terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

“Teorema”: tudo em família

 

Cineasta intelectualizado, com fortes posições políticas de embate contra o fascismo e o capitalismo, o italiano Pier Paolo Pasolini (1922 – 1975) fez da obra cinematográfica uma plataforma de divulgação de sua visão de mundo e dos mecanismos que movem a sociedade ocidental. A origem proletária, a formação marxista e a sensibilidade para a poesia e os livros sempre estiveram de alguma forma presentes em seus filmes, quase todos a serviço de um discurso político.

Lançado há mais de meio século, Teorema (Teorema, 1968) é um primoroso exemplo do cinema engajado e evangelizador de Pasolini. Este drama social foi construído sob uma perspectiva de classes sociais, a partir da crise de identidade de uma família burguesa, símbolo de um modelo de capitalismo que chegava ao esgotamento na segunda metade dos anos 60.


Acostumada a usufruir as benesses do conformo material, a família retratada em Teorema entra em colapso com a entrada de um elemento estranho na rotina da casa. Tal um vírus que corrompe a integridade do tecido social das relações familiares, um hóspede inesperado (Terence Stamp) chega à mansão e se incorpora naturalmente na rotina de todos. Nada sabemos sobre ele, nem as razões de sua chegada. Mas os efeitos da sua passagem são transformadores para o futuro de todos.

Em Milão a rica família burguesa formada pelo empresário Paolo (Massimo Girotti), a esposa Lucia (Silvana Mangano), os filhos Pietro (Andrés José Cruz Soublette) e Odetta (Anne Wiazemsky, na época musa e companheira de Jean-Luc Godard, cuja relação foi retratada no longa-metragem O Formidável) e ainda a empregada Emilia (Laura Betti), é totalmente alterada com a chegada de um misterioso visitante. Um a um todos são seduzidos pelo estranho, que desperta sentimentos reprimidos, particularmente os desejos de ordem sexual. Em seus contatos individuais com os membros da família todos se redescobrem e passam a encarar a vida sob uma nova perspectiva, distantes do tédio existencial no qual estavam mergulhados.


Poucos dias depois, tão inesperadamente como chegou, o estranho visitante parte e deixa a família. E nunca mais eles serão os mesmos. Suas existências foram irremediavelmente alteradas. O que antes era apenas um tédio existencial, se transforma então em desconforto existencial. Ninguém mais cabe na vida que vivia anteriormente. Cada um busca a solução de suas angústias trilhando seu próprio caminho de descoberta. O empresário entrega a fábrica aos empregados, se despe de todos os bens – literalmente a própria roupa inclusive - e vaga nu pelo deserto. A mãe sucumbe aos desejos da carne fazendo sexo aleatório com jovens que encontra pela rua. O filho surta e passa a pintar quadros abstratos com fezes e urina. A filha fica catatônica sobre a cama, sem falar nem se comunicar com ninguém. E a empregada doméstica, em delírio religioso, retorna para sua vila de origem assumindo a condição de santa milagreira.


O visitante é o elemento desagregador que embaralha a “ordem natural das coisas”, como diz um personagem a dado momento. O processo de “revelação” que provoca nos integrantes da família os leva a revisar valores e dogmas aos quais estavam submetidos. O processo de conversão do visitante se dá tanto por estímulos intelectuais – uso da palavra – quanto por estímulos sexuais – a sedução despudorada do corpo, disponível igualmente para o prazer de homens e mulheres. Não são gratuitos, portanto, os enquadramentos da fotografia que sempre privilegiam a zona genital do visitante sedutor. A narrativa em essência explora os conceitos de Eros (pulsão de vida) e Thanatos (pulsão de morte), os instintos fundamentais do comportamento, segundo Sigmund Freud. Em Teorema Pasolini propõe a necessidade de uma volta à essência do ser humano, integralmente despido dos valores burgueses e religiosos acumulados ao longo dos tempos.

Assista o trailer: Teorema


(Texto originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em dezembro de 2017)


Jorge Ghiorzi

Membro ACCIRS

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