quinta-feira, 6 de julho de 2017

“Homem-Aranha: De Volta ao Lar”: um novo recomeço


Uma boa notícia para os fãs. O Aranha não morreu, apesar das recentes experiências desastrosas. Apenas mudou de casa e agora retorna vivo, firme e forte. Para quem não está ligando os pontos desta teia, vale lembrar. O personagem Homem-Aranha, nos quadrinhos, pertence à Marvel. Mas no cinema o herói dava expediente na Sony, que detinha os direitos para a telona. Nesta fase de exílio o Homem-Aranha protagonizou cinco filmes. Uma primeira trilogia dirigida por Sam Raimi e estrelada por Tobey Maguire (2002, 2004 e 2007) e outros dois filmes protagonizados por Andrew Garfield (2012 e 2014).

Era chegada a hora de retornar ao lar. A estreia nesta nova fase ocorreu no ano passado com uma pequena participação do novo Homem-Aranha em Capitão América: Guerra Civil, onde, a convite do Homem de Ferro, integrou o grupo dos Vingadores. Agora, finalmente ganha seu filme solo com a marca inconfundível da Marvel. Homem-Aranha: De Volta ao Lar (Spider-Man: Homecoming) é na verdade uma sequência direta daquele filme do Capitão América. Porém, desta vez o foco é inteiramente direcionado ao personagem alter-ego de Peter Parker. Se antes ele foi um mero coadjuvante, nesta nova produção ele ganha vida própria e assume definitivamente o protagonismo no universo Marvel como integrante confirmado dos Vingadores.


Ao mesmo tempo em que participa do maior grupo de super-heróis do planeta, o jovem Peter Parker (Tom Holland) tem que se virar no dia-a-dia com a rotina dos problemas típicos de um adolescente universitário: estudar, fazer provas, ajudar com as tarefas domésticas e, quando possível, flertar com a garota que balança seu coração. Não fosse tudo isso, ainda tenta provar para Tony Stark (Robert Downey Jr.), o Homem de Ferro em pessoa, de que já está pronto para a próxima missão, que não chega nunca. Nesta relação Stark assume por vezes os ares da figura paterna que Peter Parker não tem.

Então, enquanto a missão não vem, ele próprio trata de correr atrás de algo para mostrar o seu valor como super-herói. Típico comportamento de rebeldia juvenil. Quando por acaso impede o roubo de um banco com assaltantes que utilizam armamento com tecnologia de origem alienígena, o Homem-Aranha entra na mira do novo vilão que está surgindo para levar o caos à cidade, o Abutre (Michael Keaton). Neste embate o Aranha assume o novíssimo uniforme super high-tech desenvolvido pelas indústrias do mega empresário Tony Stark. Altamente tecnológico, o novo traje é quase uma armadura com muitas gadgets e incríveis novas funções da tradicional teia, marca registrada do herói.


Homem-Aranha: De Volta ao Lar foi dirigido pelo novato, e pouco conhecido, Jon Watts que fez um ótimo trabalho neste reboot do personagem que estava à espera de uma retomada, pois trata-se de um dos super-heróis de maior prestígio da Marvel. A narrativa leve e descontraída flui sempre com competência, o que torna o filme uma experiência agradável, praticamente sem momentos de baixo interesse. As cenas de ação são eficientes, não pecando pelos excessos vistos ultimamente nas produções do gênero. Apenas uma ressalta negativa para as sequências noturnas que são de difícil visualização, o que dificulta sua plena apreciação.

Recentemente filmes como Deadpool e Guardiões da Galáxia apontaram um caminho que renova o interesse nas adaptações das HQs para o cinema. Ambos abandonaram uma certa solenidade na abordagem e acrescentaram generosas doses de humor. A proposta é reproduzir a experiência desencanada de ler uma revista em quadrinhos, com diversão e relaxamento. Acertadamente o novo Homem-Aranha bebe desta mesma fonte. Objetiva e direta, a nova adaptação do herói aracnídeo não perde tempo com questões de interesse relativo e parte direto para a ação. Pouco ficamos sabendo das suas relações familiares. Nosso conhecimento se limita apenas ao essencial: ele vive com a Tia May (Marisa Tomei) e basta. E nada de repassar a origem dos poderes de Peter Parker. A história da picada da aranha radioativa é citada rapidamente apenas num curto diálogo, e segue em frente.


