Na temporada 2022,
onde o canibalismo já surgiu forte na série campeã de audiência sobre o serial
killer Jeffrey Dahmer na Netflix, o cinema nos brinda com uma ousada,
impactante e surpreendente história de amor que também tem como pano de fundo o
canibalismo. Porém, diferente daquele produto do streaming, onde o tema aparece
como um ritual escatológico de caráter criminoso, no drama de horror Até
os Ossos (Bones and All), de Luca Guadagnino (Suspiria, 2018), o canibalismo recebe um
tratamento mais metafórico e metafísico, como uma maldição mesmo, ainda que
seja extremamente mais explícito na exibição do ato canibal em si.
Reconheçamos, de
antemão, que este não é um tema fácil a ser explorado nas obras audiovisuais. É
recorrente que o apelo sensacionalista venha sempre em primeiro lugar. Mas não
é o caso aqui, ainda que, fosse apenas por este aspecto, Até os Ossos já mereceria nosso olhar mais atento. Mas o filme de
Guadagnino vai muito além e não deixa de surpreender o espectador a todo o
momento.
Baseado em livro
de Camille DeAngelis, premiado em 2016, a adaptação cinematográfica traz a
história de um casal de jovens, Maren (Taylor Russell) e Lee (Timothée
Chalamet). Eles se encontram ao acaso em uma viagem pelo interior dos Estados
Unidos. Ambos marginalizados, em fuga de seus traumas interiores. Uma
particularidade os une em um misto de paixão, cumplicidade e sobrevivência: são
canibais. O caráter da viagem – literal e simbólica – é um elemento muito
presente nos livros da romancista DeAngelis, além de questões feministas e
solidão. O filme de Guadagnino respeita estes conceitos e conduz sua narrativa
como uma longa jornada de autoconhecimento, o combustível que conduz Maren e
Lee até um destino incerto.
Até os Ossos é um road movie de horror e paixão. O guia
onipresente da viagem/fuga é o pai de Maren, que deixa de legado uma extensa
mensagem gravada em áudio, que a jovem vai ouvindo ao longo da estrada, como fossem
capítulos de uma longa história de revelação de suas origens. Ela, assim como
nós, é apresentada à verdadeira realidade da sua condição de “devoradora”, ou
seja, consumidora de carne humana. Ainda assim, a história se revela
incompleta. Falta a figura da mãe, que torna-se então o objeto de busca.
Nesta Via Crucis
espiritual Maren encontra, além do parceiro de jornada, Lee (igualmente em
processo de entendimento e aceitação da sua condição), outros personagens
enigmáticos, que também compartilham o desejo pela carne humana. Em cada etapa
da jornada, a cada parada, a cada cidade, o casal recebe novos aprendizados que
dão pistas e informações vitais de sobrevivência para aqueles que vivem à
margem da sociedade, amaldiçoados pelo desejo da carne.
Luca Guadagnino
propõe uma experiência de realidade paralela ao espectador. Ao nos mergulhar no
submundo dos chamados “seres devoradores”, somos imersos em um universo de
regras próprias. São raras e pontuais as interações do mundo, digamos, corriqueiro
e real. A quase totalidade da narrativa se dá em um registro alternativo. Até os Ossos é um relato de personagens marginais.
Uma fábula de horror com devoradores de carne humana por necessidade, pois há
uma ética e uma moral a ser respeitada. Neste arco narrativo tanto Maren quanto
Lee confrontam seus fantasmas e a irreversibilidade de suas existências. Até os Ossos é um filme que permanece
ecoando em nossas mentes após a sessão e já nasce predestinado a ser cultuado.
A escolha de Timothée
Chalamet por Luca Guadagnino não deixa de revelar uma certa ironia do destino.
Ambos já trabalharam juntos em Me Chame
Pelo Seu Nome (2017), com Armie Hammer, o ator que teve a carreira destruída
por acusações de cometer atos de... canibalismo! Outro destaque do elenco é a canadense
Taylor Russell, que ganhou grande visibilidade ao participar da nova versão de Perdidos no Espaço (3 temporadas) da
Netflix, no papel de Judy Robinson. Sua presença é o grande destaque e o melhor
da série. Está aí uma atriz à beira do estrelato no primeiro time.
Assista ao trailer: Até os Ossos
Jorge Ghiorzi /
Membro da ACCIRS
janeladatela@gmail.com