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terça-feira, 4 de novembro de 2025

O Agente Secreto: perna cabeluda, gato de duas caras e tubarão

 

Em meio a um cenário de renovado prestígio para o cinema nacional, O Agente Secreto, de Kleber Mendonça Filho, surge não como um simples sucesso, mas como um fenômeno cultural de repercussão internacional. A trilha de seu impacto é pavimentada por aclamação crítica, premiações em festivais, destaque à visão autoral do diretor e à performance do protagonista, Wagner Moura.

Grande parte do êxito de O Agente Secreto reside na habilidade de Kleber Mendonça em conduzir, com notável sensibilidade, uma trama de múltiplas camadas. O diretor mantém um ritmo preciso sem abrir mão de um olhar amplo e ambicioso sobre a realidade brasileira de cinquenta anos atrás, evitando qualquer tom didático ou simplificação. É nesse equilíbrio que o filme se torna ardiloso, por dialogar com um passado que ecoa de forma perturbadora no presente. Mais do que um resgate da memória coletiva, a obra se projeta como um alerta sobre o destino de uma nação que teima em se perder pelos mesmos (des)caminhos.

Recife, 1977. Na esteira de um passado turbulento que insiste em não ficar para trás, Marcelo (Wagner Moura), um professor especializado em tecnologia, deixa São Paulo com a esperança de encontrar um recomeço. Sua chegada à capital pernambucana coincide com as comemorações do Carnaval. Aquela aparente euforia logo se revela enganosa. Por trás da alegria se esconde um caos subterrâneo de violência e repressão. Após se instalar em uma espécie de “casa de refugiados”, Marcelo passa a ser alvo de uma dupla de assassinos de aluguel. A cidade que prometia ser um porto seguro revela-se, na verdade, uma armadilha da qual ele não consegue escapar.

A trama de O Agente Secreto não se constrói sobre grandes ações, mas sobre a tensão silenciosa da vigilância, os gestos mínimos de resistência e a paisagem urbana do Recife (com destaque para o Cine São Luiz, conhecido nacionalmente após Retratos Fantasmas), que se torna um personagem simultaneamente solar, sombrio e onipresente. O filme é, no fundo, um estudo sobre a corrosão da alma em um país onde a linha entre o público e o privado foi violentamente apagada.

O filme se configura, assim, como um amplo mosaico do Brasil dos anos 1970. Um país multicolorido, pleno de sons, sabores e alegria na superfície, mas que sustenta um simulacro de felicidade para encobrir um universo oculto de corrupção, violência e autoritarismo. O filme encontra seu eixo justamente nesse contraste entre animação e repressão, expondo as fissuras de um tempo em que a aparência festiva mascarava a tensão política e moral do país.

Com uma narrativa que subverte a cronologia tradicional, O Agente Secreto acaba se tornando vários filmes em um só, mesclando doses de humor, momentos de drama, situações de suspense, elementos de filme de crime e registros documentais de sua época. O caráter contraditório da realidade brasileira fica explícito pelas pitadas de nonsense e elementos bizarros como uma perna cabeluda, um gato de duas caras e um tubarão. Em suma, um suco de Brasil: intenso, caótico e, de algum modo, fascinante.

Em O Agente Secreto, Kleber Mendonça constrói um retrato deliberadamente alegórico de um país dilacerado. Seus personagens, transitando entre o real e o caricatural, espelham o delírio de uma sociedade sob o jugo da vigilância. Essa atmosfera de descompasso é intensificada por uma mise-en-scène que emprega enquadramentos instáveis, cortes abruptos e uma fotografia de cores saturadas e sombras densas, forjando uma sensação de permanente inquietação.

A essa visão fragmentada soma-se uma estética sonora igualmente irônica e calculada. A trilha, os efeitos e os silêncios são manipulados para acentuar o contraste entre a fachada alegre do cotidiano e a tensão que consome por dentro. É nesse universo à beira do absurdo que reside a chave do filme. Ao mesclar o grotesco e o cotidiano, o realizador explora o surreal como ferramenta narrativa, criando uma experiência em que o espectador oscila sensorialmente. O resultado é uma narrativa que transforma o caos político dos anos 70 em um exercício de linguagem cinematográfica. Sob a aparência de uma trama de suspense com enredo policial, O Agente Secreto funde com naturalidade a moralidade e a paranoia do Brasil.

Assista ao trailer: O Agente Secreto


Jorge Ghiorzi

Membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e ACCIRS (Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul)

Contato: janeladatela@gmail.com  /  jghiorzi@gmail.com

@janeladatela