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quarta-feira, 9 de outubro de 2024

Robô Selvagem: mãe natureza


A nova animação da DreamWorks reúne dois temas que estão na ordem do dia: tecnologia e meio ambiente. Robô Selvagem (The Wild Robot, 2024) é uma fábula que consegue a proeza de dialogar simultaneamente com o intocável universo da vida selvagem e as possibilidades ilimitadas da utilização da Inteligência Artificial na evolução da civilização humana sobre o planeta. O resultado é uma das mais emocionantes e tocantes animações dos últimos anos, superando com larga vantagem a animação da Disney Pixar lançada em 2008, WALL-E, com a qual possui alguma semelhança temática. 

A história inicia com um acidente que joga uma robô – a unidade ROZZUM 7134, ou apenas “Roz” – em uma remota e desabitada ilha. Naquele ambiente desconhecido a unidade robótica necessita se adaptar e aprender as regras de sobrevivência, enquanto aguarda por resgate. Neste processo Roz descobre os mecanismos que regem a flora e a fauna local. Aos poucos desenvolve uma relação de amizade e cumplicidade com Bico-Vivo, um filhotinho de ganso órfão que precisa aprender a voar, e Astuto, uma solitária e ardilosa raposa.


O elemento humano é um sujeito oculto em Robô Selvagem, pois não aparece objetivamente em cena. Apenas são percebidos e identificáveis, de maneira indireta, os reflexos e as consequências da sua existência. A Natureza profunda, intocada pelo “homem”, inadvertidamente se transfigura pela presença surpresa de um robô de alta tecnologia que literalmente cai do céu para romper o equilíbrio do ambiente de um ecossistema inexplorado e virgem (sob o ponto de vista humano). Uma subversão da ordem natural das coisas é a consequência imediata desta invasão involuntária. Daí surge uma história inspiradora com forte componente emocional que transmite lições de vida, civilização, família e empatia.

Os primeiros momentos de Robô Selvagem são vacilantes, parecem um tanto rotineiros e a animação não diz exatamente a que veio. Funcionam essencialmente para estabelecer o contexto e apresentar os “personagens” principais. No entanto, logo a animação encontra seu eixo narrativo e conquista definitivamente o interesse do espectador. Passamos a acompanhar com interesse genuíno o destino do improvável trio de protagonistas: a robô (mãe), o bebê ganso e a raposa.



A animação, dirigida por Chris Sanders (o mesmo de Lilo & Stitch e Como Treinar seu Dragão), faz uma espécie releitura do conto de fadas “O Patinho Feio” de Hans Christian Andersen, atualizado para temas como inclusão, representatividade de papeis e liberdade para exercer o direito de ser diferente em meio a hegemonia social, no caso específico do filme, em meio ao reino animal. O foco desta vez não está na figura do filhote em busca de acolhimento, mas sim na figura da robô que encarna uma mítica “mãe coragem”, que assume o papel de provedora e protetora. Com estes elementos o roteiro desenvolve uma emocionante jornada de autoconhecimento, tolerância e sobrevivência dos integrantes de uma família disfuncional, reunida por circunstâncias aleatórias em ambiente hostil. 

O gregarismo dos animais é, sob certa ótica, colocado em risco pela presença intrusa de um elemento externo que desiquilibra a harmonia ancestral do ambiente. Pois é justamente aí que ocorre o grande fato transformador, exemplar como simbologia, que promove uma necessidade colaborativa entre as espécies, subvertendo o instinto natural de preservação pela convivência entre os iguais. A mente cibernética da robô Roz não estava programada para interagir e muito menos se ocupar dos problemas das diversas espécies de animais que encontrou naquele ambiente. Ainda assim, sua inteligência superior foi tocada de alguma maneira pelos problemas de sobrevivência e os ciclos da vida aos quais os seres vivos são submetidos. Neste ponto a inteligência artificial foi substituída pela inteligência emocional, que despertou sentimentos que a máquina desconhecia até então.


Temas atuais como a preservação da natureza e a sustentação da vida estão presentes como forças vitais que sustentam a narrativa. O componente emocional, presente ao longo de todo o filme, aliado ao carisma das personagens centrais, cativam o espectador do início ao fim. Robô Selvagem é uma diversão exuberante para todas as idades. O resultado é uma experiência de cores e movimentos que proporciona uma jornada divertida, sensível e criativa. Robô Selvagem chegou para rivalizar com Divertida Mente 2 como a melhor animação de 2024.

