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terça-feira, 21 de março de 2023

Além de Nós: estradas da vida

 


Rodado em catorze cidades de cinco estados - Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia - Além de Nós é o longa-metragem de estreia do diretor Rogério Rodrigues para as telas grandes (anteriormente o realizador dirigiu a série Universo Z para canais de streaming). O filme se passa parcialmente no pampa gaúcho, mas sua narrativa se estende para outras regiões e locais do país, como o Palácio do Catete, no Rio de Janeiro, e o tradicional Rodeio do Rancho Quarto de Milha em Presidente Prudente, no interior paulista.

Além de Nós conta a história de Léo (Miguel Coelho), um jovem peão de fazenda que nunca saiu de seu pequeno vilarejo no sul do Brasil. Ele sofre duas grandes perdas no mesmo dia: é demitido e testemunha a morte do pai (participação de Clemente Vascaíno). Ao encontrar uma foto e uma carta, Leo se depara com a necessidade de realizar o último desejo de seu pai. Para atender ao pedido, viaja com seu tio Artur (Thiago Lacerda) para a cidade do Rio de Janeiro. No caminho desconhecido, Leo resgata a relação com o tio, de quem discorda totalmente sobre a forma de ser e de viver, tornando esta jornada uma grande aventura de descobertas e transformações.

O filme de Rogério Rodrigues foi exibido na 43ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo em 2022.


Há um pecado original na exposição inicial dos personagens de Além de Nós. Nada que comprometa essencialmente a obra, mas efetivamente retarda nossa identificação com a narrativa. Os protagonistas, Artur e Leo, são apresentados de maneira um tanto apressada e elíptica, com muitas lacunas que devem ser preenchidas (ou intuídas pelo espectador). Artur é o tio sem eira nem beira, aparentemente um gaúcho urbano que não encontra formas razoáveis e satisfatórias de conviver na solidão da vida na fazenda. A bebida é sua grande companheira e aliada. Em síntese, um péssimo exemplo a ser seguido pelo sobrinho Leo, um jovem peão de estância. O episódio da demissão de Leo é o estopim que move a narrativa. Não sabemos a razão objetiva da demissão, não sabemos se houve injustiça ou não. Portanto, a princípio, Leo não conta como nossa empatia. Ao relatar sua demissão para o pai ocorre uma discussão, único momento de interação entre os dois. A relação de Leo com o pai é aparentemente fria e conflitada. Nada que justifique plenamente, portanto, a missão que o jovem toma para si ao cumprir a qualquer custo o desejo final do falecido pai. A motivação parece frágil, ainda que represente uma espécie de acerto de contas decorrente de um sentimento de culpa.


Superado este impasse narrativo do primeiro ato, finalmente vamos embarcar na jornada. Os termos “embarcar” e “jornada”, utilizados aqui, não são gratuitos, pois trata-se sim de uma viagem. Além de Nós é um road movie, e como todos filmes que trabalham neste registro, o movimento exterior é sempre uma metáfora do movimento interior dos personagens. Cenários mudam, estradas se sucedem, experiências se acumulam e valores de transformam. Esta é a fórmula dos “filmes de estrada”. O longa de Rogério Rodrigues não foge desta cartilha.

Na condição de road movie Além de Nós é um filme de personagens em contraste com paisagens, e deste confronto a resultante é a sabedoria, o entendimento do sentido da vida e do lugar que ocupamos no mundo. Esta é a transformação que ocorre com os protagonistas, Artur e Leo. Um tema subjacente, que perpassa a narrativa, é a transformação pela qual passa o campo, em oposição ao avanço da civilização tecnológica. A lida campeira, raiz e tradicional, vem perdendo espaço, como bem comprova o peão Leo ao lamentar que a fazenda onde trabalhava optou pelo reflorestamento, abrindo mão da criação de gado no pasto. A imagem icônica de uma barreira de árvores, que interrompe a cavalgada livre do gaúcho em sua montaria, é um símbolo eloquente que representa em imagens este embate desigual.


A transformação de Leo se manifesta por um movimento inverso e espelhado entre a natureza externa da paisagem e o universo interior do personagem. Contido, quase deprimido, quando em seu habitat natural – o extenso pampa gaúcho com horizonte distante – Leo sai do casulo e assume uma personalidade expansiva e livre quando exposto à opressão do meio urbano e a rudeza do asfalto. A relação com o tio Artur (uma composição interessante de Thiago Lacerda) passa por diversas fases, da rejeição à aceitação, da indiferença à dependência. A jornada aparou as diferenças, estimulou a tolerância e revelou novas perspectivas para olhar o outro. A realização do último desejo do pai passa a ser apenas um pretexto para uma forçosa – e dolorosa – descoberta pessoal.

Além de Nós é uma viagem onde o ponto de chegada está longe de ser o destino final. É apenas o início das diversas estradas da vida que estão à nossa frente.

Assista ao trailer: Além de Nós

 

Jorge Ghiorzi / Membro da ACCIRS

janeladatela@gmail.com