quarta-feira, 29 de março de 2023

O Urso do Pó Branco: sessão VHS

 


Em 1985 diversos pacotes de cocaína foram lançados de um avião de contrabandistas sobre uma floresta no estado da Georgia (EUA). Este episódio verídico, que recebeu grande atenção da imprensa à época, é apenas o ponto de partida para o longa O Urso do Pó Branco (Cocaine bear). A partir deste fato inusitado a imaginação dos roteiristas entra em ação para contar o que poderia ter ocorrido após um urso encontrar os pacotes da droga, cheirar o pó, ficar doidão e sair barbarizando todos os humanos que encontra pela frente. A história possui todos os elementos para uma história de horror, mas o que temos aqui é a mais escrachada das comédias, cujo urso protagonista mereceria sim o apelido de “Pablo Escobear”.


A direção da comédia é de Elizabeth Banks, atriz que está cada vez mais se consolidando como realizadora, cujo último trabalho atrás das câmeras havia sido a mal sucedida nova versão de As Panteras, em 2019, estrelada por Kristen Stewart. Com as “panteras” Elizabeth Banks não se deu bem nas bilheterias, mas com o urso “Pablo Escobear” ela acertou a mão. O filme tem sido recebido pela crítica e público como um divertido entretenimento, que desperta um gatilho nostálgico que nos remete às comédias malucas com a marca registrada dos anos 80.


O climão oitentista está presente nos 91 minutos de duração de O Urso do Pó Branco. É absolutamente intencional o desejo de Banks em recriar o estilo do humor meio non sense e escatológico das comédias de 35/40 anos atrás. Para tanto parece que a realizadora buscou inspiração direto na fonte, com realizadores como Sam Raimi (especialmente pela trilogia Evil Dead) e os irmão Coen dos primeiros filmes (antes de começarem a se levar a sérios demais). A propósito, Banks fez muito bem este tema de casa. Seu filme é suficientemente esperto e eficiente justamente por um descompromisso em problematizar e cair na tentação de criar camadas de complexidade para um enredo cuja premissa não passa de uma grande bobagem.


O Urso do Pó Branco é aquele tipo de filme que seria um sucesso nas prateleiras das finadas videolocadoras de VHS. Um pouco de violência, um pouco de sangue e vísceras, um tanto de humor pastelão, um punhado de personagens descartáveis e um urso chapadão botando pra quebrar. No elenco um destaque para a participação de Ray Liotta como um descontrolado mafioso de segundo escalão, seu último papel no cinema, antes do morrer em 2022.


Uma versão brazuca possível desta história poderia ser inspirada no chamado “Verão de lata”, que ocorreu em 1987, quando centenas de latas com maconha surgiram boiando no litoral do Rio de Janeiro. Se um urso cheira pó, um tubarão pode “fumar” maconha, não é verdade? Então, roteiristas, mãos à obra.

Assista ao trailer: O Urso do Pó Branco


Jorge Ghiorzi / Membro da ACCIRS

janeladatela@gmail.com


quarta-feira, 22 de março de 2023

John Wick 4 – Baba Yaga: insano, empolgante e divertido

 


E pensar que tudo começou por causa de um carro e um cachorro. A saga de John Wick chega ao seu quarto episódio dando sequência ao seu acerto de contas com o passado, ao mesmo tempo em que luta para não ser eliminado pelos vilões que encontra onde quer que ele apareça. Seja nas ruas de Nova Iorque ou nas areias do deserto, seja em Paris, Tóquio ou Berlim. Inimigos é o que não faltam na vida do icônico personagem interpretado por Keanu Reeves já há uma década.

No folclore russo a expressão Baba Yaga é o equivalente ao nosso brasileiríssimo “bicho-papão”. John Wick 4 – Baba Yaga chega ao circuito, mais uma vez com direção de Chad Stahelski, o que já é garantia, no mínimo, de uma unidade narrativa e artística, que ganha desdobramentos e expande o conceito original de maneira consistente a cada novo episódio da franquia.

Com exceção dos primeiros minutos do primeiro episódio da série, quando adotou um tom mais realista (com a devida ressalva do termo!), o fato é que a saga John Wick mergulha cada vez mais fundo, a cada novo filme, em uma espécie de universo paralelo e alegórico. Neste espaço-tempo onde transcorrem as tramas a ordem das coisas e as leis da física são particularmente distintas da realidade na qual nós, simples mortais, vivemos. Que não fiquemos surpresos se em algum episódio futuro da série o agente Nick Fury surgir em cena para convidar John Wick para integrar o time dos Vingadores no MCU.