Assista ao trailer: Robô Selvagem


Jorge Ghiorzi

Membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e ACCIRS (Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul)

Contato: janeladatela@gmail.com  /  jghiorzi@gmail.com

@janeladatela


quarta-feira, 19 de junho de 2024

Divertida Mente 2: a dor do crescimento

 


A expressão “quer que desenhe” é utilizada usualmente naquela situação onde algo bastante óbvio, ou eventualmente de difícil compreensão, exige uma explicação rápida, prática e funcional. Uma imagem pode valer mil palavras, graças ao poder de síntese e de conceito que carrega em si. Esta premissa foi o pano de fundo sob a qual a animação Divertida Mente foi concebida e lançada com grande êxito em 2015. Como as emoções primárias agem como forças internas em nossas mentes para moldar comportamentos? A Pixar/Disney respondeu esta questão de maneira gráfica com muita criatividade. As emoções são “personagens” que habitam nossas mentes. E, se há personagem, há, portanto, trama, conflito, desafio, vitórias e derrotas. Enfim, há storytelling. Assim como a Vida se apresenta para todos nós. 

A garotinha Riley, de 11 anos, protagonista que conhecemos no primeiro filme, retorna na sequência Divertida Mente 2 (Inside out, 2024), aos 13 anos, na pré-adolescência. Desta vez nossos cinco amiguinhos do primeiro filme (Alegria, Medo, Raiva, Nojinho e Tristeza), que formavam o grupo das “emoções básicas” infantis, ganham a companhia de outros quatro amiguinhos um pouco mais complexos. Ansiedade, Inveja, Tédio e Vergonha entram em cena e bagunçam um pouco mais a cabecinha cheia de dúvidas e vacilos da pequena Riley, em plena puberdade. Ela está em um momento de crescimento pessoal e reconhecimento no grupo social, onde as amizades e o hóquei no gelo são prioridades – a família já fica em segundo plano.


Quando surge a oportunidade de jogar no time das garotas mais velhas (e descoladas), o conflito se instala: ficar com as amigas BBF da sua idade? Ou aventurar-se com as mais adultas e “esquecer” as relações afetivas do passado? Isto dá uma bugada na cabecinha da Riley. As emoções, sentimentos e convicções são colocadas à prova. Uma iminente (ou não) mudança de personalidade estaria se configurando? 

A sequência de Divertida Mente tinha um desafio pela frente. Como manter o interesse do público em uma narrativa sem o efeito surpresa e o conceito inovador apresentado no primeiro filme? A solução acertada foi concentrar ainda mais o olhar na evolução da personagem central, Riley, cujo arco narrativo da construção complexa de sua personalidade é apresentado de maneira didática, cativante e, no mais das vezes, muito divertida. Este resultado foi alcançado graças a um ótimo e bem resolvido roteiro, que dá conta do recado sem abrir mão do entretenimento.


Vale lembrar sempre que se trata de uma animação, cujo público primário é o infantil, que é muito bem atendido em todo os quesitos mercadológicos e sensoriais. Pois a qualidade de Divertida Mente 2 evidencia ainda mais uma constatação já revelada no primeiro filme: a produção da Pixar/Disney fala muito de perto também com os adultos. A animação consegue a façanha de conectar simultaneamente dois públicos muito distintos com a mesma mensagem, dadas suas camadas de interpretação e comunicação.


O processo de amadurecimento do corpo, da mente e da percepção do mundo onde vivemos é o tema central de Divertida Mente 2. Sob esta perspectiva o filme se apresenta claramente com uma mensagem de inclusão e diversidade. Isto se explicita pela inclusão de personagens étnicos e culturalmente diversos. No grupo das amiguinhas e colegas que gravitam em torno de Riley aparecem representantes afro, latina, muçulmana, entre outras. E o cuidado com a acessibilidade também não ficou de fora. Em dado momento surge no fundo de uma cena uma enorme escadaria adaptada com pista transversal para cadeirantes. A mensagem está lá, como subtexto, inconscientemente absorvida pelas mentes dos adultos e das crianças.


Assistir Divertida Mente 2 é um prazer para todos os públicos. A produção dirigia por Kelsey Mann (O Bom Dinossauro) consegue a proeza de transformar o universo abstrato dos sentimentos em algo real e palpável, mostrando como as emoções agem no cérebro. Pagamos ingresso para sentar na poltrona e assistir divertidamente uma animação e acabamos ganhando de bônus uma aula de psicologia e uma sessão de terapia. Com direito a risos e lágrimas furtivas. Divertida Mente 2 diverte, mas não mente. Há dor no processo de autoconhecimento. Como lidar com isso é a chave do crescimento. 

