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quarta-feira, 9 de março de 2022

“Belfast”: crônica irlandesa


A utilização das cores, ou sua ausência, é uma decisão estética que prenuncia a proposta memorialista de Belfast (Belfast, 2022) de Kenneth Branagh. O exercício de estilo se evidencia já na abertura com os planos aéreos da colorida capital da Irlanda do Norte nos dias atuais. Na sequência ocorre uma transição, as cores desbotam e retornam ao básico preto e branco. Num passe de mágica da edição somos transportados para o passado. Mais precisamente a Belfast de 1969, quando o realizador tinha apenas nove anos. A cidade passa a ser então apenas cenário, pois o protagonismo será do seu pequeno alter ego, Buddy (Jude Hill). Será sob seus olhos que seremos testemunhas de um doce e singelo acerto de contas com as memórias afetivas de Branagh. E que maneira melhor para um artista do audiovisual fazer isto senão através de um filme de recorte nostálgico?

À sua maneira Kenneth Branagh faz de Belfast um Amarcord (Fellini), um Roma (Cuarón), um Os Esquecidos (Truffaut) para chamar de seu. A referência não é gratuita, pois o cinema, de modo geral, está muito presente na crônica por meio das memórias dos filmes que Buddy assiste na TV (sempre em preto e branco) ou nas salas de exibição (sempre coloridos). Naquela época Belfast – e a Irlanda de modo geral – vivia tempos de guerra civil com os constantes embates entre protestantes e católicos.



No meio deste conflito encontramos pela primeira vez o pequeno Buddy. No caso específico, literalmente. Enquanto brincava na até então tranquila rua na frente de casa, em um bairro proletário dos subúrbios da cidade, o garoto vê, para seu espanto genuíno, uma guerra ser deflagrada bem na frente dos seus olhos. Em um elegante giro de 360º (tipo Cidade de Deus) a câmera identifica todo o entorno do personagem até assumirmos seu ponto de vista. Um bando de ativistas protestantes invade a rua e barbariza geral com bombas e tiros a quietude daquela gente, exigindo a retirada imediata de todos os católicos da região. Este episódio de violência vai afetar e determinar os destinos de Buddy e sua família a partir de então.


Para o garoto o conflito é apenas um acontecimento chato, que atrapalha as brincadeiras de rua devido às barricadas que os vizinhos do bairro montam nas esquinas para não serem novamente surpreendidos pelos ataques. Parcialmente alheio, ou ao menos sem a compreensão total do que está ocorrendo, Buddy na verdade está mais interessado nos filmes, no despertar do olhar para as garotas, nos chocolates surrupiados do armazém da esquina e nos papos com seus amorosos avós (Ciarán Hinds e Judi Dench, espetaculares). Em casa vive num lar com pais separados – não pelo casamento - mas pelas condições de trabalho. O pai (Jamie Dornan) trabalha em outra cidade e passa longas temporadas longe de casa. A mãe (Caitriona Balfe) assume a gestão da família, dos filhos, da sobrevivência em meio aos conflitos e das dívidas com o banco. Tudo isto leva a um ponto de inflexão que exigirá uma difícil decisão para a família: mudar de cidade para buscar melhores condições de vida, deixando para trás suas raízes culturais e afetivas, ou ficar lutando para tentar mudar uma realidade que ameaça o futuro dos filhos.


Tudo é narrado por Branagh de forma sincera, honesta e afetuosa, sem revelar dor excessiva. A guerra, o desemprego e as lutas religiosas são meros panos de fundo quando vistos pelos olhos inocentes de uma criança. O roteiro (do próprio diretor) opta por captar apenas o lado alegre da vida, apesar da realidade circundante eventualmente não ser um mar de rosas. Não é exatamente uma fuga da realidade, mas uma forma humanizada de resgatar o passado, como a nos dizer que, apesar de tudo, “éramos felizes e não sabíamos”.


Formalmente belo e sedutor, Belfast propõe uma visão humanizada – mas idealizada e romântica - de um momento decisivo da história da Irlanda. Não é assim que funcionam nossas reminiscências? Contamos as melhores partes e deixamos as dores para trás.  O longa representa também uma bem-vinda retomada de Kenneth Branagh aos filmes mais autorais. Nos últimos tempos ele vinha se especializando em ser um artesão de luxo de Hollywood realizando uma série de projetos grandiosos sob encomenda para os grandes estúdios, que procuram o verniz de um diretor de prestígio para comandar grandes filmes populares (Thor, Cinderela, Artemis Fowl). No início de carreira chegou a ser chamado de “novo Laurence Olivier” por dirigir e estrelar com grande sucesso uma versão de Henrique V em 1989. Que este reencontro de Branagh com o passado em Belfast sirva para reorientar sua carreira para novos rumos.

