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quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

“Belle”: vida dupla

 


Não é mais apenas uma tendência. É fato. A realidade virtual, rebatizada como Metaverso, já está presente e seus efeitos se manifestarão através das formas disruptivas como interagiremos com o mundo físico daqui pra frente. A influência, na verdade, será intercambiável, uma via de mão dupla. Este é o universo preconizado na animação nipo-francesa Belle, uma realização de Mamoru Hosoda, o mesmo do premiado Guerra de Verão (Summer Wars, 2009), que também tratava de mundos simulados de realidade virtual.

A protagonista da nova fantasia científica de Hosoda é uma estudante de 17 anos, chamada Suzu. A mãe morreu em um ato de bravura para salvar uma criança, quando Suzu ainda era bem pequena. A tragédia abalou sua vida. Ela torna-se uma adolescente calada, reprimida, com poucos amigos. Certo dia a jovem decide conhecer o mundo de “U”, um ambiente virtual de 5 bilhões de membros na internet. Lá Suzu se transforma no avatar chamado Belle, incorporando a personalidade de uma cantora de grande sucesso. Em suas viagens pelo metaverso Belle conhece uma criatura misteriosa com aparência de um dragão. Juntos eles embarcam em uma jornada de aventuras e desafios que vão revelar suas verdadeiras identidades e seus mais íntimos valores como seres humanos.


A história de Belle traz algumas referências simbólicas de “A Bela e a Fera”, mas vai além, pois expande os temas e faz uma releitura do famoso conto de fadas adaptando-o à realidade tecnológica que vivemos hoje. A essência da mensagem é mantida: não devemos julgar apenas pelas aparências, o verdadeiro valor está no caráter. Pois é justamente este “viver de aparências” o grande apelo do ambiente virtual. Podemos ser e parecer como desejamos, vivendo uma versão idealizada de nós mesmos, ainda que falsa. Estão aí as redes sociais para provar isso.

A personagem central de Belle inicialmente deixa-se seduzir por todas as possibilidades de realização pessoal que o mundo de “U” proporciona. Vive momentos de glória conquistando milhões de fãs, bem diferente da sua vida recatada no mundo físico, real. Mas algo de errado não está certo. Logo a jovem passa a sofrer a pressão social de ser o que em realidade não é, ainda que seja no mundo de faz de conta do ambiente digital. Afetada por aquela “realidade” a jovem entra em conflito interior por não mais encontrar propósito em uma vida fabricada. Tudo muda, no entanto, quando encontra a misteriosa “fera” que assombra a comunidade virtual. Assume então como missão saber mais sobre a estranha figura, descobrir sua origem, suas dores, seus medos interiores e as razões que fazem com que viva reclusa em sua casa/castelo.


Como animação Belle é um maravilhoso espetáculo de criatividade, concepção estética, cores e música que justificam os 14 minutos ininterruptos de aplausos que recebeu no Festival de Cannes de 2021. O filme de Mamoru Hosoda, na verdade, tem muito mais a oferecer além do deleite visual e sensorial. O roteiro percorre todas as angústias da protagonista, transitando do humor ao deslumbramento, sem perder o foco ao narrar uma trama envolvente que conquista a cumplicidade do espectador.


Há ainda um subtexto que critica a era tecnológica e os perigos inerentes que o uso massivo do metaverso pode causar nos jovens, que correm o risco de desconectar da realidade física no momento mais decisivo da formação de suas personalidades. Por vezes o perigo está logo ali, dentro de nossas casas, representado pelo abuso e alienação parental. Belle é um ótimo conto de fadas tecnológico, que não abre mão de oportunas discussões de aceitação e representação social.


Assista ao trailer: Belle


Jorge Ghiorzi

Membro da ACCIRS