Na metade dos anos 80 a carreira de Steven Spielberg como
diretor chegava a um impasse. Após 10 anos de bem sucedidas obras voltadas para
um cinema de fantasia e entretenimento, o realizador sentiu necessidade de
experimentar novas histórias e abordagens mais realistas. A imposição não vinha
do mercado, mas de sua motivação pessoal em busca da legitimidade da crítica e
da Academia para um tardio reconhecimento para suas capacidades como um
cineasta completo. O aval da indústria seria fundamental para colocá-lo no time
dos maiores realizadores norte-americanos. A virada aconteceu em 1985 quando
dirigiu A Cor Púrpura (The Color Purple), seu
primeiro “filme adulto”, como se disse à época. A produção foi um sucesso e
recebeu 11 indicações para o Oscar. Mas, incrivelmente o nome de Steven
Spielberg ficou de fora da disputa. Ele não foi indicado ao Oscar de Melhor Diretor,
num flagrante erro histórico da Academia. Mas, o mais surpreendente ainda
estava por vir: o filme não recebeu nenhuma estatueta sequer.
Além de arriscada, a primeira experiência de Spielberg fora da zona de
conforto trouxe um desafio adicional. A história de A Cor Púrpura trata
essencialmente de discriminação racial contra os negros, violência doméstica
contra as mulheres e repressão sexual. Como convencer o público de que um
cineasta branco, judeu e conservador poderia dar conta de temas tão difíceis? A
solução foi lançar mão de um artifício infalível para conquistar corações, que
Spielberg utiliza com habilidade: a emoção.
Baseado no romance epistolar de Alice Walker, lançado em 1982 e vencedor
do prêmio Pulitzer, A Cor Púrpura se passa no meio rural do sul dos
Estados Unidos. A história, que inicia em 1909, acompanha por quatro décadas a
vida de duas irmãs, Celie (interpretada por Whoopi Goldberg, na fase adulta) e
sua irmã mais nova, Nettie. Separadas à força na adolescência pelo pai
alcoólatra, a sorte lhes reservou destinos completamente diferentes. Nettie
aprende a ler e escrever, é adotada por pastores religiosos e vai morar na
África, onde se casa e constitui família. Celie, por sua vez, é forçada pelo
pai a casar-se com um viúvo, Mister / Albert (Danny Glover), que se mostra um
homem violento e abusador que trata a própria esposa como escrava. A pouca
instrução de Celie não a impede de encontrar consolo nos livros. Submetida às
agressões físicas e morais do marido, Celie só encontra razões para continuar
vivendo pela esperança de receber cartas com notícias da irmã. Cartas estas que
serão decisivas para o desfecho da história e fator de redenção da sofrida
trajetória de Celie.
O imenso arco dramático da história das irmãs dá contornos de épico para
o filme de Spielberg, com suas mais de 2 horas e meia de duração. Misto de
panorama social de uma época e drama intimista da luta de uma mulher em busca
da identidade, A Cor Púrpura é um melodrama envolvente e
inspirador. A trágica história da protagonista provoca empatia imediata da
plateia, graças ao comovente desempenho da então iniciante Whoopi Goldberg
(indicada ao Oscar). Igualmente contribui para este resultado a sensível
direção de Spielberg, ainda que por vezes erre a mão no afã de arrebatar o
público com sequências de forte impacto emocional.
Dois exemplos deste tropeço podem ser citados. Um pelo excesso, outro
pela carência. O primeiro deles é a sequência da desesperada cena da separação
das duas irmãs, executada de forma histriônica, teatral e exagerada, mas de
grande carga de sentimentos, a que se reconhecer. Curiosamente a separação das
irmãs, daquela forma, não existe no livro. Foi apenas um recurso cinematográfico
proposto pelo roteiro. No outro episódio onde Spielberg erra a dosagem da
emoção, o diretor peca pela timidez ao não aprofundar todo o potencial da cena.
Na sequência onde a sexualidade da reprimida Celie é despertada por um momento
de intimidade com a cantora Shug Avery, amante de seu marido, Spielberg apenas
sugere, meio envergonhado, um momento de relação sexual lésbico, limitando-se
apenas a um casto selinho das duas. Anos depois o próprio Spielberg declarou
que se arrepende de não ter sido um pouco mais explícito e ousado naquele
momento tão crucial para a protagonista.
Após a resolução das trajetórias das irmãs Celie e Nettie, o final
de A Cor Púrpura ainda nos brinda com uma bela
sequência que faz uma homenagem a dois gêneros musicais nascidos nas
comunidades negras norte-americanas. Artistas, músicos e cantores do cabaré da
região partem em procissão cantando blues rumo à igreja da cidade, onde corais
religiosos entoam canções gospell, criando um momento magnífico de interação
musical. A música também é um caminho para encontrar o sublime.
Uma das personagens mais carismáticas de A Cor Púrpura é
a impetuosa e brava Sofia, que não leva desaforo para casa, interpretada por
Oprah Winfrey, em sua estreia no cinema. Por este desempenho ela recebe uma
indicação ao Oscar de Atriz Coadjuvante.
Assista o trailer: A Cor Púrpura
(Texto
originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em janeiro de 2018)
Jorge Ghiorzi
Membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e ACCIRS (Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul)
Contato: janeladatela@gmail.com / jghiorzi@gmail.com
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