Assista ao trailer: Belfast

 

Jorge Ghiorzi

Membro da ACCIRS


terça-feira, 25 de janeiro de 2022

“O Beco do Pesadelo”: quando o truque não dá certo

 

Vencedor do Oscar de Melhor Filme em 2018, com A Forma da Água, o cineasta mexicano Guillermo del Toro sempre transitou seu cinema de gênero no terreno do terror, do horror, do fantástico e da fantasia. Após quatro anos longe da direção ele retorna com O Beco do Pesadelo (Nightmare Alley), drama de suspense com toques de terror que se passa no universo circense dos shows de variedades dos anos 40 nos Estados Unidos, em plena Segunda Guerra Mundial. Baseado em um romance do escritor noir William Lindsay Gresham, o filme de del Toro na verdade é uma refilmagem de O Beco das Almas Perdidas de 1947, dirigido por Edmund Goulding, com Tyrone Power, Joan Blondell, Coleen Gray e Helen Walker no elenco.

Viajante sem rumo e passado nebuloso, Stanton Carlisle (Bradley Cooper) chega por acaso em um circo itinerante de variedades. Consegue emprego temporário como operário do show e acaba se envolvendo com a vidente Zeena e seu companheiro mentalista. Após aprender rapidamente os truques da “profissão” decide abandonar tudo para investir em carreira solo aplicando golpes por conta própria. Em um dos espetáculos conhece a misteriosa psiquiatra Lilith Ritter (Cate Blanchett), a parceira perfeita para aplicar um grande golpe contra poderoso magnata.


Personagens amorais como Stanton e Lilith se atraem como iguais. Agem como cobras num serpentário: lutam pela sobrevivência num mundo hostil enquanto buscam obsessivamente uma maneira de se dar bem. O perigo está sempre no horizonte, mas a cegueira da ambição e do golpe perfeito embaça a visão. Movidos por instintos primitivos, com desejos de poder e ganância, não encontram limites nem freios morais para alcançar seus objetivos. Nesta trilha pelo lado obscuro da vida há muito a perder. Quem deseja obstinadamente o todo, corre o risco (ou a sina) de ficar com nada, muito menos do que possuía no início da jornada. Este é o arco narrativo do trágico Stanton Carlisle, que del Toro conta com um excesso de minutagem que prejudica a coesão do resultado final.


Cate Blanchett, posando as vezes de femme fatale à la Veronica Lake, raras vezes esteve tão caricata e canastrona em cena (Indiana Jones 4 seria outro desempenho fora de tom da atriz, só para lembrar). Bradley Cooper, por sua vez, eventualmente acerta no tom farsesco do ambicioso prestidigitador, mas no geral parece um tanto contido, e o resultado geral fica aquém para o potencial de um personagem conflitado. Em papéis secundários, com poucos minutos em cena, ainda aparecem com destaque Toni Collete, como a vidente falcatrua, e Willem Dafoe defendendo com sua característica vilania dúbia a figura do responsável pelo circo.

A primeira parte O Beco do Pesadelo lembra um pouco Água Para Elefantes. Tudo limpinho demais, muito estetizado para seduzir os sentidos pela beleza das tomadas. Artifícios visuais usualmente mais adequados para um romance - que essencialmente não é - do que para um drama de suspense com trama policial que retrata a sordidez humana. O Beco do Pesadelo apresenta uma série de possibilidades e promessas infelizmente não cumpridas. O filme de Guillermo del Toro não é nem noir, nem terror, como eventualmente chega a flertar.


Desnecessariamente longo, com um primeiro ato um tanto dispersivo e desfocado, quando finalmente entramos no entrecho principal da narrativa, a paciência do espectador já está um tanto esgotada pela expectativa frustrada que construiu. O mestre da manipulação e do engodo da ficção, Stanton Carlisle, não encontrou eco no trabalho de direção de del Toro, que não consegue manipular e conquistar a credulidade da plateia conforme seus desejos. Desta vez o truque não deu certo.

