Uma rápida análise
da carreira do diretor alemão Wim Wenders já é suficiente para constatar a
forte atração do realizador pela cultura norte-americana. Ao longo de sua
filmografia de quase 30 filmes é possível constatar que esta paixão se
manifesta regularmente em grande parte de sua obra. Filmes como O Amigo Americano (1977), baseado na
literatura policial de Patrícia Highsmith; Hammett
– Mistério em Chinatown (1982), narrativa ficcional de mistério
protagonizada pelo próprio escritor Dashiell Hammett; Paris – Texas (1984), road
movie existencialista filmado na Califórnia; O Fim da Violência (1997), thriller que se passa no universo de
Hollywood; O Hotel de Um Milhão de
Dólares (2000), estilizada história de assassinato, traficantes e ladrões
no submundo de Los Angeles; e também os documentários Um Filme para Nick (1980), que registra os últimos momentos do
diretor Nicholas Ray ainda na ativa com projetos de cinema, e Willie Nelson at the Teatro (1998), que
registra show do famoso cantor de country
music, não deixam dúvida o quanto a matriz cultural norte-americana foi (e
continua sendo) fonte de inspiração nos filmes de Wim Wenders.
As primeiras tentativas
de aproximação do realizador alemão com seu objeto de desejo, a América,
ocorreram na virada dos anos 60 para os 70, com alguns curtas-metragens com
temas e músicas americanas (Bob Dylan, por exemplo). A consumação do desejo
aconteceu apenas em 1974 com o longa-metragem Alice nas Cidades (Alice
in den Städten), um road movie
parcialmente filmado e ambientado em Los Angeles e Nova Iorque. Para um
cineasta disposto a descobrir novas terras, o formato de filme de estrada sem
dúvida era o mais adequado e seguro para a exploração. Paisagens inspiram reflexões,
que interpretam as paisagens, que voltam a inspirar novas reflexões, num
movimento moto-contínuo de ação e reação.
O jornalista
alemão Philip Winter (Rüdiger Vogler), contratado para escrever uma longa
matéria sobre os Estados Unidos, viaja pelo país, costa a costa, das praias da Califórnia
até Manhattan. Em bloqueio emocional, que se transforma em bloqueio criativo, o
jornalista faz todo o percurso, mas não consegue escrever uma linha sequer do
artigo encomendado. Limita-se apenas a registrar suas impressões de viagem em
melancólicas fotos de uma câmera polaroid (seria ele um precursor dos
corriqueiros “check-ins” das redes sociais de hoje?). Sua grande queixa é
constatar que, por mais sentimentos que uma paisagem provoque, a imagem de uma
foto nunca consegue captar a realidade. Nunca registra o que realmente se vê. E
muito menos o que se sente.
Após ser
dispensado pelo contratante, por não cumprir o acordo, Winter arruma as malas e
decide voltar para a Alemanha. Mas uma greve da companhia aérea atrasa os voos
e o destino dá um jeitinho de mudar seus planos. Ainda no aeroporto conhece uma
mulher, também alemã, e sua filha Alice, de 9 anos, que também pretendiam retornar
para a Alemanha. Enquanto esperam a saída dos voos no dia seguinte, os três
decidem passar a noite juntos num hotel. Na manhã seguinte a mulher desaparece,
deixando a filha aos cuidados do jornalista. Ao chegarem à Alemanha os dois
empreendem uma busca pelos familiares da garota, iniciando uma jornada de
descobertas e amizade.
O olhar
estrangeiro de Wim Wenders sobre a América se mostra um tanto dividido. Um misto de deslumbramento, poesia,
melancolia e apatia. Típica relação de amor e ódio. O personagem central não
passa de um turista acidental que não ultrapassa a barreira da solidão, mesmo
mergulhado em uma multidão. O sentimento de não-pertencimento àquele modo de
vida apenas reforça a sensação de que a harmonia que deseja não será encontrada
na viagem em si, muito menos no destino final da jornada. As respostas estão no
ponto de partida, na Alemanha, sua terra natal. Ao embarcar numa jornada de
busca pelo destino da garota, os dois mergulham no interior do país, nas
pequenas cidades, pequenas ruas, casas de família, antigos ancestrais,
ancorados no passado. Pelas mãos da pequena Alice, Winter é levado a sua
verdadeira viagem de reencontro consigo próprio. O mundo de Alice não é um país
das maravilhas, mas com certeza um mundo de descobertas, despertares e
revelações.
O tema do
personagem em busca de seu destino, de uma história para dar sentido à vida, é
muito recorrente na obra de Wim Wenders. Paris
– Texas é outro ótimo exemplo dessa abordagem, com o qual, aliás, Alice nas Cidades divide outra questão
fundamental. Ambos discutem, por caminhos distintos, as consequências de
famílias disfuncionais onde a figura do pai ausente (e mãe também, no caso) é
fator que detona os processos de transformação dos personagens. Alice nas Cidades é um filme de movimento,
avanços e recuos. De achados e perdidos. De perdas e ganhos. De imagens reais e
simulacros. De sentimentos particulares e sensações coletivas. Quando o filme
acaba a (nova) história de Philip Winter está apenas começando.
Alice nas Cidades é um dos títulos
mais representativos do chamado Novo Cinema Alemão, situado entre os anos de
1969 e 1982, que reúne obras de outros importantes diretores como Werner
Herzog, Rainer Werner Fassbinder, Volker Schlondorff e Alexander Kluge. Os
filmes deste período renovaram o cinema alemão, rompendo com vigor e
criatividade a expurgação do fantasma moral da culpa alemã na Segunda Guerra.
(Texto originalmente
publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em abril de 2017)
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