A repaginação do Homem-Aranha nesta nova versão, com a grife Marvel, foi bem sucedida e demonstra fôlego para muitos filmes. Além do tom correto da aventura, claramente mirando um público mais jovem, possivelmente o grande acerto da produção foi a escalação de Tom Holland para interpretar o herói. Carismático, engraçado, bom ator e muito jovem (o que garante uma vida longa na pele do herói) ele assume com talento o papel que recentemente foi do insosso Andrew Garfield em filmes que não deixaram saudades. O novo Homem-Aranha das telas saiu melhor que a encomenda, até porque a baixa expectativa contribuiu para uma avaliação menos apaixonada e tendenciosa. É fato: Homem-Aranha: De Volta ao Lar revitaliza, com méritos, o prestígio de um herói que andava em baixa.

Assista o trailer: Homem-Aranha: De Volta ao Lar

Jorge Ghiorzi

terça-feira, 27 de junho de 2017

“Zabriskie Point”: jornada no deserto


36º 25’ N 116ª 48’ O. Estas são as coordenadas geográficas que assinalam a localização do “Zabriskie Point” no globo terrestre. Um lugarzinho perdido no mapa, no meio do Parque Nacional do Vale da Morte, no deserto da Califórnia. O terreno árido é resultado de um lago que secou há milhões de anos. Uma região onde a vida é um desafio constante da natureza.

Este é o cenário que inspirou a única experiência de Michelangelo Antonioni em terras norte-americanas. Zabriskie Point (1970) foi realizado num período de grande evidência do diretor, quando o nome de Antonioni se consolidava como um cineasta com livre trânsito internacional, além da condição de apenas um realizador de cinema de arte europeu. Seu trabalho anterior, primeiro em língua inglesa, foi Blow-Up – Depois Daquele Beijo (1966), e o seguinte foi O Passageiro – Profissão: Repórter (1975).

Os emblemáticos tempos de passagem da década de 60 para os 70 estão na essência da narrativa de Zabriskie Point. Período de lutas pelos direitos civis, emancipação dos negros, contracultura, guerra do Vietnã, movimento hippie, psicodelia e rock, muito rock. O filme de Antonioni já inicia conflagrado, no olho do furacão. Na sequência de abertura, em estilo documental, somos jogados no meio de uma assembleia de universitários no campus discutindo sobre a iminente greve e as ações do grupo no enfrentamento contra a repressão policial. Logo identificamos entre os universitários o protagonista da história. O jovem Mark (Mark Frechette) parece alheio e distante da veemência dos discursos revolucionários de seus colegas. Ao se manifestar em público pela primeira e única vez na reunião revela sua verdadeira natureza de independência. Declara em alto e bom tom: “Estou disposto a morrer (pela causa). Mas não de tédio”. E sai da sala de forma teatral e dramática, para espanto dos estudantes pela clara exibição de individualismo.


Ao participar de um confronto da policia com um grupo de grevistas, Mark é testemunha da morte de um policial de Los Angeles. Por estar portando uma arma, Mark foge do local para não ser acusado de homicídio. Sem destino, sem mapa, sem bússola e sem dinheiro no bolso, decide, num impulso, roubar um pequeno avião e seguir sem rumo em direção ao deserto.

A outra protagonista da história é Daria (Daria Halprin), secretária de um poderoso empresário (Rod Taylor) que planeja construir um mega empreendimento residencial em pleno deserto de Mojave. Ao fazer uma viagem de carro por este mesmo deserto, para encontrar-se com seu chefe (e talvez amante, pode-se supor pelo contexto), Daria decide dar uma parada numa cidadezinha no meio do caminho para visitar um amigo. Durante a viagem Daria percebe no céu um pequeno aviãozinho que começa a dar voos rasantes sobre seu carro. Nestas coordenadas do deserto as histórias dos dois personagens errantes se cruzam e os destinos de ambos mudam de rota.

A escolha do deserto como cenário faz todo sentido se considerarmos que Michelangelo Antonioni é um cineasta reconhecido pelo pleno domínio da mise-en-scène nas geografias dos espaços cênicos que representa em suas obras. Em Zabriskie Point o diretor expõe o ambiente urbano da metrópole, com sua sufocante profusão de placas, painéis, outdoors e publicidade, em contraste com a paisagem desolada e plácida do deserto, espécie de paraíso (ainda) intocado pela civilização. Neste aspecto, o ambiente representa a própria natureza interior dos personagens que promovem uma fuga para, por fim, encontrar-se em si mesmo. Há sim algo de existencialista nesta jornada de descoberta. Um sonho utópico perseguido que não se completa. Fica apenas a desilusão.