Assista ao trailer: O Beco do Pesadelo


Jorge Ghiorzi

Membro da ACCIRS

quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

“Matrix Resurrections”: déjà vu


Quando chegou aos cinemas na virada de século e de milênio Matrix imediatamente foi reconhecido como um ponto de virada nos filmes de ação. Nada mais seria igual, sua influência foi definitiva em tudo que se fez depois. Produto estimado da cultura pop, o longa foi inovador nos efeitos especiais, na coreografia das lutas, na criação de referências cult e na incorporação da filosofia em um produto de massa. Além de extasiar uma legião de fãs a trilogia Matrix antecipou em uma década a sociedade mega conectada, mergulhada no uso massivo da Internet. O legado deixado pelo filme, portanto, é gigantesco.


Passados pouco mais de 20 anos – quase o tempo de uma geração – chega o momento de retomar a saga, tantas vezes adiada e, a princípio, negada pelas irmãs Lana e Lilly Wachowski, criadoras da trilogia original. Então, é com o peso deste passado que chega às telas este Matrix Resurrections, desta vez dirigido apenas por Lana como um projeto solo, sem a participação de Lilly.

A nova aventura retoma a história a partir da linha temporal deixada pelo filme anterior (Revolutions, de 2003), ainda que vinte anos tenham se passado aqui, no nosso mundo. Neo (Keanu Reeves) agora vive uma vida aparentemente comum sob sua identidade original como Thomas Anderson, atuando como um famoso criador de um videogame de sucesso, chamado... “Matrix”. Para entender as estranhas visões e percepções que tem sentido, ele se trata com um terapeuta. Para complicar um pouco mais ainda sua cabeça ele também conhece uma mulher (Carrie Anne-Moss) que muito se parece com a personagem Trinity do videogame que criou. Tudo começa fazer algum sentido para o atordoado Thomas Anderson quando encontra uma nova versão de Morpheus, que oferece a pílula vermelha que reabre sua mente para o mundo da Matrix.


Os três primeiros filmes seguiram um caminho natural de expansão do universo original, mantendo a coerência da mitologia da série. Já neste volume quatro a proposta foi equivalente a uma versão atualizada de um programa clássico, com correções de segurança, adaptação de sistema, incorporação de novas atribuições e soluções de “bugs” funcionais. Matrix Resurrections praticamente abandona as referencias místicas, religiosas e metafísicas e centra atenção apenas nos conceitos tecnológicos, incorporando de uma vez por todas a condição de um videogame.

O filme é autorreferente e indulgente com a própria mitologia que construiu na trilogia original. Dá uma zoada geral e se limita a ser – sem dramas de consciência – um produto de massa a ser consumido por uma sociedade capitalista selvagem, que tanto criticava há 20 anos. Lana Wachowski parece querer nos dizer: “Relaxem. Desencanem. Este não é um filme-cabeça. Apenas aproveitem a experiência”. Isto se evidencia com a inclusão do humor em certas passagens, como aquela onde Anderson e um executivo da companhia discutem a possibilidade – e mesmo a necessidade - de criar uma nova versão do videogame. O papo ali era direto e reto, pois se referia nas entrelinhas à própria gestação da sequência de Matrix que sofreu a pressão da Warner para que o filme finalmente fosse produzido. Alguém tem lembrança de sequer ter esboçado minimamente um sorriso com alguma sequência dos três filmes originais? Pois em Matrix Resurrection isto ocorre, com um mal disfarçado ar de cinismo blasé que ecoa por todo o filme.


Neo ainda encarna o heroico personagem do “Escolhido” que surgiu para libertar a raça humana da submissão pelas máquinas. Vale destacar, porém, que o centro narrativo e mote da nova trama criada por Lana Wachowski desta vez é a personagem de Trinity, que assume um protagonismo mais evidente.

Matrix Resurrection é claramente um filme de passagem, de reformulação para uma nova saga revigorada que inevitavelmente virá (um reboot?). Nesta retomada da história é flagrante que algo de substancial se perdeu. Não fosse toda a bagagem e o legado que carrega, o novo Matrix por muito pouco não é apenas um filme de aventura genérico. Não somos apresentados a nenhuma sequência memorável, nenhuma das sequências de luta avança além do lugar comum e as trucagens e efeitos já não surpreendem (alguém lembra do espanto que o “bullet time” criou no final do século passado?). O filme, nesta perspectiva, é suficientemente inteligente para não se levar excessivamente a sério.


Para o arco da história, talvez no futuro fosse interessante uma prequel mostrando a história do Arquiteto (criador da Matrix) e da Oráculo, e seguindo a tradição de subtítulos com a letra R (Reload, Revolutions e Resurrections) o título bem que poderia ser Matrix Rises.


