O mistério que sobrevoa o Rancho Haywood não deve ser desafiado pelo olhar. Não devemos olhar para “ele”, sob pena de ser eliminado. Mas, nada consta que não possa ser registrado pelo “olhar eletrônico” de uma câmera de vídeo. Ou seja, o fato só torna-se real, objetivo, quando captado por vídeo. A imagem só é legitimada quando devidamente registrada. Uma subversão do real que só o cinema pode reivindicar.

Nem seria necessário um olhar mais atento para percebermos que desta vez Jordan Peele está vivendo seu momento Shyamalan. No caso, é real e intencional a semelhança, reconhecida pelo próprio realizador que cita o cineasta de origem indiana como uma referência na concepção do filme, cujo roteiro é do próprio Peele.


Não! Não Olhe! é simultaneamente complexo, misterioso e desafiador, sem, no entanto, deixar de ser também divertido com plena consciência da noção de espetáculo para grandes públicos. Muito longo para ser um episódio de Twilight Zone (cuja nova versão tem o comando de Peele) e muito curto para ser uma minissérie, o filme se ressente das consequências do excesso de ambição do realizador. Jordan Peele parece não ter dado conta plenamente de todas as potencialidades que são construídas ao longo da narrativa, reduzindo a essência do seu filme ao que ele realmente é: um exercício de terror e suspense com ecos de Filme B. Um entretenimento puro sangue.

Assista ao trailer: Não! Não Olhe!


Jorge Ghiorzi

Membro da ACCIRS