sábado, 3 de março de 2018

“Z”: verdades e mentiras


A advertência surge no primeiro minuto de filme: “Qualquer semelhança com fatos ou pessoas vivas ou mortas não é casual. Ela é intencional”. Assinada pelo roteirista Jorge Semprun e pelo diretor Costa-Gavras, a mensagem que abre o thriller político Z já o coloca imediatamente sob o signo da provocação. A intencionalidade se manifesta pelo fato do filme buscar inspiração em acontecimentos reais ocorridos na Grécia em 1963, narrados no livro homônimo de Vassili Vassilikos, sobre a morte de um político, líder esquerdista da oposição ao governo grego da época.

Forte retrato de um período muito conturbado da Grécia, Z marcou época ao ser lançado em 1969, conquistando prêmios pelo mundo afora, incluindo o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 1970. No Brasil, que naquele momento vivia o período de intervenção militar, a produção dirigida por Costa-Gavras (A Confissão, 1970; Estado de Sítio, 1972; Desaparecido: Um Grande Mistério, 1982; O Quarto Poder, 1997; O Corte, 2005) foi proibida de exibição comercial, ficando interditada até os anos 80. Desde então, o diretor ficou fortemente marcado como um cineasta político. Condição que ele não assume integralmente, afirmando que na verdade todos os filmes são políticos. Ou pelo menos podemos analisá-los politicamente, se assim desejarmos.


Construído com o conceito de uma grande reportagem documental, ainda que utilize artifícios de uma narrativa ficcional, Z transforma uma conspiração política verídica numa eletrizante trama de suspense, que fica pouco a dever às produções do gênero. Contribuem decisivamente para este resultado a edição, o ritmo, a decupagem e a diversidade de personagens comprometidos com a representação ficcional da realidade. Aqui, a máxima apregoada por Costa-Gavras se confirma: “Todo cinema é político, mas também é espetáculo”.

Embora inspirado em fato real, a transposição para o cinema sofreu algumas adaptações. Em Z, por exemplo, a trama ocorre num país imaginário, não nominado, porém claramente calcado na realidade da Grécia, controlado por militares. Um deputado de oposição (Yves Montand), alinhado com o pensamento de esquerda, chega à capital para participar de um comício contra a instalação de mísseis balísticos norte-americanos no país. Após sua manifestação, ao sair do auditório, o deputado sofre um atropelamento e morre. A partir de então inicia uma guerra de versões entre oposicionistas e governistas: foi acidente ou foi atentado?


Os procedimentos iniciais parecem indicar que tudo não passou de um lamentável acidente. Militares e policiais agem dissimuladamente para abafar o caso e não permitir que as investigações progridam. Mas testemunhas, mesmo coagidas, começam a falar. E a verdade vem à tona, com auxílio de um jornalista investigativo e um magistrado (Jean-Louis Trintignant), decidido a descobrir e punir os verdadeiros culpados: um grupo extremista de direita.

O filme foi lançado há quase 50 anos, mas Z ainda se mostra atual em sua abordagem da manipulação da realidade, seja pelo poder mídia ou pela força das instituições. Em tempos de pós-verdade, ou realidades alternativas, o filme de Costa-Gavras mostra como uma verdade pode ser reconstituída segundo os interesses do detentor da narrativa. Isto parece por demais familiar aos brasileiros destes tempos que correm, não é verdade?


Assim como Rashomon (1950) de Akira Kurosawa, Z oferece diferentes pontos de vista sobre um fato objetivo, com uma diferença fundamental, no entanto: Costa-Gavras revela ao espectador, sem nenhuma manipulação, a realidade do fato. Fica confortável, portanto, identificar quem diz a verdade e quem constrói versões. A parcialidade e o manuseio das massas ficam escancarados. O estado policial repressor vence por algum tempo, mas sucumbe inevitavelmente.

O discurso de um militar de alta patente, no início do filme, diz que as ideologias do “ismo” (socialismo, anarquismo, imperialismo, comunismo) são fungos ideológicos que devem ser combatidos preventivamente. Abatidos na raiz. Numa espécie de metáfora reversa, na verdade foram os militares que sofreram o revés, na medida em que os anticorpos (oposicionistas) venceram a batalha contra a infecção (governistas), apenas para ficar com mais uma das pérolas proferidas pela autoridade militar.

“Z”, em grego antigo significa “ele está vivo”. E Z, o filme, também está muito vivo. E atual.

Assista o trailer: Z

(Texto originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em março de 2017)

Jorge Ghiorzi

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