Assista ao trailer: Matrix Resurrections

 

Jorge Ghiorzi

Membro da ACCIRS

quarta-feira, 17 de novembro de 2021

“Noite Passada em Soho”: sonhos e desejos em Londres


A multicolorida Londres dos anos 60 – conhecida como Swinging London - é o cenário elegante e charmoso onde transcorre grande parte do suspense psicológico Noite Passada em Soho (Last night in Soho, 2021) dirigido por Edgar Wright, o mesmo de Todo Mundo Quase Morto (2004), Scott Pilgrim Contra o Mundo (2010) e Em Ritmo de Fuga (2017). Naquele período específico a capital inglesa era a capital cultural do mundo e ditava a moda mais transgressora nos costumes, na música e no figurino dos moderninhos da época.

A protagonista Eloise Turner (a neozelandesa Thomasin Harcourt McKenzie, vista recentemente em Tempo do Shyamalan) representa muito bem o espírito daqueles tempos, ainda que a narrativa transcorra nos dias atuais. Estudante de Moda, fortemente inspirada pela estética e o estilo da sessentista, Eloise vai morar no descolado bairro do Soho, em Londres, para finalizar os estudos e iniciar carreira como estilista. Sozinha em seu quarto ela passa a ter sonhos e visões onde conhece a aspirante a cantora Sandie (Anya Taylor-Joy) com a qual se identifica de forma idealizada a ponto de torna-se quase um duplo aspiracional. Ela é tudo que Eloise desejava ser na intimidade: forte, livre, independente, voluntariosa e sexualmente liberada.


O que se segue é uma história que transita entre gêneros distintos. Inicialmente o que parece ser um pequeno drama juvenil sobre escolhas profissionais, lá pelas tantas vira a chave e se transforma em um thriller que flerta com o horror. São dois lados de uma mesma moeda. A Londres alegre e descontraída também possui suas áreas escuras e violentas. O mesmo ocorrendo em relação às personagens protagonistas, a real e a “ficcional”. Por trás dos sonhos mais inocentes por vezes se escondem os pesadelos mais terríveis. E é justamente esta dura realidade que Eloise tem que lidar em sua jornada pela cidade grande.

Personagens anacrônicos, que invariavelmente destoam do tempo e espaço onde estão inseridos, não são exatamente uma novidade nos filmes de Edgar Wright. Foi assim, por exemplo, em Scott Pilgrim e Em Ritmo de Fuga. Mais uma vez esta abordagem se faz presente em Noite Passada em Soho. A jovem Eloise Turner, uma personagem deslocada em busca de seu lugar no mundo, se refugia no terreno da fantasia, recriando um mundo particular que mistura sonhos e desejos, o real e o imaginário.


Esteticamente belo, com cenografia e fotografia elaborada, Noite Passada em Soho enche os olhos pela recriação de uma época particularmente marcada pelo estimulante apelo visual, que, convenhamos, soa nostálgico – mas fascinante - na maior parte das vezes. A trilha sonora, recheada com canções de sucesso da mais genuína brit music dos anos 60, faz a apropriada contextualização e transporta o espectador pelo túnel do tempo.

Em sua segunda metade o thriller se aproxima de um autêntico “giallo italiano”, com sotaque inglês, que ecoa o mestre Mario Bava, não apenas pela temática de crime, mas particularmente pelo uso massivo de cores vibrantes, especialmente o vermelho e azul, sempre ostensivos e contrastados.


Noite Passada em Soho é um filme dividido, sob diversos aspectos: na temática, na ambientação, nos gêneros, nas protagonistas. O que poderia ser sua fortaleza na verdade configura sua grande fragilidade como narrativa. A fruição estética proposta por Edgar Wright não passa de um deleite visual sem o devido suporte de um roteiro que realmente convença o espectador. Longe (muito longe) de fazer feio, o fato é que ao longo dos anos, com o devido distanciamento do seu tempo de realização, Noite Passada em Soho talvez venha a ser relembrado como um filme cult, ou como um estimado guilty pleasure.

Anya Taylor-Joy (já vista em A Bruxa e na série da Netflix O Gambito da Rainha) é o grande destaque do elenco e confirma seu potencial como a mais promissora jovem atriz candidata a estrela de primeira grandeza. Vale lembrar que o filme de Edgar Wright marcou o ocaso da grande estrela britânica Diana Rigg, falecida logo após as filmagens.


Assista ao trailer: Noite Passada em Soho

por Jorge Ghiorzi

quarta-feira, 21 de julho de 2021

“Um Lugar Silencioso – Parte II”: poucas palavras, muita tensão


Lançado em 2018, num tempo pré-pandêmico, Um Lugar Silencioso se mostrou um aclamado thriller que mixava de forma eficiente o terror com o suspense, tendo como cenário um mundo pós-apocalíptico. A direção era assinada por um improvável John Krasinski, muito conhecido pelo papel de Jim Halpert na série The Office, cujas poucas experiências de direção, até então, se situavam no terreno da comédia.