Michelangelo Antonioni se posicionava como um intelectual marxista, no entanto, contradizendo este discurso, seus filmes invariavelmente tratavam de uma elite burguesa com seus problemas típicos, longe da dura realidade de um trabalhador proletário. Ainda assim, não resta dúvida que Zabriskie Point é um filme explicitamente anticapitalista, de contestação ao establishment e à manutenção do status quo da ordem ideológica, política e econômica instalada. Há, porém, uma fragilidade nesta abordagem um tanto idealizada que manifesta uma indulgência demasiada com os movimentos jovens, plenos de contestação, mas vazios nas alternativas que sugerem como opção.

Realizado há mais 45 anos, com a ambição de retratar um período peculiar da sociedade norte-americana, Zabriskie Point por vezes soa por demais datado e preso a um estilo “hiponga”, típico daquele momento. Mas não há como negar, porém, que o olhar europeu (estrangeiro) de Antonioni foi suficientemente bem sucedido para transmitir o espírito da América naquele início de década. Ainda que não tenha sido bem recebido no lançamento, ficando aquém das expectativas nas bilheterias, o longa-metragem foi reavaliado ao longo do tempo e hoje pode ser classificado como um dos melhores trabalhos de Michelangelo Antonioni.


Pelo menos duas sequências icônicas de Zabriskie Point passaram para a história. A primeira delas é a sessão de amor coletivo em pleno deserto com vários casais transando em meio às areias, um símbolo do sexo livre em conexão com as forças da natureza. A outra sequência de destaque, ainda hoje impactante, é a explosão final, metáfora do desejado fim do consumismo capitalista. De beleza plástica excepcional, a sequência ganha ares de pintura pop art a lá Andy Warhol ou Jackson Pollock. Com direito a uma hipnótica trilha sonora composta pelo Pink Floyd.

Na época do lançamento mundial Zabriskie Point foi censurado no Brasil pela explosiva mistura de política, contestação, corpos nus e sexo livre.

Assista o trailer: Zabriskie Point

(Texto originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em novembro de 2016)

Jorge Ghiorzi

segunda-feira, 19 de junho de 2017

“O Ano do Dragão”: violência em Chinatown


O recente (2016) falecimento de Michael Cimino, além de lamentável em si, atraiu a atenção para a filmografia do realizador que andava com prestígio em baixa na indústria. Ainda que tenha sido homenageado pelo Festival de Veneza em 2012, a verdade é que Cimino rumava para uma forçada aposentadoria por não conseguir desenvolver novos projetos pessoais. Agora, com a filmografia definitivamente fechada, seus trabalhos voltam a ser reavaliados e relançados, atestando o valor de uma obra que estava à espera de um novo olhar.

Ao falar-se de Michael Cimino as primeiras lembranças que vem à mente são justamente o seu ápice, o drama de guerra vencedor do Oscar, O Franco Atirador (1978), e o equivocadamente alegado maior fracasso (apenas comercial, a bem da verdade), o portentoso western épico O Portal do Paraíso (1980). As duas produções surgiram em sequência, fato que apenas confirma a oscilação na carreira do realizador. Considerando este fato, é perfeitamente compreensível a expectativa que rondava o filme seguinte, O Ano do Dragão (Year of the Dragon, 1985), lançado após Cimino lamber por cinco anos as feridas deixadas pela dolorosa experiência de O Portal do Paraíso.


Recontar, ainda que alegoricamente, a história da formação da América, é uma ambição que perpassa alguns filmes do diretor. A conquista de territórios, os primórdios do capitalismo e a integração dos imigrantes europeus são pano de fundo em O Portal do Paraíso. Os fantasmas do conflito do Vietnã que assombram a sociedade norte-americana estão em O Franco Atirador. O submundo e a corrupção das Máfias que construíram fortunas e moldaram o poder dos EUA aparecem em O Ano do Dragão, e também em O Siciliano (1987), ainda que este transcorra na Itália.

