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quinta-feira, 29 de maio de 2025

Chofer de Praça: um retrato do Brasil profundo

 

Lançada em 1958, a comédia CHOFER DE PRAÇA foi o 9º filme da extensa filmografia do humorista, ator e cantor paulista Amácio Mazzaropi. Esta produção marcou sua estreia como produtor e também a primeira aparição de Geny Prado, atriz que se tornaria sua parceira recorrente em quase todas as obras seguintes.

O filme inicia com a tomada de uma casinha modesta, isolada num meio rural típico do interior brasileiro. A câmera se aproxima da porta da casa. Ela abre e vemos um casal saindo. Ambos carregando malas, claramente demonstrando que estão partindo em viagem. O casal sai de cena, mas a câmera permanece mais alguns segundos no mesmo enquadramento. Então, a seguir surge um cachorro, reproduzindo o mesmo movimento de seus donos ou tutores. Ele sai da casa “carregando” uma pequena mala presa aos dentes. Ele também vai viajar. Nada mais é necessário para que a comédia conquiste o público desde o primeiro instante.

O enredo, seguindo o padrão dos filmes de Mazzaropi, é bastante singelo, sem complexidades maiores, mas sim, com uma habitual lição moral no terceiro ato. Chofer de Praça conta a história de um humilde casal que se muda para a capital de São Paulo com a missão de ajudar o filho mais velho a pagar e concluir a “faculidade” de Medicina. Para ganhar a vida, o pai consegue emprego como chofer de praça dirigindo um carro antigo, barulhento e caindo aos pedaços. Isto passa a ser motivo de piadas e humilhações da vizinhança e dos demais colegas de ofício. O filho, ainda que necessite muito do dinheiro, sente muita vergonha do trabalho do pai.

O filme segue por várias sequências e gags de humor que reforçam este contexto, revelando ao longo da narrativa um subtexto crítico que condena o alpinismo social em detrimento de valores morais. Ainda que trabalhe e reforce estereótipos da humildade rural em oposição a arrogância dos habitantes das zonas urbanas, Chofer de Praça aborda com muita simplicidade, comicidade e sensibilidade as questões de classe que estão constantemente presentes na realidade brasileira.

É inegável o timing de comédia de Amácio Mazzaropi. Apesar de sua origem na tradição da comédia circense, mais caracterizada pelo humor de performance física (da qual Os Trapalhões foram herdeiros), Mazzaropi demonstra seu talento no texto, no mais das vezes minimalista, e no perfeito “tempo de comédia”. Uma frase, um gesto, uma palavra, um resmungo monossilábico, tudo isto rende um humor mais eficiente – e atemporal – do que uma torta na cara ou um “pum do palhaço”. Mazzaropi era dotado deste dom e isto fez dele um dos grandes do nosso cinema.

Infelizmente o prestígio do artista foi se diluindo no decorrer dos anos, particularmente por suas últimas produções dos anos 70 e 80, que contaminaram negativamente a avaliação de toda sua obra. Esta rejeição ou mesmo desconhecimento da sua obra é uma realidade para as novas gerações, para as quais Mazzaropi não passa de um artista menor de uma certa subcultura brasileira. A decadência, em alguma medida, é natural na carreira de qualquer artista. Mal comparando, e respeitando as devidas dimensões, vale lembrar que isto ocorreu também com gênios da comédia como Jacques Tati e Charles Chaplin, apenas para citar dois grandes. Os últimos trabalhos destes artistas também já não demonstravam o brilho criativo de outros tempos. Apesar das oscilações em sua carreira, Mazzaropi não apenas assegurou seu lugar na história do cinema brasileiro, mas também construiu um imaginário popular que resiste como testemunho de uma identidade nacional muitas vezes esquecida.


Chofer de Praça, assim como toda a filmografia de Mazzaropi, permanece não apenas como um registro do humor brasileiro de seu tempo, mas também como um espelho das contradições sociais que, décadas depois, ainda se repetem — prova de que sua obra, longe de ser 'menor', é um retrato atemporal de um país em eterna transformação.