Então, chegou o ano de 2020. O planeta ficou ameaçado pelo coronavírus. É mundo real, não ficção. Imediatamente uma nova chave de compreensão e analogia foi agregada para a análise do filme de três anos atrás. A decisão de desenvolver uma continuação da história foi certamente impactada por este novo momento. O entendimento da narrativa então se processa com este novo registro em nossa mente.


Um Lugar Silencioso – Parte II (A Quiet Place – Part II), igualmente escrito e dirigido por Krasinski, abre com duas linhas narrativas. Inicialmente temos um prólogo, que se passa no Dia 1, aquele que deu origem à invasão das terríveis criaturas alienígenas, ainda que nada fique suficientemente explicado. Então, logo na sequência, somos jogados exatamente ao ponto em que encerrou o filme anterior, quase um ano e meio a frente. Lembra daquele final aberto com a personagem de Emily Blunt engatilhando a arma? Esse é o momento de retomada da saga da família Abbott.

Evelyn Abbott (Emily Blunt) e os filhos, Regan (Millicent Simmonds), Marcus (Noah Jupe) e o bebê que nasceu no final do filme anterior, prosseguem sua jornada silenciosa pela sobrevivência, em fuga da ameaça que espreita por todos os lados. A trajetória que se assemelha a um road movie, que se guia por uma tensão constante que alterna movimento e confinamento, silêncio e ruídos extremos, tensão e relaxamento, isolamento e interação social, desafio e superação pessoal. Os personagens, todos, apresentam um arco narrativo bem estabelecido, o que contribui decisivamente para a coesão da história e acentua valores individuais da família nuclear. Um Lugar Silencioso – Parte II expande o conceito original e abre possibilidades para novos personagens, como Emmett (Cillian Murphy), antigo amigo da família, e um sobrevivente do pós-apocalipse, vivido por Djimon Hounsou.


Ainda que a sequência apresente níveis de decibéis bem superiores nos efeitos sonoros, em oposição ao primeiro filme (quase um exercício de estilo na utilização do silêncio como artifício narrativo), o conceito original segue preservado e ainda é capaz de proporcionar momentos genuínos de medo e angústia.

Um Lugar Silencioso – Parte II se mostra uma sequência muito interessante e criativa, com um roteiro enxuto e edição eficiente, o longa deixa um caminho promissor para a inevitável (e necessária) sequência que certamente vem por aí.

Assista ao trailer: Um Lugar Silencioso – Parte II

Jorge Ghiorzi

terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

Da ficção para a realidade


O fascinante e perturbador suspense de ficção científica "O Segundo Rosto" (Seconds, 1966) faz parte da chamada "trilogia da paranoia" do diretor John Frankenheimer, da qual também fazem parte "Sob o Domínio do Mal" (1962) e "Sete Dias em Maio" (1964).

O filme conta a história de um bancário de meia-idade, bem-sucedido profissionalmente, mas profundamente insatisfeito com o rumo da vida pessoal. Então surge a oportunidade de se submeter a uma cirurgia experimental onde ganharia um novo rosto, uma nova identidade e uma nova vida.

“O Segundo Rosto” acabou sendo protagonista de uma curiosa história envolvendo o músico Brian Wilson, líder da banda “The Beach Boys”. Durante o processo de gravação do álbum conceitual “Smile” Brian Wilson foi fortemente afetado ao assistir ao filme de John Frankenheimer. Consta que ele teria chegado atrasado à sessão e ao entrar na sala foi saudado com um diálogo da tela naquele momento, que dizia “Come in, Mr. Wilson” (Entre, Mr. Wilson). A frase teve forte impacto no músico que passou a imaginar que a história do filme se baseava em suas próprias recentes experiências traumáticas e sua produção artística. A impressão ficou ainda mais forte em função de uma longa sequência que se passa em uma casa na praia, semelhante à casa onde Brian Wilson vivia e trabalhava para o novo álbum.

A experiência ao assistir o filme foi tão intensa e impactante que contribuiu para que Wilson interrompesse as gravações de “Smile” por décadas (o disco só foi concluído e lançado em 2004). Outra consequência daquela fatídica sessão foi que o músico só voltaria a uma sala de cinema em 1982, quando foi assistir “E.T. – O Extraterrestre” de Steven Spielberg.