Muito já se falou sobre o impacto que o primeiro John Wick, lançado em 2014, provocou nos filmes de ação. Em um passe de mágica tudo que se fazia até então no gênero ficou ultrapassado. O truque, se é que podemos falar assim, está na bem sucedida aposta do realizador Chad Stahelski (um ex-dublê) que ousou filmar as cenas de luta como grandes planos-sequência, com poucos cortes e recursos de edição. Algo semelhante aos filmes de Kung Fu dos anos 70 e aos filmes de ação asiáticos dos anos 80/90, que também adotam esta forma de filmar com poucos cortes. Muito diferente, por exemplo, dos filmes de Jason Bourne, celebrizados na primeira década dos anos 2000 justamente pela edição acelerada que fragmentava em excesso as cenas de luta.

A influência do estilo “John Wick” já está presente, por exemplo, nos filmes da franquia James Bond, que sempre foram muito espertos em captar o espírito do seu tempo em busca de renovação para manter a relevância. Neste formato de filmar lutas mais expositivas e menos descritivas, a essência do trabalho artístico deixa de ser uma tarefa do editor e passa a ser mais do coreógrafo. Ou seja, valoriza o elemento humano/orgânico (em desfavor do tecnológico), isto sem falar na maior exigência dos atores envolvidos. Que o diga o próprio Keanu Reeves. Consta que ele participa da quase totalidade das sequências, sem utilização de dublês.


Em John Wick 4 o plot básico segue inalterado: vingança. O nível da caçada pela cabeça de Wick, no entanto, está vários graus acima dos episódios anteriores, algo que beira ao épico, diríamos, sem medo do exagero. Mas o mundo não é perfeito. Ganhamos mais (muito mais) ação, porém a trama é frágil como nunca e se sustenta em um fio de história. Isto parece um lamento? Hum, creio que não. Não há uma reclamação aqui. Apenas uma constatação. O que John Wick 4 nos oferece em troca é o melhor dos mundos em termos de vitalidade, energia, ação ininterrupta e incríveis (e longas) sequências de ação. Keanu Reeves está mais veloz e mais furioso, como nunca o vimos antes, pelo menos até o próximo filme.


A já citada alegoria, sob a qual transcorrem todas as tramas de John Wick, atinge um ápice neste episódio quatro da franquia e reforça o caráter mitológico que se constrói na série. Fomos apresentados ao personagem John Wick quando ele já estava aposentado como assassino profissional. O retorno à ativa espelha, em certa medida, a Odisseia de Ulisses, que depois de anos e anos na guerra deseja apenas voltar para a tranquilidade do lar. Após violar as regras da Alta Cúpula, Wick precisa, no entanto, passar pela penitência, tal qual os Doze Trabalhos de Hércules. Nesta trajetória enfrenta desafios e provas, mas parece um trabalho sem fim, como o Mito de Sísifo que tenta em vão subir a montanha. A fantástica sequência da escadaria é uma excelente analogia desta provação.


John Wick 4 é um produto ousado e arriscado para um mercado cinematográfico que ainda busca recuperação após o período pandêmico, que restringiu o acesso às salas de cinema. Suas quase 3 horas de duração poderiam ser um veneno de bilheteria. Mas, creiam, os 169 minutos passam voando. JW4 é insano, exagerado, empolgante e divertido. Enfim, pacote completo. Que venha o 5.

Assista ao trailer: John Wick 4 – Baba Yaga


Jorge Ghiorzi / Membro da ACCIRS

janeladatela@gmail.com


terça-feira, 21 de março de 2023

Além de Nós: estradas da vida

 


Rodado em catorze cidades de cinco estados - Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia - Além de Nós é o longa-metragem de estreia do diretor Rogério Rodrigues para as telas grandes (anteriormente o realizador dirigiu a série Universo Z para canais de streaming). O filme se passa parcialmente no pampa gaúcho, mas sua narrativa se estende para outras regiões e locais do país, como o Palácio do Catete, no Rio de Janeiro, e o tradicional Rodeio do Rancho Quarto de Milha em Presidente Prudente, no interior paulista.