Assista ao trailer: Chofer de Praça

Jorge Ghiorzi

Membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e ACCIRS (Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul)

Contato: janeladatela@gmail.com  /  jghiorzi@gmail.com

@janeladatela


sábado, 24 de maio de 2025

Manas: a irmandade como resistência

 

Longa-metragem de estreia da diretora Marianna Brennand, Manas é um filme que mergulha na complexidade da infância roubada e da resistência feminina em um cenário ao mesmo tempo belo e brutal: a Amazônia brasileira. A narrativa acompanha Marcielle (Jamilli Correa), uma jovem prestes a entrar na adolescência, criada em um ambiente marcado pelo abuso e pela opressão de um pai violento. Seu desejo de escapar desse ciclo de dor a leva a uma jornada de descobertas, onde a solidariedade entre mulheres – sua mãe submissa, uma irmã que fugiu e outras figuras de sua comunidade – se torna sua única âncora de esperança.

Brennand constrói um filme que evita o apelo fácil, optando por uma abordagem mais sugestiva do que explícita. O abuso nunca é mostrado de forma gráfica, mas sua presença é palpável em cada olhar assustado, em cada silêncio tenso, na arquitetura precária da casa sobre palafitas que parece aprisionar suas personagens. A diretora captura a ambiguidade das relações familiares: a mãe que falha em proteger; a irmã mais velha que escapou das amarras de um destino inevitável, e por fim, a própria Marcielle, cuja inocência aos poucos se transforma em uma consciência dolorosa de que a fuga talvez seja sua única salvação.

A performance de Jamilli Correa é o coração do filme. Com uma expressividade rara para sua idade, a atriz transmite a mistura de vulnerabilidade e resiliência de Marcielle, tornando sua jornada profundamente comovente. A câmera a observa de perto, quase como uma cúmplice, reforçando a intimidade da narrativa. A fotografia, por sua vez, contrasta a beleza crua da Amazônia – o rio lamacento, a vegetação densa – com a asfixia do ambiente doméstico, criando uma metáfora visual para a contradição entre liberdade e aprisionamento.

O título Manas (termo coloquial para "irmãs") não é casual. O filme é, acima de tudo, sobre os laços entre mulheres em um mundo dominado por violência masculina / parental. Cada personagem feminina representa uma resposta diferente à opressão: a submissão, a fuga, a rebeldia ou a sororidade discreta. Brennand não oferece respostas fáceis. A mãe, por exemplo, não é vilã nem heroína, mas vítima de um sistema que a esmaga. A força do filme está justamente em sua nuance, evitando maniqueísmos para mostrar como o abuso é perpetuado e, ao mesmo tempo, como pode (e deve) ser desafiado.

Manas é uma estreia promissora para Brennand, confirmando seu talento para retratar dramas sociais com sensibilidade e primoroso senso estético. A escolha de narrar uma história tão dura através dos olhos de uma criança adiciona uma camada de poesia à crueza do tema, enquanto a direção de arte e a fotografia elevam o filme a um patamar quase onírico. Por opção narrativa da realizadora o filme evita um olhar sensacionalista e manipulador. A ausência de confrontos mais diretos ou de um clímax definido pode, à primeira vista, sugerir que o filme recua – mas é justamente aí que reside sua força. Manas é rigoroso em sua narrativa minimalista, apoiada em silêncios que dilaceram e olhares que suplicam. Sua profundidade está justamente em sua capacidade de apresentar os conflitos com uma simplicidade acachapante.

O filme de Marianna Brennand é uma obra importante, especialmente no contexto do cinema brasileiro contemporâneo, que muitas vezes negligencia histórias do interior sob perspectivas femininas. Premiado no Festival de Veneza, Manas chama atenção não só pela qualidade técnica, mas por sua urgência temática. Não é um filme fácil, por doer no fundo da alma, mas é certamente um daqueles que permanecem na memória e na consciência.