Conceitualmente mais ambicioso do que o primeiro filme, por explorar níveis mais profundos de complexidade, Divertida Mente 2 é exemplar por mexer em pontos sensíveis para tocar os corações com sensibilidade e emoção. 

Assista ao trailer: Divertida Mente 2


Jorge Ghiorzi

Membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e ACCIRS (Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul) 

Contato: janeladatela@gmail.com  /  jghiorzi@gmail.com


quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

“Belle”: vida dupla

 


Não é mais apenas uma tendência. É fato. A realidade virtual, rebatizada como Metaverso, já está presente e seus efeitos se manifestarão através das formas disruptivas como interagiremos com o mundo físico daqui pra frente. A influência, na verdade, será intercambiável, uma via de mão dupla. Este é o universo preconizado na animação nipo-francesa Belle, uma realização de Mamoru Hosoda, o mesmo do premiado Guerra de Verão (Summer Wars, 2009), que também tratava de mundos simulados de realidade virtual.

A protagonista da nova fantasia científica de Hosoda é uma estudante de 17 anos, chamada Suzu. A mãe morreu em um ato de bravura para salvar uma criança, quando Suzu ainda era bem pequena. A tragédia abalou sua vida. Ela torna-se uma adolescente calada, reprimida, com poucos amigos. Certo dia a jovem decide conhecer o mundo de “U”, um ambiente virtual de 5 bilhões de membros na internet. Lá Suzu se transforma no avatar chamado Belle, incorporando a personalidade de uma cantora de grande sucesso. Em suas viagens pelo metaverso Belle conhece uma criatura misteriosa com aparência de um dragão. Juntos eles embarcam em uma jornada de aventuras e desafios que vão revelar suas verdadeiras identidades e seus mais íntimos valores como seres humanos.


A história de Belle traz algumas referências simbólicas de “A Bela e a Fera”, mas vai além, pois expande os temas e faz uma releitura do famoso conto de fadas adaptando-o à realidade tecnológica que vivemos hoje. A essência da mensagem é mantida: não devemos julgar apenas pelas aparências, o verdadeiro valor está no caráter. Pois é justamente este “viver de aparências” o grande apelo do ambiente virtual. Podemos ser e parecer como desejamos, vivendo uma versão idealizada de nós mesmos, ainda que falsa. Estão aí as redes sociais para provar isso.

A personagem central de Belle inicialmente deixa-se seduzir por todas as possibilidades de realização pessoal que o mundo de “U” proporciona. Vive momentos de glória conquistando milhões de fãs, bem diferente da sua vida recatada no mundo físico, real. Mas algo de errado não está certo. Logo a jovem passa a sofrer a pressão social de ser o que em realidade não é, ainda que seja no mundo de faz de conta do ambiente digital. Afetada por aquela “realidade” a jovem entra em conflito interior por não mais encontrar propósito em uma vida fabricada. Tudo muda, no entanto, quando encontra a misteriosa “fera” que assombra a comunidade virtual. Assume então como missão saber mais sobre a estranha figura, descobrir sua origem, suas dores, seus medos interiores e as razões que fazem com que viva reclusa em sua casa/castelo.


Como animação Belle é um maravilhoso espetáculo de criatividade, concepção estética, cores e música que justificam os 14 minutos ininterruptos de aplausos que recebeu no Festival de Cannes de 2021. O filme de Mamoru Hosoda, na verdade, tem muito mais a oferecer além do deleite visual e sensorial. O roteiro percorre todas as angústias da protagonista, transitando do humor ao deslumbramento, sem perder o foco ao narrar uma trama envolvente que conquista a cumplicidade do espectador.


Há ainda um subtexto que critica a era tecnológica e os perigos inerentes que o uso massivo do metaverso pode causar nos jovens, que correm o risco de desconectar da realidade física no momento mais decisivo da formação de suas personalidades. Por vezes o perigo está logo ali, dentro de nossas casas, representado pelo abuso e alienação parental. Belle é um ótimo conto de fadas tecnológico, que não abre mão de oportunas discussões de aceitação e representação social.


Assista ao trailer: Belle


Jorge Ghiorzi

Membro da ACCIRS