Além de Nós conta a história de Léo (Miguel Coelho), um jovem peão de fazenda que nunca saiu de seu pequeno vilarejo no sul do Brasil. Ele sofre duas grandes perdas no mesmo dia: é demitido e testemunha a morte do pai (participação de Clemente Vascaíno). Ao encontrar uma foto e uma carta, Leo se depara com a necessidade de realizar o último desejo de seu pai. Para atender ao pedido, viaja com seu tio Artur (Thiago Lacerda) para a cidade do Rio de Janeiro. No caminho desconhecido, Leo resgata a relação com o tio, de quem discorda totalmente sobre a forma de ser e de viver, tornando esta jornada uma grande aventura de descobertas e transformações.

O filme de Rogério Rodrigues foi exibido na 43ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo em 2022.


Há um pecado original na exposição inicial dos personagens de Além de Nós. Nada que comprometa essencialmente a obra, mas efetivamente retarda nossa identificação com a narrativa. Os protagonistas, Artur e Leo, são apresentados de maneira um tanto apressada e elíptica, com muitas lacunas que devem ser preenchidas (ou intuídas pelo espectador). Artur é o tio sem eira nem beira, aparentemente um gaúcho urbano que não encontra formas razoáveis e satisfatórias de conviver na solidão da vida na fazenda. A bebida é sua grande companheira e aliada. Em síntese, um péssimo exemplo a ser seguido pelo sobrinho Leo, um jovem peão de estância. O episódio da demissão de Leo é o estopim que move a narrativa. Não sabemos a razão objetiva da demissão, não sabemos se houve injustiça ou não. Portanto, a princípio, Leo não conta como nossa empatia. Ao relatar sua demissão para o pai ocorre uma discussão, único momento de interação entre os dois. A relação de Leo com o pai é aparentemente fria e conflitada. Nada que justifique plenamente, portanto, a missão que o jovem toma para si ao cumprir a qualquer custo o desejo final do falecido pai. A motivação parece frágil, ainda que represente uma espécie de acerto de contas decorrente de um sentimento de culpa.


Superado este impasse narrativo do primeiro ato, finalmente vamos embarcar na jornada. Os termos “embarcar” e “jornada”, utilizados aqui, não são gratuitos, pois trata-se sim de uma viagem. Além de Nós é um road movie, e como todos filmes que trabalham neste registro, o movimento exterior é sempre uma metáfora do movimento interior dos personagens. Cenários mudam, estradas se sucedem, experiências se acumulam e valores de transformam. Esta é a fórmula dos “filmes de estrada”. O longa de Rogério Rodrigues não foge desta cartilha.

Na condição de road movie Além de Nós é um filme de personagens em contraste com paisagens, e deste confronto a resultante é a sabedoria, o entendimento do sentido da vida e do lugar que ocupamos no mundo. Esta é a transformação que ocorre com os protagonistas, Artur e Leo. Um tema subjacente, que perpassa a narrativa, é a transformação pela qual passa o campo, em oposição ao avanço da civilização tecnológica. A lida campeira, raiz e tradicional, vem perdendo espaço, como bem comprova o peão Leo ao lamentar que a fazenda onde trabalhava optou pelo reflorestamento, abrindo mão da criação de gado no pasto. A imagem icônica de uma barreira de árvores, que interrompe a cavalgada livre do gaúcho em sua montaria, é um símbolo eloquente que representa em imagens este embate desigual.


A transformação de Leo se manifesta por um movimento inverso e espelhado entre a natureza externa da paisagem e o universo interior do personagem. Contido, quase deprimido, quando em seu habitat natural – o extenso pampa gaúcho com horizonte distante – Leo sai do casulo e assume uma personalidade expansiva e livre quando exposto à opressão do meio urbano e a rudeza do asfalto. A relação com o tio Artur (uma composição interessante de Thiago Lacerda) passa por diversas fases, da rejeição à aceitação, da indiferença à dependência. A jornada aparou as diferenças, estimulou a tolerância e revelou novas perspectivas para olhar o outro. A realização do último desejo do pai passa a ser apenas um pretexto para uma forçosa – e dolorosa – descoberta pessoal.

Além de Nós é uma viagem onde o ponto de chegada está longe de ser o destino final. É apenas o início das diversas estradas da vida que estão à nossa frente.

Assista ao trailer: Além de Nós

 

Jorge Ghiorzi / Membro da ACCIRS

janeladatela@gmail.com