Assista ao trailer: Manas


Jorge Ghiorzi

Membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e ACCIRS (Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul)

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quarta-feira, 6 de novembro de 2024

Ainda Estou Aqui: memórias dos tempos de chumbo

O longa-metragem que marca o retorno de Walter Salles aos temas e cenários brasileiros é uma obra memorialista inspirada no livro de Marcelo Rubens Paiva. O filme aborda os episódios verídicos da tragédia familiar do desaparecimento e morte do engenheiro e ex-deputado federal Rubens Paiva (pai de Marcelo), no período da ditadura militar brasileira. Assim como em Central do Brasil, realizado há 26 anos, Ainda Estou Aqui novamente faz o relato de uma busca, de um resgate de memórias e histórias interrompidas. 

Brasil. Rio de Janeiro. Início dos anos 70. Uma primorosa recriação iconográfica, estética e sonora nos transporta para um país de contrastes. A alegria descontraída de uma praia carioca esconde os subterrâneos dos porões da repressão e tortura. É neste tempo e espaço que somos apresentados à família formada por Rubens Paiva (Selton Mello), Eunice (Fernanda Torres), cinco filhos e muitos amigos. Sinais de ameaça iminente surgem a todo momento. Helicópteros militares em voos rasantes sobre zonas residenciais. Movimentação de tropas em caminhões. Circulação de militares pelas ruas. As apreensões de Eunice se confirmam quando certo dia agentes das forças de repressão chegam à sua casa para conduzir Rubens Paiva para um breve depoimento nas dependências de um quartel militar. A promessa era de que ele voltaria para casa em poucas horas. Nunca mais retornou, sua detenção foi negada e seu corpo jamais localizado.

O motor da narrativa de Ainda Estou Aqui é a angustiante jornada de Eunice em busca do paradeiro do companheiro de vida, pai de seus filhos. Enquanto luta obstinadamente atrás de informações que expliquem o desaparecimento, Eunice precisa encontrar forças para manter a família unida e protegida, ainda que para isso tenha que ocultar grande parte da verdadeira história para seus filhos, ainda jovens e menores de idade. Uma aparência de normalidade controlada se instala naquela casa, ao mesmo tempo em que uma obstinada batalha consome os dias de Eunice, guardiã da paz e da integridade família em risco.

Medo e angústia são dois sentimentos muito presentes nos personagens de Ainda Estou Aqui, mesmo aqueles que não possuem pleno conhecimento do que está ocorrendo. Este é um registro muito bem trabalhado por Walter Salles, que se afastou de uma abordagem mais política e, digamos, abertamente panfletária daquele contexto histórico. A ditadura e a repressão está lá, suas consequências estão expostas, mas não é este objetivamente o ponto fulcral. O olhar do filme é todo direcionado para os nocivos e lamentáveis efeitos deletérios daquele período de chumbo na vida real de pessoas reais, com suas sequelas físicas e psicológicas que se perpetuaram ao longo dos anos.


Recriar aqueles episódios ocorrido há mais de 50 anos equivale a revisitar, com dor e pesar, um baú de memórias adormecidas. A elegante direção de Walter Salles torna esta jornada uma experiência guiada pela sensibilidade e emoção, sem excessos narrativos para conquistar a plateia. A história se conta por si só, sem artifícios ou truques, apenas levada pela interpretação e um roteiro enxuto. Ainda assim há uma sequência espetacular que reforça a capacidade da gramatica audiovisual transmitir emoção e contexto. Sem palavras. A chegada dos agentes na casa ensolarada dos Paiva – localizada a poucos metros da praia – transforma simbolicamente o destino daquela família quando começam a fechar todas as cortinas das janelas de casa, impedindo a entrada de luz. A partir daquele momento a vida daquela família estava definitivamente entrando em um período sombrio de trevas. 

Referimos a questão da interpretação e neste aspecto é impossível não destacar o maravilhoso trabalho de Fernanda Torres. Interpretando com muita entrega e emoção todos os momentos limites vivenciados por Eunice Paiva, Fernanda Torres cativa e comove com sua performance cheia de nuances e carga emocional. Aqui temos uma atriz com pleno domínio do seu ofício, que tem conquistado elogios e referências positivas pela crítica nacional e internacional. Há inegavelmente uma perspectiva real de que Fernanda Torres seja indicada ao Oscar em 2025, repetindo a façanha da mãe, Fernanda Montenegro, indicada em 1999 por Central do Brasil.