Baseando em um livro de Robert Daley (que também escreveu o livro que deu origem ao filme O Príncipe de Cidade, de Sidney Lumet), O Ano do Dragão tem roteiro do próprio Cimino em parceria com Oliver Stone. O filme se passa na Chinatown de Nova Iorque, berço da máfia chinesa que opera nos EUA comandando o tráfico de ópio, matéria prima da heroína. Para expandir seus negócios os chineses entram em conflito com os italianos (carcamanos). A disputa por territórios deflagra uma guerra, acaba com o equilíbrio de forças e rompe o acordo de paz, coniventemente aceito pelas corruptas forças policiais da região.


É neste cenário que entra em cena o capitão da polícia Stanley White (Mickey Rourke) transferido do Brooklyn para Chinatown com o encargo de cuidar da crescente violência no bairro. O policial avança o sinal e vai fundo na missão. Não concordando com o faz de conta da polícia, que prefere deixar tudo como está para ver como fica, White decide, contra o desejo de seus superiores, fazer uma guerra pessoal assumindo o papel de justiceiro incorruptível. Nesta obsessão o policial compra briga com o Sistema, destrói seu casamento, acaba com suas poucas amizades e manipula a imprensa, através da sedução de uma repórter de TV.

Impulsivo, arrogante e extremamente vaidoso, o personagem Stanley White é de origem polonesa, o que o coloca também como um imigrante na América, assim como os chineses e os italianos aos quais persegue em sua saga punitiva. Há um forte componente de discriminação racial nas atitudes do policial, um estigma, aliás, que sempre perseguiu o próprio diretor Michael Cimino, particularmente após O Franco Atirador, onde tratava os asiáticos de forma maniqueísta.


Os desempenhos em O Ano do Dragão são pontos fracos no resultado final. Mickey Rourke está por demais caricato e constantemente beira ao overacting. John Lone não está particularmente bem com o líder da máfia chinesa. Mas o desastre maior está no papel da repórter de TV Tracy Tzu, fundamental para a narrativa. Ariene Koizumi, por vezes creditada apenas como Ariane, atriz norte-americana de origem japonesa, não dá conta da complexidade da personagem e coloca a perder todas as nuances da relação sadomasoquista que desenvolve com Stanley White.

Tenso e explosivo como outros trabalhos do realizador, em O Ano do Dragão Michael Cimino não se furta e até se regozija com a exposição explícita de sangue e as consequências das balas em corpos e crânios. Uma destas explosões de violência é a sequência do tiroteio na casa noturna, que revela uma ótima decupagem e montagem dinâmica. Sequência, aliás, que nos remete a outra, muito semelhante, em Scarface, dirigido por Brian De Palma três anos antes. Coincidência? Plágio “involuntário”? Quem sabe. Mas vale lembrar que o mesmo Oliver Stone foi roteirista dos dois filmes.

Assista o trailer: O Ano do Dragão

(Texto originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em novembro de 2016)

Jorge Ghiorzi

terça-feira, 13 de junho de 2017

"Daqui a Cem Anos": um futuro possível


Todo filme de ficção científica que se preze invariavelmente apresenta altas doses de ambição. Explorar as possibilidades infinitas de um futuro possível é um arriscado, nem por isto menos estimulante, exercício de pretensão. É justamente a imponderabilidade do tempo futuro que estimula a imaginação dos escritores do gênero. Dentre eles o nome de H. G. Wells se destaca. Não só pela qualidade da obra, mas pelo fato de ser um dos autores mais adaptados pelo cinema. Livros, contos e novelas de Wells são fonte de inspiração de filmes desde 1919, com uma primeira versão de The First Men in the Moon, até hoje, incluindo uma anunciada nova adaptação de O Homem Invisível, a ser lançada em 2018, com Johnny Depp no elenco.

Umas das primeiras obras de H. G. Wells utilizadas no cinema foi Daqui a Cem Anos (Things to Come, 1936), longa-metragem dirigido por William Cameron Menzies (Os Invasores de Marte), um reconhecido Diretor de Arte que eventualmente se arriscava na direção de filmes. Neste trabalho Menzies contou com uma colaboração de luxo. O próprio Wells foi autor do roteiro, uma experiência única na sua carreira. O filme foi baseado no livro “The Shape of Things to Come”, publicado em 1933, que faz uma crônica da civilização humana até o ano de 2106.