A expressão “Ainda estou aqui” representa um clamor de quem aguarda, de quem espera, de quem vive a eterna expectativa do retorno. O filme de Walter Salles deixa esta mensagem. Ao reativar nossas memórias, Ainda Estou Aqui resgata um episódio doloroso que fere a história do Brasil. Para não esquecer. Para não deixar passar em vão. Assistir Ainda Estou Aqui é um ato de resgate de um Brasil que não mais desejamos, mas não pode ser esquecido. Ainda que saiamos da sessão com o peito aberto e o coração dilacerado.

Assista ao trailer: Ainda Estou Aqui


Jorge Ghiorzi

Membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e ACCIRS (Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul)

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quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

“Eduardo & Mônica”: eclipse total do coração


Ele gosta de Bonnie Tyler. Ela gosta de David Bowie. Preferências e diferenças irreconciliáveis, só que não, como mostra Eduardo & Mônica. O drama romântico, dirigido por René Sampaio, é baseado na conhecida canção de sucesso do Legião Urbana, composta por Renato Russo. Realizada pela mesma equipe e diretor de Faroeste Caboclo de 2013 (também inspirado por uma canção do Legião Urbana), a produção enfrentou problemas para ser lançada. A pandemia e o fechamento das salas de cinema adiaram por duas vezes a estreia, inicialmente prevista para o primeiro semestre de 2020.

Frequentemente se diz que algumas composições de Renato Russo são praticamente roteiros prontos de filme, pois contemplam características de um bom storytelling ao narrar histórias envolventes e cativantes. Então, o caminho naturalmente esperado era esse mesmo, acabar nas telas de cinema. A boa receptividade com Faroeste Caboclo estimulou a repetição da fórmula. E, sim, deu muito certo, superando até mesmo a primeira experiência.


O filme (assim como a canção) conta uma história de amor que acompanha o relacionamento do estudante Eduardo (Gabriel Leone) e da artista plástica Mônica (Alice Braga), que precisam superar suas muitas diferenças, de idade, de personalidade, de criação familiar, de cultura, de perspectivas de vida, de gostos musicais e literários. O cenário dessa história de conquistas, descobertas e aprendizados é a Brasília dos anos 80, marcada pelo fim do regime militar em contraste com a ebulição do rock brasileiro.

Um tema ostensivamente presente em Eduardo & Mônica é a possibilidade da convivência e aceitação dos diferentes e opostos. Olhar condescendente e delicado do diretor René Sampaio torna perfeitamente aceitável e crível a construção de um relacionamento, seja amoroso ou apenas de amizade, baseado na compreensão e no respeito a quem pensa muito diferente.


A manutenção do tempo (anos 80) e espaço (capital federal), onde transcorre a “história” original da canção de Renato Russo, foi fundamental para preservar sua essência, um tanto ingênua e romântica, diga-se de passagem, o que garante que a narrativa fique de pé e flua com naturalidade. Seria praticamente uma impossibilidade adaptar a história para os tempos contemporâneos. Eduardo & Mônica se apresenta como um belo e nostálgico retrato de um tempo que já passou. Uma pequena joia arqueológica da cultura pop brasileira. Destaque-se, aliás, o roteiro enxuto e muito bem amarradinho escrito por Matheus Souza com a colaboração final de outros três roteiristas (Cláudia Souto, Jéssica Candal e Michele Frantz).

A dupla de protagonistas, Gabriel Leone e Alice Braga, funciona muito bem em cena. A interação entre eles é um dos pontos altos do filme e garantem momentos de grande sensibilidade e entrega emocional. A primeira declaração de amor de Eduardo para Mônica, por exemplo, é um daqueles momentos que capturam a plateia, que se deixa levar definitivamente por aquela improvável história de amor. Eduardo & Mônica demorou para chegar às telas dos cinemas, mas certamente vai ficar por muito tempo na memória do público que vai sair da sessão cantarolando: “Quem um dia irá dizer que não existe razão nas coisas feitas pelo coração...”. 

Assista ao trailer: Eduardo & Mônica


Jorge Ghiorzi / Membro da ACCIRS