Daqui a Cem Anos, apesar do que diz o título brasileiro, não conta a história de um século. Mas apenas 96 anos (!). Explica-se: a narrativa inicia em 1940 e encerra em 2036. Aqui, já temos uma peculiaridade. A história do filme tem seu ponto de partida apenas quatro anos à frente da época em que foi realizado (1936). No mundo real, a Guerra Mundial era uma possibilidade real naquele momento histórico, que, infelizmente, acabou por se confirmar em 1939. Este mesmo clima de ameaça à paz dá o tom inicial do filme, que se passa na fictícia “Everytown”, claramente inspirada em Londres. A cidade vive a iminência do início da Guerra, que já havia eclodido na Europa, mas tenta esquecer temporariamente os problemas para viver os dias de alegria que antecedem o Natal de 1940. Nesta sociedade organizada e próspera, a crença nos valores da família e a fé inabalável nas possibilidades da ciência garantem a prosperidade. Esta é a visão de mundo do personagem central, John Cabal (Raymond Massey). Segundo seu entendimento, somente uma guerra seria capaz de romper aquele equilíbrio social. E ela vem, com todo seu poder de destruição e desagregação familiar. Vidas sucumbem, esperanças morrem e a cidade de “Everytown” se transforma em ruínas após duas décadas de conflito.

Corte. Somos jogados no futuro, no ano de 1966. A guerra acabou. Mas as cidades e suas populações foram duramente castigadas. Os recursos e a prosperidade são coisas do passado. A nova realidade impõe um cenário de miséria, fome e destruição. Quase uma volta ao tempo das cavernas. Uma das mais nefastas consequências da guerra foi a temível “Doença dos Errantes” que leva as pessoas a ficarem vagando sem rumo (zumbis?). Os contaminados eram abatidos a tiro, sem compaixão. A peste extermina metade da população.


Mais um pulo no tempo. Estamos em 1970. A “peste” foi erradicada. A civilização começa a dar sinais de estar saindo da época das trevas. No entanto, naquela nova sociedade rural que começa a se formar, ainda não há a noção de Estado e Governo. No vácuo de poder logo o instinto de dominação dos homens se manifesta com o surgimento de um pequeno tirano local que domina com mão de ferro a região de “Everytown”, transformada num pequeno reino particular. Porém tudo muda com o retorno de John Cabal à cidade, após lutar no front de batalha da guerra. Ele vem com ideias progressistas, ainda com a fé inabalável nos poderes transformadores da ciência e da tecnologia. Dá-se então o inevitável embate entre a barbárie (o tirano) e a civilização (o progressista), e o mundo mergulha na nova ordem mundial que promete tempos de prosperidade.

Uma última viagem no tempo. Vamos parar em 2036, no admirável mundo novo, altamente tecnológico, onde todas as necessidades materiais do homem estão supridas. Mas, nem tudo é um mar de rosas. Em certo momento um dos personagens diz: “Progresso não é viver. É a preparação para viver”. Não há mais desafios pessoais, a ciência dá todas as respostas. A questão de fundo é: Será este o mundo que realmente desejamos?


Daqui a Cem Anos é uma típica alegoria progressista que já foi tema de muitas histórias de H. G. Welles. Há, porém, um componente adicional: o humanismo. Além do grande e ambicioso painel histórico que a história retrata, não foram deixados de lado os pequenos dramas pessoais que movem as grandes revoluções. A utopia das sociedades perfeitas e mundos idealizados é tema de fundo das primeiras obras de ficção científica produzidas nos anos iniciais do século 20. E Daqui a Cem Anos é um inestimável exemplo do que de melhor já se fez no gênero. Vale lembrar que ele surge apenas uma década após a obra-prima Metrópolis, de Fritz Lang, com a qual, aliás, possui alguns pontos de contato pela abordagem do totalitarismo nas sociedades altamente tecnológicas.

Em termos eminentemente artísticos o filme de William Cameron Menzies é um espetáculo à parte por sua deslumbrante cenografia (lembrando, o filme é de 1936, em preto-e-branco), elaborados sets e eficientes trucagens de maquetes. Como exercício de especulação de possibilidades científicas, Daqui a Cem Anos traz muitos acertos em termos de imaginação de tecnologias que surgiriam no futuro. O filme apresenta pioneiras TVs planas, telas de LED, tablet, celular de pulso, projeção holográfica e uso regular de helicóptero como transporte civil (que era apenas um projeto em desenvolvimento naquela época).

Daqui a Cem Anos faz parte da coleção “Clássicos Sci-Fi – Volume 3”, lançamento da Versátil Home Vídeo.

Assista o trailer: Daqui a Cem Anos

(Texto originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em outubro de 2016)

Jorge Ghiorzi